Gramatigalhas

Havia dado é cacófato?

Havia dado é cacófato? Professor esclarece a dúvida.

5/6/2013

O leitor Rodrigo Dumans envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:  

"Prezado Prof. José Maria. Entendo que esse 'poderoso rotativo' escancarou o vício de linguagem conhecido como cacófato, logo no início da seguinte migalha: "Enem" (Migalhas 2.274 - 24/11/09). Estou correto? Se positivo, serio o caso de aplicar ao redator alguma chibatada? Saudações."  

Para comprovação de sua assertiva, o leitor transcreveu o texto trazido por Migalhas

"O STF derrubou a decisão que havia dado a 21 alunos de um colégio judaico de SP o direito de fazer o Enem em outro dia que não fosse sábado. A prova está marcada para o fim de semana de 5 e 6 de dezembro. E sábado é o "shabat", dia de descanso semanal no judaísmo."

 

1) Um leitor indaga se o encontro de sons que ocorre na expressão havia dado é cacófato.

2) Genérica e tecnicamente, cacófato ou cacofonia "é um vício resultante do encontro de vocábulos que no conjunto se prestam à formação de termo inconveniente".1

3) Na visão rígida de Alfredo Gomes, basta o vocábulo pouco fino, formado pelo encontro do final de uma palavra com o começo da outra, para configurar o cacófato, como é o caso de fica cá, cama minha, prima minha, uma mão.2

4) Por seu lado, Júlio Ribeiro conceitua cacofonia como o "encontro de duas palavras que produza uma terceira de significação baixa ou torpe".3

5) No ensino de Júlio Nogueira, "é a formação ocasional de palavras ridículas ou pouco decentes pelo encontro de sílabas finais de uma com o começo de outra: ela trina já que tinhas, alma minha, já sinto nunca pus, vez passada (vespa assada)".4

6) A par dessa discussão - se há necessidade de formação de uma palavra baixa e torpe, ou se basta um resultado sonoro pouco fino - o certo é que, modernamente, por conceito, só se considera cacófato o som ridículo ou obsceno, verdadeiramente inaceitável, proveniente da união das sílabas finais de uma palavra com as iniciais da que lhe vem a seguir. Ex.: "Vou-me já, porque já está pingando" (em realidade, a pessoa do exemplo se vai apenas porque a chuva já começou).

7) Essa, aliás, é a conclusão que se extrai do conceito de Eduardo Carlos Pereira, quando assevera que cacofonia "consiste na junção de duas palavras de modo tal que se forme uma outra de sentido torpe ou ridículo".5

8) Por outro lado, atente-se a que, se o cacófato é erro, não se deve cair no exagero da cacofatomania, que é escrúpulo ridículo, que busca espreitar tal ocorrência em qualquer trecho ou encontro de sílabas.

9) A gramática atual, em verdade, não considera erros dessa natureza expressões como alguma cacofonia (macaco), alma minha (maminha), ela tinha (latinha), fé de mais (fede mais), por cada (porcada), por tal (portal), uma mão (mamão).

10) Com propriedade, lembra Luiz Antônio Sacconi que, "modernamente, só se considera cacofonia se a palavra produzida for chula, obscena, realmente ridícula e inaceitável", acrescentando que "a gramática atual já não condena, portanto, estes encontros: ela tinha, nosso hino, por cada limão, uma mala".6

11) Nesse sentido, basta ver que o art. 183, VII, do Código Civil de 1916, ao discriminar os impedimentos dirimentes absolutos, refere que não pode casar "o cônjuge adúltero com o seu co-réu por tal condenado", devendo-se anotar que tal encontro nem sequer foi lembrado na polêmica entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro.

12) Analisando a expressão por conveniente (porco) do art. 436 do Código Civil de 1916, refere também Luciano Correia da Silva que, para a existência do cacófato, "não basta que o encontro seja apenas desagradável: é necessária a torpeza, a obscenidade, ou a contundente grosseria", razão pela qual "associações como a vista no destaque (por + con) não representam cacofonia".

13) Nessa linha, para tal autor - que lembra, de passagem, que "os escritores portugueses nunca se preocuparam muito com certas dissonâncias, que para muitos guardiões do vernáculo seriam cacofonias" - de agrupamentos como "'intrínseca validade" e "por tal", "uns podem ser malsoantes, desagradáveis; outros nem a isso chegam".

14) E continua ele, em lição firme e sem meias palavras, que "cacofonia mesmo haverá em 'vou-me já' 'lá trina' 'provoca gado' 'garfo deu' 'tifo deu'".7

15) Antonio Henriques e Maria Margarida de Andrade apontam como "malsoante colocação pronominal" a estrutura "se as não satisfizer" existente no art. 45 do Código Civil brasileiro de 1916.8

16) E ao comentarem a estrutura "a não possa guardar", existente no art. 1.270 do Código Civil de 1916 - por eles reputada "infeliz colocação pronominal" - observam também tais autores que "a questão do cacófato e relativa e que muitos dos assim chamados cacófatos receberam a chancela do uso, inevitáveis que são", muito embora seja "preferível evitá-los".9

17) Em outra obra escrita solitariamente, Antonio Henriques também anota que "tempo houve em que a preocupação dos gramáticos (gramatiqueiros) era colecionar cacófatos. Hoje, sabe-se de encontros inevitáveis de silabas que não mais despertam a atenção, e já disse alguém que o cacófato e ridículo; mais ridícula e a caca ao cacófato".10

18) Artur de Almeida Torres, por um lado, aduz para cacofonia o rígido conceito de "encontro de palavras que formem outra de sentido torpe, ridículo ou desagradável: 'Já sinto as minhas aflições'; a boca dela; 'Ele só tem uma mão'; intrínseca validade'".

19) Por outro lado, ressalva a existência de cacófatos "que não são passíveis de censura, já porque aparecem em frases feitas, e sem sucedâneos perfeitos (da nação, de balde, por tal), já pela sua habitualidade nas páginas de nossos maiores escritores (alma minha, como elas, as não).

20) Por fim, exatamente para esses últimos casos, refere a advertência de Rui Barbosa, para quem encontros dessa natureza têm de ser tolerados, porque "a lei da necessidade obriga as exigências da eufonia a condição fatal de transigir".11

21) Domingos Paschoal Cegalla, por um lado, observa que "evitar os cacófatos não deve tornar-se preocupação obsessiva de quem fala ou escreve, tanto mais porque alguns há que são inevitáveis"; por outro lado, como "convém evitá-los o mais possível", aconselha três estratégias simples para a vida prática: a) "substituir por sinônimos as palavras geradoras de cacofonias"; b) "mudar essas palavras de lugar na frase"; c) "alterar a estrutura da frase".12

22) Em mesma esteira, adverte Napoleão Mendes de Almeida ser infundado o escrúpulo de se evitarem encontros tais como "no novo processo", "no nosso caso"ou "uma mão", sendo totalmente desnecessárias construções como "em o novo processo", "em o nosso caso" ou "'u' a mão".13

23) A respeito do último aspecto observado, entretanto, Cândido Jucá Filho fala tão-somente em questão de preferência e aponta exemplo de Ernesto Carneiro Ribeiro, que fala "em o número II do art. 46".14

24) Acresça-se que Rui Barbosa, em observações ao art. 1.675, II, do Projeto do Código Civil, intentando garimpar vício na expressão última moléstia (mamo), dizia que ela não soava bem a ouvidos afinados, mas receava fazer alegação nesse sentido, já que poderia "ver invocada em honra do projeto a alma minha de Camões".15

25) Mesmo assim, a sugestão acabou acarretando mudança de redação, como se vê do art. 1.668, II, do Código Civil de 1916: moléstia de que faleceu.

26) No campo dos textos de lei, o art. 35, § 4°, do Código Civil de 1916, ao tratar do domicílio das pessoas jurídicas, registra a passagem "no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agencias ; Rui Barbosa refutou todas as objeções de cacófato, e até mesmo argumentou que não se pronuncia por (ô), mas pur, o que evita, no caso, qualquer sonância incomoda.16

27) O mesmo Código Civil de 1916, no art. 1.270, também registra: "Ao depositário será facultado, outrossim, requerer depósito judicial da coisa, quando por motivo plausível, a não possa guardar"; não há notícia de invectivas fundadas e frutíferas contra tal redação.

28) Por outro lado, o Código Comercial, no art. 43, de igual modo, estatui: "A fiança será conservada por inteiro, e por ela serão pagas as multas em que o corretor incorrer, e as indenizações a que for obrigado, se as não satisfizer".

29) De modo específico para o exemplo da consulta, em síntese, pode-se dizer o que segue: I) O encontro de sons na expressão havia dado não é dos mais agradáveis ao ouvido; II) É certo que dele resulta uma sonoridade pouco elegante; III) Pode haver, até mesmo, quem entreveja nesse encontro de sons alusão à homossexualidade; IV) Também indisputável que uma simples alteração de havia por tinha bastaria para evitar a confusão; V) Em termos de um conceito moderno do que seja cacófato, porém, não parece haver como condenar seu redator.

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1 Cf. RIBEIRO, João. Gramática Portuguesa. 20. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923. p. 246.

2 Cf. GOMES, Alfredo. Gramática Portuguesa. 19. ed. Livraria Francisco Alves, 1924. p. 471.

3 Cf. RIBEIRO, Júlio. Gramática Portuguesa. 8. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1908. p. 328.

4 Cf. NOGUEIRA, Júlio. Programa de Português – 3ª série secundária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 241.

5 Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 263.

6 Cf. SACCONI, Luiz Antônio. Nossa Gramática. São Paulo: Editora Moderna, 1979. p. 270.

7 Cf. SILVA, Luciano Correia da. Manual de Linguagem Forense. São Paulo: EDIPRO, 1991. p. 86.

8 Cf. HENRIQUES, Antonio; ANDRADE, Maria Margarida de. Dicionário de Verbos Jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 139.

9 Cf. HENRIQUES, Antonio; ANDRADE, Maria Margarida de. Dicionário de Verbos Jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 126.

10 Cf. HENRIQUES, Antonio. Prática da Linguagem Jurídica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 30.

11 Cf. TORRES, Artur de Almeida. Moderna Gramática Expositiva. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1966. p. 223.

12 Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 60.

13 Cf. ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981. p. 45 e 61.

14 Cf. JUCA FILHO, Candido. Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: FENAME - Fundação Nacional de Material Escolar, 1963. p. 233.

15 Cf. BARBOSA, Rui. Parecer sobre a Redação do Código Civil. Rio de Janeiro: edição do Ministério da Educação e Saúde, 1.949. p. 437.

16 Apud SILVA, Luciano Correia da. Manual de Linguagem Forense. São Paulo: EDIPRO, 1991. p. 86.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.