A leitora Viviane Gouveia dos Santos envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:
"Gostaria que me explicassem se o Direito como ciência tem de possuir linguagem própria como outras ciências como Medicina, Física ou Matemática? Mas com isso, a sociedade não se afastaria ainda mais, por não entenderem?"
1) Uma leitora envia a seguinte mensagem: "Gostaria de que me explicassem se o Direito como ciência tem de possuir linguagem própria como outras ciências, como Medicina, Física ou Matemática? Mas com isso, a sociedade não se afastaria ainda mais, por não entenderem?"
2) Se, por um lado, o literato produz arte, com liberdade para empregar os vocábulos que melhor sugiram seu estado de espírito e sua criatividade, já o profissional do Direito (que frequentou um curso de ciências jurídicas e sociais), por outro lado, produz ciência, cuja linguagem é técnica e precisa.
3) Bem por isso, em termos práticos, é inconveniente, de um modo geral, substituir termos e locuções por sinônimos, a pretexto de evitar repetições.
4) Nessa esteira, lembrando que "a precisão da linguagem jurídica desaconselha tais substituições", observa Geraldo Amaral Arruda que, "firmado o título do instituto jurídico com a função de determinado adjetivo restritivo, será impróprio substituir substantivo e adjetivo por sinônimos ou pretensos sinônimos".
5) E alinha tal autor um rol dessas impropriedades, muitas vezes de mau gosto: estatuto minorista, estatuto repressivo, estatuto adjetivo civil, representante ministerial, fase inquisitorial, insuficiência probatória, em vez de: Código de Menores, Código Penal, Código de Processo Civil, representante do Ministério Público, fase do inquérito policial, insuficiência de provas.
6) A questão é tão arraigada nos meios forenses, que até mesmo resvala para o lado anedótico, como a história que se conta do causídico atuante na Justiça Militar, que ao Código Penal Militar jamais atribuía esse nome, mas sempre o rebatizava como pergaminho repressivo castrense; ou do extremo a que chegou um representante do Ministério Público, o qual, ao oferecer denúncia por lesões corporais em briga havida durante um jogo de futebol, asseverou ter-se dado o evento durante pugna de ludopédio.
7) Bem no estilo "seria cômico, se não fosse trágico", prestigioso jornal deste Estado, em artigo no qual se pretendia demonstrar que os jovens advogados tentam modernizar o idioma jurídico, noticiou que um deles, para não repetir a expressão Lei das Sociedades Anônimas, não teve dúvidas em chamá-la de diploma do anonimato.
8) A necessidade de um vocabulário preciso e científico se faz evidente até mesmo em determinados dispositivos legais.
9) Veja-se, por exemplo, o que segue: "Nos embargos infringentes e na ação rescisória, devolvidos os autos pelo relator, a secretaria do tribunal expedirá cópias autenticadas do relatório e as distribuirá entre os juízes que compuserem o tribunal competente par o julgamento" (art. 553 do Código de Processo Civil).
10) Sabido é pela praxe que tais cópias serão entregues tão-somente aos que haverão de participar de modo efetivo do julgamento, e não a todos os integrantes do tribunal, o qual, como um todo, não deixa de ser competente para o julgamento.
11) Desse modo, melhor seria dizer turma julgadora em lugar de tribunal.
12) Em verdade, por ser ciência, o Direito tem uma linguagem própria, de modo que querer simplificá-la, com a abolição ou o enfraquecimento de sua terminologia técnica, a pretexto de tornar seu texto acessível ao povo a todo custo – como, aliás, têm pregado até mesmo entidades como a maior associação de magistrados do país – demonstra uma visão distorcida do que seja a realidade científica e se apega a uma atitude que se pode classificar, no mínimo, como demagógica.
13) Observem-se, em paralelo, os livros, os artigos e os relatos de Medicina ou de Odontologia: ninguém, até hoje, questionou o nível de sua linguagem, nem os termos técnicos envolvidos em sua redação. Além disso, dificilmente o resultado de um exame laboratorial vai ser entendido na totalidade por um paciente. E ninguém jamais pregou que a linguagem dos relatórios de exames laboratoriais deva ser simplificada, para ser entendida pelo leigo.
14) Nesse caso, é fácil dizer a sequência: o médico se incumbirá de dar as explicações necessárias, para que o paciente tenha a exata compreensão e extensão dos termos do resultado escrito. De semelhante modo, uma coisa é o relacionamento do advogado com o texto redigido das sentenças e dos acórdãos. Algo bem diverso é como esse advogado vai explicar ao cliente eventuais tópicos da sentença mais difíceis de compreensão pelo leigo.
15) Isso não quer dizer que não se devam policiar e coibir os excessos da linguagem empregada pelos operadores, a qual, em diversos de seus aspectos, esta sim, afasta a sociedade do Direito, quer como ordenamento, quer como ciência. Nessa esteira, podem-se evitar, sem dúvida, os termos empolados e difíceis, as construções arrevesadas, eventuais citações de outros idiomas que se afigurem desnecessárias, longos períodos que significam rigorosamente nada, extensas digressões que não explicam coisa alguma. Isso, porém, pode ser creditado na conta de um (mau) estilo de redação desenvolvido pelos operadores do Direito, de um jargão fossilizado e de uma miopia de análise, os quais levaram o pessoal do Direito a crer que tais características demonstram uma cultura superior de quem assim fala ou escreve.