O leitor Álvaro Braga Lourenço envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:
"Prezados, gostaria de enviar uma dúvida para o ilustre José Maria da Costa, gramático do Migalhas, que sempre nos brinda com seus esclarecimentos precisos. No Migalhas 2.102 (16/3/09 – ""Kirchnerismo""), foi publicada a seguinte frase: 'Assim, antecipa-se as eleições antes que os problemas cheguem à classe baixa.' A dúvida consiste justamente no conflito entre o emprego da voz passiva sintética ou a utilização do sujeito indeterminado. A meu ver a frase transcrita está incorreta, pois deveria prevalecer a concordância verbal de acordo com a voz passiva sintética, não?"
1) Um leitor indaga se é correto o verbo no singular no seguinte exemplo: "Assim, antecipa-se as eleições antes que os problemas cheguem à classe baixa".
2) Num caso como esse, para saber qual a forma correta, é importante verificar qual a função do se e o próprio comportamento da estrutura sintática como um todo, no que tange à concordância verbal.
3) Para facilitar o entendimento prático da questão, pode-se dizer que, em frases como essa, em que há um se acoplado ao verbo, deve-se ver em qual de dois modelos o exemplo se encaixa e, então, extrair as conclusões mais adequadas.
4) Um primeiro modelo é "Aluga-se uma casa", no qual se acham presentes os seguintes aspectos: I) – Pode-se dizer o exemplo de outra forma – "Uma casa é alugada"; II) – É, portanto, o que denominamos uma frase reversível; III) – Em casos como esse, o exemplo está na voz passiva sintética; IV) – Em termos técnicos, o se é uma partícula apassivadora; V) – O sujeito do exemplo é uma casa; VI) – Porque o sujeito é uma casa, quando se diz casas, o verbo deve ir para o plural, já que a regra geral de concordância verbal determina que o verbo concorda com o seu sujeito; VII) – O correto, então, no plural, é "Alugam-se casas", e não "Aluga-se casas".
5) Essa, aliás, é uma construção muito comum nos meios jurídicos, de modo que se há de zelar pela concordância adequada no plural, e não no singular, em casos como os que seguem: "Buscaram-se soluções para o conflito"; "Citem-se os réus"; "Devolvam-se os autos"; "Entreguem-se os autos da carta precatória"; "Intimem-se as testemunhas"; "Processem-se os recursos".
6) Um segundo modelo é "Gosta-se de um bom vinho", do qual se podem extrair as seguintes ilações: I) – O exemplo não pode ser dito de outra forma (ninguém pensaria em dizer "Um bom vinho é gostado"); II) – Não é, portanto, uma frase reversível; III) – Nesse caso, o exemplo não está na voz passiva, muito menos na voz passiva sintética; IV) – O "se", no exemplo, não é partícula apassivadora, mas símbolo (ou índice) de indeterminação do sujeito; V) – O sujeito da oração não é "um bom vinho", mas é indeterminado; VI) – seria impossível considerar um bom vinho o sujeito, porquanto, como bem lembra Sousa e Silva, "o sujeito é membro regente, não pode vir regido de preposição"1; VII) – Em tais circunstâncias, pela própria estrutura sintática apontada, se, em vez de um bom vinho, se diz bons vinhos, o sujeito não se altera, mas continua indeterminado; VIII) – Exatamente porque, ao se pluralizar o referido termo, não se altera o sujeito, não há razão alguma para modificar o verbo; IX) – O correto, então, no plural, é "Gosta-se de bons vinhos", e não "Gostam-se de bons vinhos".
7) Também é comum essa construção nos meios jurídicos, de modo que se há de atentar à concordância adequada no singular, e não no plural, em casos como os que seguem: "Trata-se de embargos à execução"; "Proceda-se aos inventários"; "Obedeça-se aos princípios legais". Lembra-se que o traço comum, nesses casos, é a existência de uma preposição antes do termo que seria levado a pensar ser o sujeito (de embargos, aos inventários, aos princípios).
8) Com as ponderações feitas, volta-se ao exemplo da consulta – "Antecipa-se as eleições", do qual se podem extrair as seguintes conclusões: I) – Pode-se dizer o exemplo de outra forma – "As eleições são antecipadas"; II) – É, portanto, o que se chama uma frase reversível; III) – Nesse caso, o exemplo está na voz passiva sintética; IV) – O "se" é o que se chama partícula apassivadora; V) – O sujeito do exemplo é as eleições; VI) – Porque o sujeito é as eleições e está no plural, o verbo deve ir para o plural, para obedecer à regra geral de concordância verbal de que o verbo concorda com o seu sujeito; VII) – O correto, assim, no plural, é "Antecipam-se as eleições", e não "Antecipa-se as eleições".
_______________
1 Cf. SILVA, A. M. de Souza e. Dificuldades Sintáticas e Flexionais. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1958, p. 264.