Gramatigalhas

Tinha imiscuído-se, ou Tinha-se imiscuído, ou...?

Tinha imiscuído-se, ou Tinha-se imiscuído, ou...? O professor José Maria da Costa esclarece.

3/11/2010

O leitor Luiz Otávio de Lima Pereira envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas :

"Parabenizo-os pela ótima qualidade dos textos de Migalhas, não só pela escolha dos assuntos, como também pela boa redação. Sem assumir postura professoral, pois errar é humano, peço licença para que revejam a expressão 'IMISCUíDO-SE', usada na notícia 'Judiciário x Legislativo' (Migalhas 2.082 - 11/2/09). Atenciosamente."

1) Um leitor encontrou num texto a seguinte construção: "... o fato de o Judiciário ter, de certa forma, imiscuído-se na esfera legislativa..." e indaga se ela é correta.

2) Faz-se ligeira adaptação na frase (apenas por questões didáticas e de raciocínio, já que se torna à frase original no fim): "... o Judiciário tinha imiscuído-se...". Em sua nova forma, anota-se, de início, a existência de uma locução verbal (mais de um verbo fazendo o papel de um só), em que tinha é o verbo auxiliar, e imiscuído é o verbo principal (e está no particípio).

3) Confirma-se a existência da locução verbal (ou seja, de dois verbos fazendo o papel de um só), quando se diz mentalmente "... o Judiciário se imiscuiu...", onde se vê apenas um verbo em tempo simples.

4) Acresce dizer que, na estrutura considerada, ainda sobra o pronome oblíquo átono se para ser usado com os verbos da locução.

5) Uma primeira observação a ser feita é que um pronome oblíquo átono não tem autonomia sonora, de modo que fica na dependência do verbo, que é a palavra à qual se liga; e esta é a efetiva detentora dessa autonomia sonora.

6) Em termos práticos, nesses casos, a indagação a ser adequadamente feita é a seguinte: quanto à sonoridade e à eufonia, qual o melhor lugar para o pronome: antes do auxiliar, entre o auxiliar e o principal, ou após o principal? O assunto é estudado por um capítulo da Gramática denominado topologia pronominal ou colocação dos pronomes.

7) Uma segunda observação é que, no caso das locuções verbais com o principal no particípio, são possíveis, em tese, duas colocações do pronome: I) – "... o Judiciário se tinha imiscuído..." (próclise ao auxiliar); II) – "... o Judiciário tinha-se imiscuído..." (ênclise ao auxiliar). Mas não se permite ênclise ao principal: "... o Judiciário tinha imiscuído-se..." (errado).

8) Anote-se, em continuação, que também se impede a próclise ao auxiliar, quando o pronome coincide com o começo da frase. Exs.: I) – "... o Judiciário se tinha imiscuído... " (correto); II) – "Se tinha imiscuído o Judiciário..." (errado).

9) Também se verifique que obsta a ênclise ao auxiliar a existência de uma daquelas palavras que normalmente atraem o pronome para antes do verbo num tempo simples (palavras negativas, advérbios, pronomes relativos, pronomes indefinidos e conjunções subordinativas). Exs.: I) "... o Judiciário não se tinha imiscuído... " (correto); II) – "... o Judiciário não tinha-se imiscuído..." (errado).

10) Vejam-se, assim, em resumo, as possibilidades de colocação do pronome no caso de locução verbal com o principal no infinitivo, com a indicação de sua correção ou erronia entre parênteses: I) – "Se tinha imiscuído o Judiciário" (errado); II) – "... o Judiciário se tinha imiscuído... " (correto); III) – "... o Judiciário tinha-se imiscuído..." (correto); IV) – "... o Judiciário tinha imiscuído-se..." (errado); V) – "Não se tinha imiscuído o Judiciário..." (correto); VI) – "... o Judiciário não se tinha imiscuído..." (correto); VII) – "... o Judiciário não tinha-se imiscuído..." (errado); VIII) – "... o Judiciário não tinha imiscuído-se..." (errado). Enfatize-se: não se admite, em hipótese alguma, em português, ênclise ao particípio.

11) Com as ponderações feitas, retorna-se ao exemplo da consulta: I) "... o fato de o Judiciário se ter, de certa forma, imiscuído na esfera legislativa..." (correto); II) "... o fato de o Judiciário ter-se, de certa forma, imiscuído na esfera legislativa..." (correto); III) "... o fato de o Judiciário ter, de certa forma, imiscuído-se na esfera legislativa..." (errado).

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.