O leitor Rafael Pimenta envia à coluna Gramatigalhas a seguinte indagação:
"Prezados, indago se gramaticalmente é correta a afirmação, consignada no Migalhas 1.118 (2/3/05): 'Em verdade, Migalhas quis é poupar os leitores de mais essa'. O verbo ser também não teria que estar no passado? Um forte abraço."
1) Existem, em português, normas de correlação, de correspondência temporal ou, ainda, de consecução dos tempos verbais (em latim, com regras mais rígidas, “consecutio temporum”), determinadoras de harmonização quanto ao uso das formas dos verbos.
2) Por essas normas é que, na prática, assim se redigem os seguintes exemplos, guardando a correlação dos tempos (o uso primeiro de um tempo exige o emprego de um outro a seguir):
a) “Se é clara, a lei dispensa interpretação”:
b) “Se for clara, a lei dispensará interpretação”;
c) “Se fosse clara, a lei dispensaria interpretação”.
3) Por aplicação desses princípios, não se olvide, nesse ponto, a lição de Vasco Botelho do Amaral: “Modernamente, contra a índole da língua dos melhores escritores, com freqüência se perde de vista o paralelismo das formas verbais, e redige-se: ‘Há dias que se trabalhava’. Evite-se essa construção”. Em tal caso, o correto é redigir-se: “Havia dias que se trabalhava”.1
4) Juntando os problemas de referência a tempo passado e a tempo futuro no que tange ao verbo haver, Arnaldo Niskier sintetiza o problema da seguinte forma: “Tendo como ponto de referência o momento presente, use a para o futuro e há para o passado. Se o ponto de referência já for passado, use havia em vez de há”.2 Exs.:
a) “Ele estará casado daqui a dois meses”;
b) “Ele está casado há dois meses”;
c) “Ele estava casado havia dois meses”.
5) Para ilustrar, veja-se que, ao comentar o art. 324 do Projeto do Código Civil – que registrava “se forem casados há mais de dois anos” – Rui Barbosa, preocupado com o assunto, já questionava a estrutura de modo expresso: “Forem está no futuro; há, no presente. Será legítima esta combinação gramatical?”3
6) Em análise do exemplo “A Espanha já lutava há muito tempo contra aquele semelhante estado de coisas”, José de Sá Nunes aponta a ausência de correlação entre os tempos – há no presente e lutava no pretérito imperfeito – explicando: “Assim nesta como em todas as construções análogas, o verbo da segunda oração tem de ficar, obrigatoriamente, para que haja “consecutio temporum”, no mesmo tempo em que se acha o verbo da oração anterior: se esta tem o verbo no presente, no presente há de se estar o verbo daquela; e se o verbo de uma se acha no passado, também no passado se deve achar o verbo da outra”.
7) Em seguida, traz tal autor exemplos de autorizados escritores, que fizeram uso adequado da consecução dos tempos:
a) “Havia dois dias que nenhum incógnito atravessava o Crissus” (Alexandre Herculano);
b) “Começara, havia dois meses, a guerra da Criméia” (Rui Barbosa).
8) Remata ele, todavia, com a observação de que “nem sempre os dois verbos deverão ficar no mesmo tempo, presente ou passado, porque muitas vezes a verdade dos fatos exige que os verbos estejam em tempos diferentes”.
9) E exemplifica os casos de tal aspecto:
a) “Escrevia então o jovem poeta de São Paulo, há mais cinqüenta anos”;
b) “Há dezessete anos, o progresso material desconhecia a precisão dos cafés” (Camilo).
10) Alinhando significativas observações para conseguir adequada consecução dos tempos verbais, o próprio José de Sá Nunes, por primeira regra, anota que, quando se emprega o imperfeito do subjuntivo na oração condicional, o verbo da oração principal deve ficar no futuro do pretérito ou no imperfeito do indicativo. Exs.:
a) “Se quisesse anular a sentença, o advogado deveria entender-se com a Justiça”;
b) “Se quisesse anular a sentença, o advogado devia entender-se com a Justiça”.
11) Em segunda regra, leciona que, quando o verbo da oração condicional está no futuro do subjuntivo, emprega-se, na oração principal, o futuro do indicativo, ou, às vezes, o imperativo. Exs.:
a) “Se quiser anular a sentença, o advogado deverá entender-se com a Justiça”;
b) “Se o advogado quiser anular a sentença, entenda-se com a JustiçaI”.
12) Em terceira observação, realça o ilustre gramático que “o que não está em harmonia com a índole de nosso idioma, nem encontra apoio nos grandes padrões da vernaculidade, é a correlação do imperfeito do subjuntivo com o futuro do indicativo. Ex.: “Se quisesse anular a sentença, o advogado deverá entender-se com a Justiça” (errado).4
13) Não se olvide, também, o ensinamento de Vitório Bergo, que parte de um exemplo de Alexandre Herculano: “... eles tinham sido, havia dois séculos, inimigos armados...”; e registra sua lição: “deve empregar-se havia (pretérito imperfeito) e não há (presente do indicativo) para indicar o termo de período referente a época passada”.5
14) Oportuno, neste assunto, é atentar a dois importantes lembretes de João Ribeiro:
I) “Na correlação dos tempos só importa conhecer os casos em que os verbos se correspondem em modos diferentes”;
II) Nesse assunto, “não só as regras são todas lacunosas, como a verdade geral é que só o sentido, positivo ou hipotético, isto é, o modo e não os tempos, determina o uso. Dizer que quando o sentido é incerto ou hipotético o verbo vai para o subjuntivo, é nada dizer, pois isso decorre da definição do subjuntivo”.6
15) E se complemente com a doutrina do mesmo gramático, para quem “a falta de simultaneidade de tempos nas proposições” configura, em realidade verdadeiro galicismo, como nos seguintes exemplos:
a) “É isso que me incomodou” (errado)
b) “Foi isso que me incomodou” (correto);
c) “É Jesus quem dizia...” (errado);
d) “Foi Jesus quem dizia” (correto).7
16) Com a exposição dos princípios e regras que devem ser obedecidos em tais circunstâncias, podem-se extrair as seguintes conclusões para o exemplo que motivou a consulta:
a) “Migalhas quis é poupar os leitores de mais essa” (errado);
b) “Migalhas quis foi poupar os leitores de mais essa” (correto);
c) “O que o Migalhas quis é poupar os leitores de mais essa” (errado);
d) “O que o Migalhas quis foi poupar os leitores de mais essa” (correto).
----------
1 Apud ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981. p. 133.
2 Cf. NISKIER, Arnaldo. Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700 Respostas. Rio de Janeiro: Consultor, Assessoria de Planejamento Ltda., 1992. p. 4.
3 Cf. BARBOSA, Rui. Parecer sobre a Redação do Código Civil. Rio de Janeiro: edição do Ministério da Educação e Saúde, 1949. p. 141.
4 Cf. NUNES, José de Sá. Aprendei a Língua Nacional (Consultório Filológico). 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1938. vol. I, p. 12-13 e 26-27.
5 Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas bastos, 1944. vol. II, p. 131.
6 Cf. RIBEIRO, João. Gramática Portuguesa. 20. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923. p. 190.
7 Ibid., p. 250.