O enforcement das normas é um dos principais aspectos a serem levados em conta quando se examina o bom funcionamento de uma sociedade e de suas instituições. Ao legislador compete elaborar e fazer aprovar a proposta de dispositivo legal no âmbito do Poder Legislativo, mas não apenas isso. No momento da formulação, cabe-lhe igualmente ter presente que o cumprimento da norma que elabora, tanto por quem deve zelar por sua aplicação e observância, quanto pela sociedade como um todo que deve acatá-la, deve ser algo simples e direto. O mesmo raciocínio se aplica aos técnicos, gestores e autoridades que elaboram normas infralegais.
A eficácia e a efetividade de uma norma podem ser mais bem percebidas quando esta é plenamente executada, momento esse em que o público alvo, e em última instância a sociedade lato sensu, nela identifica uma realidade jurídica apta a produzir os efeitos pretendidos por quem a elaborou.
O ideal seria que a execução pudesse verificar-se em sua plenitude desde a entrada em vigor do instrumento legal. No entanto, não é incomum que ocorra um significativo lapso de tempo entre uma coisa e outra. Mais do que simples recalcitrância ou desconhecimento do conteúdo, o lapso de tempo por vezes decorreria do fato de haver uma lacuna entre a norma em vigor e seu esperado cumprimento, por não estarem claros os “degraus” que necessitam ser galgados por quem deve acatá-la ou aplicá-la, de maneira que a norma jurídica se torne parte do dia a dia das pessoas, através das relações sociais ou profissionais que mantêm. Em outras palavras, além do entendimento da norma, é preciso que os elementos técnicos para o seu cumprimento estejam idealmente indicados no texto legal. Disso se trata quando nos referimos metaforicamente a “degraus”.
Quando esses “degraus” ficam mais visíveis, o enforcement por parte das autoridades, termo aqui entendido como sendo o dever e a ação de fazer cumprir as normas, se produz mais facilmente.
Tomemos dois exemplos recentes que tratam de governança e de sua correspondente tentativa de enforcement na administração pública federal. Estamos falando da Instruçao Normativa Conjunta (INC) MP-CGU 1, de 10 de maio de 2016, e do decreto 9.203, de 22 de novembro de 2017, também conhecido como Decreto de Governança. Ambos vêm transformando o entendimento que se tinha sobre gestão pública no Brasil e também contribuindo indiretamente para a observância de outras normas legais e infralegais no âmbito federal, como veremos adiante.
A Instrução Normativa Conjunta n°1/2016 é uma norma técnica oriunda do então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Controladoria Geral da União. Exorta o uso da governança, da gestão de riscos e dos controles internos com vistas ao aprimoramento da gestão pública. Sua chegada em meados da década passada coincidiu com o aumento da percepção entre gestores públicos e setores da sociedade sobre a necessidade de o País contar com uma administração pública moderna, eficiente e eficaz. Em suma, uma administração pública compromissada com os princípios de integridade e transparência.
A INC 1/2016 inovou de duas maneiras. Primeiramente, colocando por escrito ideias e conceitos que eram discutidos quase que de forma exclusiva na Academia, salas de reunião e gabinetes de gestores e altos servidores públicos. Conceitos e ideias que, a bem dizer, careciam tanto de uma formulação clara quanto de materialização na letra da norma. Em segundo lugar, apresentando esses mesmos conceitos e ideias em um formato jurídico-normativo para o amplo conjunto do funcionalismo público federal.
O decreto 9.203/17, por sua vez, também seguiu na mesma direção de modernização da gestão pública. O Decreto trata da governança propriamente dita; dos elementos que a compõem; do conceito de governança pública; e de quem pode e deve implementá-la na Administração Pública Federal (APF), propugnando o firme patrocínio da alta administração do órgão e/ou de seu comitê de governança.
De acordo com o Referencial Básico de Governança do Tribunal de Contas da União (BRASILIA, 2014), governança “é o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade.” Como já salientado, a INC 1/16 inovou ao formalizar percepções e abrir o campo para o uso de ferramentas e tecnologias gerenciais do setor privado na de gestão pública. O Decreto de governança, por sua vez, tornou mais robusto, abrangente e operacional o conjunto de ideias que tivera importante papel na elaboração da instrução normativa conjunta. Acresce-se a isso o fato que na hierarquia das normas jurídicas, o decreto 9.203/17 ocupa posição mais elevada que a da Instrução Normativa Conjunta MP-CGU 1/16, o que demonstraria, de forma inequívoca, a importância crescente que o tema vem merecendo por parte de autoridades e gestores públicos ao longo do tempo.
A transformação em lei do projeto de lei de Governança (PL 9.163/17) que se encontra atualmente sob análise no Congresso Nacional irá, quando aprovado, alçar a governança a um ponto ainda mais alto no conjunto das normas que regem a Administração Pública Federal (APF).
E ainda que estejamos aguardando esse ansiado desfecho, cabe frisar que mesmo antes de se ter aprovada uma lei de governança, os referidos Decreto e Instrução Normativa Conjunta já são instrumentos aptos a serem utilizados na construção de uma administração pública mais eficiente, eficaz e efetiva, já que deixam visíveis os “degraus” para que isso aconteça. Esses três conceitos essenciais, coincidentemente iniciados pela letra “E”, para se ter uma administração pública dotada de alto nível de desempenho possuem especificidades que valeriam ser aqui ressaltadas. Augustinho Paludo (2016) esclarece que:
“Eficiência é o uso racional e econômico dos insumos na produção de bens e serviços: é uma relação entre insumos, produtos, qualidade e custo.
Eficácia é o grau de alcance das metas (ou objetivos de curto prazo), é uma medida de resultados utilizada para avaliar o desempenho da administração.
Efetividade é o impacto final das ações, é o grau de satisfação das necessidades e dos desejos da sociedade pelos serviços prestados pela instituição. A efetividade vai além das entregas imediatas (metas/objetivos) e analisa transformações causadas pela execução das ações.”
É de se supor que a implementação de tais princípios na administração pública seja capaz de infundir-lhe um novo vigor, capaz de se refletir em um nível de desempenho mais elevado.”
Ao contrário do que possa parecer, a ideia de uma administração pública de alto desempenho calcada nos três “E” não é nova. Na década de 1970, tivemos o surgimento da “New Public Management (NPM)” ou gerencialismo, como ficou conhecida no Brasil. A NPM surgiu no Reino Unido, fruto de fatores conjunturais observados em outros países da Europa, nos Estados Unidos e demais países anglo-saxões como Austrália e Nova Zelândia. Fatores resultantes de uma conjuntura marcada por: a) limitações e disfunções do modelo burocrático weberiano; b) os altos e crescentes custos do sistema de bem-estar social (welfare state) assumidos pelo Estado; c) a crise fiscal e econômica na esteira das crises do petróleo de 1973 e 1979; e d) a perda de competitividade e eficiência dos serviços públicos.
Todos esses fatores contribuíram à época para o aparecimento de um novo modelo de administração pública que em pouco tempo cruzaria as fronteiras do Reino Unido para chegar a outros países desenvolvidos que, aos poucos, foram aderindo, em maior ou menor grau, ao ideário do “New Public Management”. Movimento que se estenderia a outras partes do mundo nas décadas seguintes.
Contudo, mesmo tendo surgido como uma alternativa ao modelo burocrático weberiano e envolto na esperança a ele atribuída de ser uma opção capaz de impulsionar o desempenho do setor público, o gerencialismo acabou incorporando várias características do weberianismo como a meritocracia, a profissionalização dos quadros, a separação entre bem público e privado e o formalismo normativo.
Uma diferença marcante entre os dois modelos, no entanto, é a de que o controle é feito a posteriori no gerencialismo, com base nos resultados alcançados, ao passo que é feito a priori no modelo burocrático weberiano. Frise-se que essa mudança de foco é crucial para entendermos a ênfase que o gerencialismo confere à medição de desempenho, ao cumprimento de metas e de objetivos, e à verificação da efetividade e não apenas a mera observância das normas e regulamentos.
O modelo gerencialista inovou ao enfatizar a importância do planejamento estratégico, do monitoramento e da avaliação, e ao defender uma estrutura operacional mais enxuta, flexível e descentralizada para as organizações públicas. Nessa mesma linha, defendeu a adoção de um estilo de liderança que conferisse aos gestores públicos maior autonomia, ao mesmo tempo em que lhes exigia observância quanto ao cumprimento dos objetivos fixados, da apresentação de resultados, da transparência dos atos praticados e quanto ao uso dos recursos colocados à disposição deles.
O gerencialismo defende a incorporação e a adaptação de ferramentas e de metodologias de gestão oriundas do setor privado, a fim de proporcionar maior eficiência, produtividade e qualidade na prestação de serviços públicos à sociedade. Além disso, exorta organizações públicas a emularem, no que couber, o trabalho de empresas privadas bem-sucedidas, tendo como meta proporcionar maior benefício ao cidadão, que paga impostos e deseja ter como contrapartida serviços públicos de qualidade (NASCIMENTO, 2021).
Antes da INC 1/16 e do Decreto de Governança, pode-se dizer que adoção do gerencialismo no Brasil teve como etapa precursora a gestão do Ministro Luiz
Carlos Bresser Pereira à frente do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), durante do primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). O pensamento gerencialista pode ser visto no documento do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE), de 1995, que traçou a evolução da administração pública brasileira e fez um diagnóstico que em vários pontos segue atual.
De forma tão ou mais expressiva ainda que no PDRAE, tal pensamento viu-se refletido no embate parlamentar para a aprovação da Emenda Constitucional 19/98, que incluiu o princípio da eficiência na lista dos princípios administrativos reunidos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Princípio esse que se juntou aos demais princípios administrativos constitucionais (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência). A incorporação da eficiência na Constituição Federal de 1988 foi o ponto alto de um debate de alto nível ocorrido à época, que considerou a modernização da gestão como sendo uma política de Estado.
Com base nesses antecedentes histórico-administrativos e nos aproximando do período atual, não seria equivocado dizer que tanto a INC 1/16 quanto o decreto 9.203/17 possuem um viés gerencialista, que favorece a busca por maior desempenho, controle e resultados, aspectos que contribuem para lograr o enforcement do conjunto normativo que rege o funcionamento da APF.
Daí que a INC 1/16 e o decreto 9.203/17 teriam, ao mesmo tempo, uma essência deliberativa e pedagógica que proporciona segurança e orienta o gestor, da mesma forma como familiariza o cidadão com relação aos conceitos mais recentes utilizados na gestão pública brasileira, permitindo-lhe refletir sobre os caminhos que levam a uma administração pública de alto desempenho e envidar esforços nesse sentido.
Por outro lado, tanto a Instrução Normativa Conjunta quanto o Decreto de Governança podem igualmente ser considerados meios mais modernos e, por conseguinte, mais adequados para auxiliar a instrumentação de outros dispositivos legais, incluídos aí alguns de natureza constitucional. Tendo entrado em vigor, respectivamente, vinte oito e vinte sete anos após a promulgação da Constituição Federal Brasileira em cinco de outubro de 1988, ambos dispositivos normativos vêm demonstrando potencial em favor do estabelecimento de uma gestão pública eficiente, eficaz e efetiva, onde se observe a plena implementação do que dispõe, por exemplo, o mencionado Art. 37 da Constituição Federal. E mesmo contribuir na implementação do Art. 3°, que lista os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a saber: a) garantir a independência e o desenvolvimento nacionais; b) erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais; c) promover a superação dos preconceitos de raça, sexo, cor, idade, e de outras formas de discriminação.
Para além, contudo, da discussão sobre modismos aplicáveis à forma de gestão pública e qual o melhor modelo teórico administrativo a ser seguido1, as novas ferramentas, metodologias e deliberações amparadas pelo que dispõe a INC 1/16 e o decreto 9.203/17, além da futura lei de governança, quando estiver em vigor, trazem, desde já, um novo significado à implementação de normas legais. No caso da Constituição Federal, os constituintes de 1988 não tinham como imaginar à época os instrumentos que anos depois passariam a ser utilizados na fase de implementação. É de se supor que muitos ficariam admirados em ver hoje em dia como as novas ferramentas e metodologias gerenciais ajudam a tornar letra viva a norma por eles idealizada.
A aplicação, abrangência e aprimoramento de instrumentos jurídicos alinhados à nova gestão pública, como a instrução normativa conjunta e o decreto de governança aqui descritos, já conquistou espaço e voz nos esforços de implementação de dispositivos da legislação brasileira. O que é alvissareiro, pois vários desses dispositivos integram a base normativa sobre a qual se erigirá uma administração pública moderna e apta a vencer os desafios do tempo em que vivemos.
_____________
BRASIL. Constituição Federal de 1988
BRASIL. Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017, que dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
BRASIL. Instrução Normativa Conjunta MP/CGU nº 1, de 10 de maio de 2016, que dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo Federal.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança. Disponível aqui. Acesso em: 11 nov. 2019.
NARDES, Augusto. Da Governança à Esperança. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
NASCIMENTO, Almir L. O Novo Papel da Gestão na Política Externa. Cadernos de Política Exterior Ano VII número 10. Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília 2021
NASCIMENTO, Almir L.; COELHO, Rodrigo M. G. Relações exteriores e a modernização administrativa do MRE. Cadernos de Política Exterior, Brasília, v. 3, n. 6, p. 63-96, dez. 2017.
PALUDO, Augustinho V. Administração pública. 5a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
_____________
1 Esse é um debate de ideias que segue em aberto e para o qual o gerencialismo trouxe visões e soluções importantes, como o foco nos resultados, e que seguem enfrentando a prova do tempo com êxito relativo reconhecido.