Gramatigalhas

Academia Brasileira de Letras – Delegação legal e autoridade?

Academia Brasileira de Letras – Delegação legal e autoridade? O professor José Maria da Costa esclarece.

21/9/2011

O leitor Sílvio Darci da Silva envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas: 

"Amigos, enviei-lhes uma indagação dirigida ao prezado professor e doutor José Maria da Costa, a respeito de qual deve ser, no entendimento dele, a grafia correta de 'subrogar' (ou 'sub-rogar'), à luz das regras estabelecidas pelo recente acordo ortográfico, que foi referendado por tratado internacional, devidamente promulgado por decreto presidencial... Tenho, todavia, dois pontinhos adicionais a submeter que, talvez, possam ser úteis ao estimado professor. Referindo-se ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, assim se expressou o cultíssimo professor, num pronunciamento que saiu na edição de Migalhas 2.572 (16/2/2011 - clique aqui):  

7) Num caso como esse – em que se constata a ausência total de critérios mínimos para um raciocínio de convicção e certeza – a única saída é consultar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que é uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial.  

 

8) Também conhecido pela sigla VOLP, é organizado e publicado pela Academia Brasileira de Letras, a qual tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, em cumprimento à Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8.12.1900.  

Já há algum tempo tenho estado pesquisando em bibliotecas e na Imprensa Nacional, na busca de uma cópia da referida 'lei', que parecia não existir. Graças a uma pesquisadora mais habilidosa da Imprensa Nacional, descobriu-se que não se trata de 'lei', mas, sim, de 'decreto' — o Decreto 726, de 8/12/1900 (publicado em Coleção de Leis do Brasil de 1900, volume 1, Página 37). O Decreto não atribui à ABL a responsabilidade de editar o VOLP, nem de ditar a 'grafia oficial' dos vocábulos da língua pátria.   O decreto apenas determina que a ABL terá direito a ter sede em edifício público e que gozará de franquia postal — nada mais!   Isto não significa que o VOLP não mereça o papel de destaque que tem, mas certamente não dá embasamento legal para que a ABL possa acintosamente ferir um tratado internacional e ditar grafias desautorizadas para vocábulos. Não tem cabimento que algum membro da ABL, por ideias pessoais resolva impor, através do VOLP, grafias como, por exemplo propositadamente exagerado, 'subrrogar', 'subirrogar' ou 'sub-rogar', apenas porque acha mais 'bonitinho' ou porque atende a uma regra que ele criou, ou que alguém criou nos primórdios da língua portuguesa. Se existe um acordo internacional que rompeu com a tradição da língua e com grafias de séculos passados, e introduziu novas regras, estas têm de ser obedecidas, mesmo que muitos não concordem.  E admito que há um bocado de mudanças com as quais discordo profundamente, por serem absurdas e ridículas — mas, eu as obedeço! Aliás, não vejo explicação para o comportamento da ABL, de desafiar um tratado internacional, ao ponto de grafar 'sub-rogar', quando isso não encontra eco nem mesmo em outras línguas. De acordo com a regra clara da Base XVI do recente Acordo Ortográfico, 'subrogar' não deve levar hífen, acompanhando, assim, a tendência inglesa ('subrogate', Webster), espanhola ('subrogar', Real Academia Española), francesa 'subroger' (Larousse),  latina ('subrogare', ver Aurélio), etc. Um forte abraço a todos os componentes dessa equipe e ao professor José Maria da Costa!"  

Em outra mensagem posterior, o mesmo leitor assim se manifesta: 

"Prezados amigos, observei, no Migalhas 2.700 (24/8/2011 - clique aqui), que o mui respeitado e querido professor José Maria da Costa mais uma vez afirma, no texto cujo link lá é indicado, que 'o VOLP é editado pela Academia Brasileira de Letras, a qual tem a delegação oficial e a responsabilidade legal de editá-lo, em cumprimento à Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8/12/1900'. Então pensei, num gesto de colaboração, em tecer três comentários sobre o assunto:  

1)  A Lei Eduardo Ramos não é uma lei, mas, sim, um decreto, isto é, o Decreto 726, de 8/12/1900, publicado na 'Coleção de Leis do Brasil' de 1900, volume 1, Página 37. — Cópia em anexo, para facilitar seu exame.  

2)  O referido decreto não dá delegação oficial e/ou responsabilidade legal à ABL para decretar a grafia correta de alguma palavra por sua mera inserção no VOLP.  O referido decreto versa, tão-somente, sobre   (1) o compromisso de o Governo Federal de prover instalações para a sede da ABL e  (2) isenção do pagamento de franquia postal.  Só isso!

 

3)  Não conheço nenhuma lei que dê à ABL autoridade para determinar, a seu bel-prazer, como uma palavra deva ser grafada. A ABL deverá se ater às regras gramaticais em vigor e a eventuais tratados internacionais.  

A finalidade do VOLP não é a de decretar como uma palavra deva obrigatoriamente ser escrita, mas, sim, a de ajudar para se saber como ela é escrita — e a ABL (e/ou o VOLP) pode errar, hipótese em que a grafia equivocada deverá ser desprezada, mesmo que contida no VOLP. Não pode, por exemplo, a ABL consignar no VOLP a grafia 'gramátika', para que esta se torne oficial e obrigatória na língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Um abraço a todos daí!'"

1) Um leitor, após pesquisar, observa que não encontrou lei que delegue à Academia Brasileira de Letras "a responsabilidade de editar o VOLP, nem de ditar a grafia oficial dos vocábulos da língua pátria". Por isso, pede esclarecimentos sobre o assunto.

2) Remontando a cronologia, diga-se que, três anos após sua fundação (20/7/1897), a Academia Brasileira de Letras se beneficiou com a edição do Decreto federal 726, de 8/12/1900, pelo qual:

(i) se autorizava o Governo a dar permanente instalação à ABL em prédio público,

(ii) se concedia à ABL franquia postal e

(iii) se determinavam outras providências.

3) Em homenagem a alguém que sempre procurou o bem da ABL, incluindo seu reconhecimento como instituição de utilidade pública, tal decreto acabou sendo também conhecido pelo nome de Lei Eduardo Ramos. Quanto a esse personagem, acrescente-se que, mesmo sendo conhecido entre os escritores de sua época e tido como um dos fundadores da Academia, por nunca fazer campanha em benefício próprio, só conseguiu entrar na Casa de Machado de Assis no fim da vida. E mais: faleceu antes de tomar posse.

4) Pois bem. Costuma-se dizer que, desde a Lei Eduardo Ramos, a ABL tem a incumbência e a delegação legal para listar oficialmente os vocábulos que integram nosso léxico, bem como fixar sua grafia, pronúncia, gênero, etc. Independentemente de rigidez e técnica jurídica sobre a questão, essa posição tem sido assim reconhecida sem contestações ao longo de décadas.

5) Exatamente com esse perfil de conduta, por iniciativa da ABL e anuência da Academia de Ciências de Lisboa, para minimizar os inconvenientes de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, foi aprovado, em 1931, o primeiro acordo ortográfico entre Brasil e Portugal, o qual, na prática, acabou não produzindo a tão desejada unificação dos dois sistemas ortográficos.

6) Por não se implementar, na prática, o acordo de 1931, a ABL, em sessão de 12/8/1943, por votação unânime, aprovou as instruções para a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (o que se denominou Formulário Ortográfico). Mais uma vez sem o rigor técnico do que juridicamente se tem como delegação legal, a ata da respectiva reunião registrava que esse regramento se fazia "consoante a sugestão do Sr. Ministro da Educação".

7) E mais: confirmando esse aspecto de delegação efetiva, mesmo sem o rigor técnico do vocábulo, a introdução do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1943 assim registrava:

"A Academia Brasileira de Letras recebeu de Sua Excelência o Senhor Presidente da República a incumbência de elaborar o vocabulário ortográfico de que tratam os decretos-leis 292, de 23 de fevereiro de 1938, e 5.186, de 13 de janeiro de 1943".

8) Dois anos depois, ante as divergências dos vocabulários publicados por ambas as academias, em evidente demonstração da pobreza dos resultados práticos do acordo de 1943, realizou-se, em 1945, em Lisboa, novo encontro entre representantes das duas agremiações, o qual conduziu à chamada Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. Mais uma vez, contudo, esse acordo não produziu os almejados efeitos, sendo adotado em Portugal, mas não no Brasil, por ser tido aqui como inaceitável, porquanto se conservavam consoantes mudas e não articuladas, já abolidas em nosso país, além de haver radicalismo na questão da acentuação de certas proparoxítonas (como acadêmico, gênero e tônico), sobre as quais os portugueses queriam pôr acento agudo, e não circunflexo.

9) Mais de vinte anos depois, veio a lei 5.765, de 18/12/1971 (em Portugal, a lei respectiva foi promulgada em 1973), a qual nada mais fez do que sacramentar um parecer conjunto da ABL e da Academia de Ciências de Lisboa sobre as alterações na ortografia da língua portuguesa. E, no art. 2º dessa lei, constou o registro claro da delegação à ABL para a incumbência: "a Academia Brasileira de Letras promoverá, dentro do prazo de dois anos, a atualização do Vocabulário Comum, a organização do Vocabulário Onomástico e a republicação do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa nos termos da presente lei".

10) Ao depois, porque, apesar dessas iniciativas louváveis, continuavam a persistir divergências sérias entre os dois sistemas ortográficos, as duas academias elaboraram em 1975 um novo projeto de acordo, que não foi levado adiante por razões de ordem política.

11) Por isso, em maio de 1986, houve um novo encontro no Rio de Janeiro, e nele, pela primeira vez na história da língua portuguesa, se encontraram representantes não apenas de Portugal e Brasil, mas também dos novos países africanos lusófonos emergidos da descolonização portuguesa (só Guiné-Bissau não veio, e o Timor Leste ainda não era independente). A tentativa de acordo foi abandonada, porque as propostas foram tidas como drásticas (em um dos itens, pretendia-se, simplesmente, suprimir o acento em todas as palavras paroxítonas e proparoxítonas).

12) Anos depois, em 1990, os países lusófonos, em inteligente atitude de concessões mútuas e de abrangência para aceitar diversidades práticas, firmaram o chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, e nele, para o que aqui interessa, alguns aspectos importantes podem ser observados:

I) o Brasil se fez representar, naquela oportunidade, por seu próprio Ministro da Educação;

II) o projeto de texto de ortografia unificada, pelo lado brasileiro, fora elaborado pela ABL;

III) por ser menos radical que o anterior, o acordo acabou sendo frutífero;

IV) os signatários deveriam torná-lo lei em seus respectivos países;

V) a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras seriam as responsáveis pela publicação de um vocabulário ortográfico comum.

13) Para implementar o referido Acordo Ortográfico, editaram-se, aqui no Brasil, os Decretos federais 6.583, 6.584 e 6.585, todos de 29/9/2008, e se aprovou o Protocolo Modificativo ao mencionado acordo, tendo o art. 2º deste último a seguinte redação:

"Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas".

14) Uma síntese cronológica dessa exposição demonstra que a ABL sempre foi e continua sendo a instituição incumbida de autoridade oficial pelo Poder Público brasileiro para organizar, gerir e ditar as regras sobre ortografia:

I) assim, para as normas do Formulário Ortográfico de 1943, "a Academia Brasileira de Letras recebeu de Sua Excelência o Senhor Presidente da República a incumbência de elaborar o vocabulário ortográfico de que tratam os decretos-leis 292, de 23 de fevereiro de 1938, e 5.186, de 13 de janeiro de 1943";

II) quando veio a lume a lei 5.765, de 18.12.1971, que nada mais fez do que sacramentar um parecer conjunto da ABL e da Academia de Ciências de Lisboa sobre as alterações na ortografia da língua portuguesa, seu art. 2º também outorgava delegação clara à ABL sobre o assunto: "a Academia Brasileira de Letras promoverá, dentro do prazo de dois anos, a atualização do Vocabulário Comum, a organização do Vocabulário Onomástico e a republicação do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa nos termos da presente lei";

III) pelo Acordo de 1990, assinado pelo próprio Ministro da Educação brasileiro, a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras seriam as responsáveis pela publicação de um vocabulário ortográfico comum;

IV) quando da edição dos Decretos federais 6.583, 6.584 e 6.585, todos de 29.9.2008, com o que se aprovou o Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico de 2008, o art. 2º deste último determinava que os Estados signatários tomariam as providências necessárias à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa por intermédio das instituições e órgãos competentes, o que, no que tange ao Brasil, significa que as providências a tanto necessárias seriam tomadas pela Academia Brasileira de Letras;

V) assim, na prática e em resumo, ainda que se entenda, em interpretação restritiva, que a Lei Eduardo Ramos, de 1900, não outorgava delegação legal à ABL, o certo é que tal incumbência para ditar oficialmente regras sobre ortografia lhe foi concedida por leis posteriores, e a referida entidade continua detendo, nos dias de hoje, essa autoridade oficial por delegação do Poder Público;

VI) porque a ABL detém delegação legal para ditar normas de ortografia e porque ela exerce tal autoridade por via do VOLP, a grafia neste constante é lei e a ela devemos prestar obediência, ainda que com ela não concordemos pelas mais diversas razões, inclusive de ordem científica, como, às vezes, acontece com outras leis, às quais, todavia, continuamos a obedecer.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.