Governança: uma boa prática

Governança, comportamento e vieses

Governança, comportamento e vieses.

6/1/2022

Decisões fazem parte do nosso cotidiano em todas as esferas da vida. Passamos o dia decidindo. Mas, como decidimos? Em que momentos tomamos certeza de algo? O processo cognitivo tem sido profundamente pesquisado por neurocientistas, psicólogos e estudiosos da economia comportamental.

A partir da década de 70, diversos estudos científicos1 passaram a revelar que o raciocínio humano não segue o padrão idealizado de cognição lógica e objetiva, como idealizado em tempos anteriores. Na verdade, foram identificadas diversas inconsistências do pensamento no processo de tomada de decisão humana e, consequentemente, no comportamento adotado.

Por essa razão, nas últimas décadas, muito se tem pesquisado sobre os processos cognitivos e sobre os vieses capazes de impactar a decisão humana, gerando, inclusive, algumas rupturas e reformulações em diversos ramos do conhecimento.

O tema teve reflexo por todo o mundo. A ONU produziu relatório com seu programa de desenvolvimentos sustentáveis para os próximos anos (até 2030), baseado em ações que utilizam insights comportamentais.

Comumente conhecida como Agenda 20302, o relatório, que tem formato de plano de intenção, dá importância às ações que incentivam o engajamento e utilizam como insumo a maneira como as pessoas tomam decisões, como ponderam sobre a relação com o meio ambiente, influenciam e interagem entre si, bem como a respeito da forma como desenvolvem suas crenças e atitudes. E, tais ações podem indicar as melhores formas de implementação desses projetos.

Dois pesquisadores merecem especial destaque nesse contexto: Daniel Kahneman e Richard Thaler, ambos vencedores do “Prêmio Nobel de Economia”3.

Em 2002, Daniel Kahneman foi laureado por sua contribuição sobre o julgamento humano e a tomada de decisões sob incerteza. Em 2017, Richard Thaler recebeu o prêmio por suas contribuições à economia comportamental, que integrou, definitivamente, a psicologia à economia.

No clássico “Rápido e Devagar: duas formas de pensar”, Daniel Kahneman (2012) explica, figuradamente, que o cérebro é composto de dois sistemas de pensamento, sendo um automático, precipitado e intuitivo; e o outro, reflexivo e cauteloso. Aponta, ainda, que o cérebro é uma máquina associativa, que se baseia em heurísticas, podendo ser afetado por simplificações e sofrer diversos vieses cognitivos.

Richard Thaler (2019) utiliza o termo “misbehaving”, que significa comportamento desviante, para explicar o comportamento e a tomada de decisão das pessoas em dissonância com o modelo do “Homo Economicus”, criatura ficcional idealizada pela teoria econômica padrão.

O fictício “Homo Economicus”, em verdade, contrapõe-se ao modelo real, o “Homo Sapiens”, porque ignora a complexidade do raciocínio e as nuances da natureza humana que interferem na tomada de decisão.

Para Robert Burton (2017), “o cérebro cria a sensação involuntária de ‘saber’” (p. 11), e a certeza sobre algo é, na verdade, uma sensação mental, não necessariamente baseada em um fato ou evidência, mesmo que as pessoas confiem que tal certeza seja um produto da razão.

Isso não significa que as pessoas são totalmente racionais ou irracionais, mas que a tomada de decisão pode sofrer influências das quais sequer temos conhecimento a respeito. É por essa razão, que, algumas vezes, somos capazes de raciocínios extremamente complexos, mas também podemos cometer erros banais quando estamos muito cansados, por exemplo.

À propósito, em pesquisa realizada com um grupo de juízes, verificou-se que, quando cansados e com fome, os magistrados decidiram mais vezes pela “opção padrão” de negar pedidos de liberdade condicional (mantendo a prisão do réu). Diversamente, nas duas horas seguintes após o intervalo para descanso e refeição, verificou-se um aumento significativo de concessão de pedidos de liberdade condicional (“opção não padrão” de decisão) (KAHNEMAN, 2012).

Além do cansaço, a percepção sobre o tempo pode influenciar a tomada de decisão. O chamado viés do presente é responsável pela tendência de acreditarmos que são mais valiosas as oportunidades do momento. Esse viés, por exemplo, dificulta nosso autocontrole nas dietas, afinal, a gula se manifesta no presente e não no futuro.

De maneira geral, o presente e o “status quo” influenciam bastante a tomada de decisão. O futuro é duvidoso, e as pessoas sentem aversão à perda e são induzidas pelo efeito posse.

Aliás, pesquisas demonstraram que o sofrimento de perda é sentido duas vezes com mais intensidade do que a alegria pelo ganho de um mesmo bem (THALER, 2019). Assim, as pessoas se apegam a situações e coisas e resistem às mudanças, mesmo quando possam lhe ser favoráveis. Com isso, verificou-se que o viés do “status quo” e a aversão à perda são vieses poderosos e responsáveis por diversas ações humanas.

Um outro viés consiste no otimismo exacerbado. Em experimentos realizados por Daniel Kahneman e Dan Lovallo (2003), identificou-se que, em cenários de incerteza, executivos tendem a fazer previsões excessiva e ilusoriamente otimistas na tomada de decisão sobre grandes investimentos. Constatou-se, ainda, que, quanto maior é a incerteza, maior é otimismo (KAHNEMAN; LOVALLO, 2003).

Além do mais, porque é uma poderosa máquina associativa, o cérebro se vale de conhecimentos que já possui, utilizando heurísticas, para fazer julgamentos em situações de incerteza. O cérebro economiza tempo e energia, acessando rapidamente as informações pré-existentes (KAHNEMAN, 2012).

O processo de tomada de decisão, portanto, pode se basear em atalhos mentais, simplificando contextos que, em algumas situações, talvez precisassem de mais reflexão e conhecimento. Assim, informações desconhecidas, mas que podem ser necessárias, são ignoradas. Afinal, somos capazes de pensar com rapidez e extrair sentido de informações parciais, diante de contextos complexos (KAHNEMAN, 2012).

Isso não significa dizer que devemos abandonar a busca pela racionalidade, mas talvez devamos desconfiar de nossas impressões e de nossas certezas. É importante tomar consciência de nossa própria falibilidade cognitiva. “A falibilidade do conhecimento deve manter o sujeito sempre aberto para a possibilidade de estar errado [...] É preciso ter humildade diante do desconhecido” (MACHADO SEGUNDO, 2016, p. 46).

Além do mais, o real comportamento das pessoas pode “ser um valioso instrumento de investigação do próprio fenômeno jurídico, da efetividade das normas e da eficiência do sistema” (VILAR, 2021, p. 1). Afinal, o direito é um sistema normativo e valorativo de condutas e da interação humana em sociedade, razão pela qual não somente pode, mas deve recorrer às contribuições da neurociência e da psicologia, enquanto valiosos instrumentos à compreensão do comportamento humano e da tomada de decisão, também no cenário jurídico (VILAR, 2021).

Assim, também no contexto da tomada de decisão no âmbito da governança pública, a partir da consciência da falibilidade do pensamento humano e do real comportamento das pessoas – e, portanto, dos administradores públicos – é possível identificar motivações reais e padrões comportamentais, bem como buscar mecanismos que possam amenizar a influência de algumas heurísticas e vieses cognitivos.

O processo de tomada de decisão está estreitamente relacionado à governança, tendo em vista a entrega de bons resultados, finalidade principal e razão de existir da metodologia, depende de um processo decisório perfeitamente alinhado ao contexto circundante, fundado em evidências, mas também consciente da perspectiva comportamental diretamente envolvida.

Não podemos esquecer que decisões, ainda que analisadas numa perspectiva institucional – aqui entendidas como decisões tomadas por organizações, sejam elas públicas ou privadas – sempre são conformadas através de pessoas físicas. Seres humanos, portanto, que, fatalmente, incorporam vieses e heurísticas no seu comportamento diário, refletindo na tomada de decisões da vida real.

A definição de qual estratégia será seguida por uma instituição pública envolverá, necessariamente, o julgamento humano e a tomada de decisão sob incerteza, ainda que seja uma diretriz legal a determinação de que o processo decisório deva ser “fundamentado em evidências” (BRASIL, 2017). Alguns autores denominam esse fenômeno como “estratégia de governança (CAPANO, G.; HOWLETT, M; RAMESH, 2014).

O decreto 9.203/17, é a norma brasileira que dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. No artigo 5º, são definidos os mecanismos para o exercício da governança, cabendo, à autoridade pública, “a definição de diretrizes, objetivos, planos e ações, além de critérios de priorização e alinhamento entre organizações e partes interessadas, para que os serviços e produtos de responsabilidade da organização alcancem o resultado pretendido” (inciso II) (BRASIL, 2017). Isso significa, exatamente, que a autoridade pública deve realizar escolhas, e, tais ecolhas, sem dúvida, estão permeadas de vieses inconscientes, embora, obviamente, não sejam totalmente irracionais.

A mens legis do referido Decreto n. 9.203 entende e absorve essa ideia ao afirmar que a liderança, um dos mecanismos da governança, “compreende [o] conjunto de práticas de natureza humana ou comportamental exercida nos principais cargos das organizações, para assegurar a existência das condições mínimas para o exercício da boa governança”. Portanto, a natureza e o comportamento humanos devem ser considerados como elementos importantes para a governança.

De fato, as decisões institucionais, sobretudo as públicas, são (e devem ser) especialmente motivadas, fundadas em dados e informações claras e objetivas, que justifiquem a decisão tomada. Porém, no geral, a motivação não é exaustiva e abrange nuances que envolvem um amplo contexto, inclusive, as mencionadas inconsistências do processo cognitivo humano.

Sobre isso, a OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico chegou a recomendar que instituições públicas considerassem a aplicação de insights comportamentais, na definição de regras formais e práticas que regem o trabalho das organizações, visando reforçar a efetividade das decisões tomadas, bem como sua projeção e avaliação na implementação da política desenvolvida[4]. Sugeriu, ainda, explorar todo o potencial dos insights comportamentais enquanto ferramenta para o envolvimento das partes interessadas, inclusive com a coleta de feedback sobre o que realmente funciona.

Assim, tendo em vista que os insights comportamentais podem ser mecanismos que auxiliam o contexto da tomada de decisão, por ser uma tentativa de aproximação com a realidade do comportamento humano, compreendemos que podem ser amplamente utilizados na decisão sobre governança pública.

Concebemos que a absorção dessa perspectiva, na utilização dos mecanismos de liderança, estratégia e controle, possam auxiliar a “manter [o] processo decisório orientado pelas evidências, pela conformidade legal, pela qualidade regulatória, pela desburocratização e pelo apoio à participação da sociedade” (art. 4°, inciso VIII, decreto 9.203) (BRASIL, 2017).

Entendemos que todos esses assuntos estão interrelacionados e devem ser explorados em conjunto, para que, com integridade e responsabilidade, seja possível alcançar inteiramente o interesse público, no contexto da decisão sobre governança pública.

______

1 “Como exemplo, apontam-se os seguintes estudos elaborados por Amos Tversky e Daniel Kahneman: A Heuristic for Judging Frequency and Probability. Cognitive Psychology, v. 5, p. 207-232, 1973; Judgment under Uncertainty, Heuristics and Biases. Science, v. 185, n. 4.157, p. 1.124-1.131, 27.09.1974; Subjective Probability: A Judgment os Representativeness. Cognitive Psychology. New York, Cambridge University, n. 3, 1972, p. 430-454, 1982”. (VILAR, Natália Ribeiro Machado. Comportamento Litigioso: como a neurociência, a psicologia e a economia explicam o excesso de processos no Brasil [...]. Indaiatuba: Editora Foco, 2021).

2 Disponível aqui.

3 O nome correto é, na verdade, “Prêmio Sveriges Riksbank de Ciência Econômica em Memória a Alfred Nobel”. Disponível aqui

4 Disponível aqui.

BURTON, Robert A. Sobre ter certeza: como a neurociência explica a convicção. Tradução: Marcelo Barbão. São Paulo: Blucher, 2017.

BRASIL, Decreto 9.203, de 22 de dezembro de 2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

CAPANO, G.; HOWLETT, M; RAMESH, M. (Ed.). Varieties of governance: dynamicis, strategies, capacities. New York: Springer, 2014.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. E-book.

KAHNEMAN, Daniel; LOVALLO, Dan. Delusions of Succes: How Optmism Undermines Executive's Decisions. Harvard Business Review, v. 81, n. 7, p. 56-63, jul. 2003.

10 OECD (2017), Behavioural Insights and Public Policy: Lessons from Around the World, OECD Publishing, Paris. Disponível aqui

11 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. O direito e sua ciência: uma introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016.

12 THALER, Richard H. Misbehaving. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019. E-book.

13 VILAR, Natália Ribeiro Machado. Comportamento Litigioso: como a neurociência, a psicologia e a economia explicam o excesso de processos no Brasil. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.

14 World Development Report 2015: Mind, Society, and Behavior. [s.l.] The World Bank, 2014. Disponível aqui

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Colunista

Roberta Codignoto é presidente do Conselho de Ética da Rede Governança Brasil. Advogada e consultora de compliance. Voluntária em iniciativas de promoção de integridade. Conselheira da Comissão de Ética Pública. Especialista em Negociação pela Harvard Law School e em Compliance pelo INSPER. Pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV, pós-Graduada em Administração Jurídica pela EPD - Escola Paulista de Direito e graduada em Direito pela Universidade Ibirapuera.