Talvez não seja grande novidade saber que a população de analfabetos no Brasil é maior do que a de muitos países do mundo. São mais de 11 milhões de brasileiros acima dos 15 anos de idade que têm suas vidas limitadas por não entenderem nada do que dizem as palavras escritas (IBGE, 2020). Como ilustrado no filme “Central do Brasil”, que concorreu ao Oscar de melhor produção estrangeira em 1999, são pessoas que não conseguem escrever sequer um parágrafo na própria língua materna, quanto mais um bilhete ou carta.
Igualmente também não nos causa qualquer espanto, muito pelo contrário, a percepção sobre a importância da sistematização de uma política pública nacional de educação voltada a atender a realidade brasileira, indo muito além da previsão constitucional abstrata disposta no art. 6º. A garantia do direito social à educação fundamenta a necessidade de melhoria da condição social dos trabalhadores e cidadãos em geral. A busca destes objetivos exige das autoridades públicas a elaboração de um plano muito bem delineado, lastreado em dados e informações fidedignas, seguras e diretamente relacionadas ao ambiente que se pretende interferir.
Nessa perspectiva, a tomada de decisão baseada em evidências se mostra como um instrumento extremamente interessante e importante aliado no desafio de enfrentar as novas exigências da educação contemporânea, sem descurar do estágio de defasagem que se verifica em vários estratos da sociedade brasileira e se concentra de forma inaceitável em alguns deles. Mello (1991) nos chama a atenção para o fato de que "enfrentar novos padrões de produtividade e competitividade, impostos pelo avanço tecnológico, está levando à redescoberta da educação como componente essencial das estratégias de desenvolvimento".
Na prática, o Brasil vem dando passos vagarosos para amenizar estatísticas incongruentes com o século 21, no qual falar de inteligência artificial, robotização ou globalização já não causa estranheza. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Educação (PNAD), divulgada em julho de 20201, a taxa de analfabetismo no Brasil passou de 6,8%, em 2018, para 6,6%, em 2019, e o índice continua caindo ao longo do tempo em nível nacional. Em 2016, por exemplo, era de 7,2%.
Dados como esses ilustram como o ritmo lento na alteração desse quadro atrasa o cumprimento de metas estabelecidas na lei 13.005, de 25 de junho de 2014, que estabeleceu o Plano Nacional de Educação - PNE. Importante destacar que essa normatização elencou expressamente que as metas ali definidas deveriam ter como referência a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, o censo demográfico e os censos nacionais da educação básica e superior mais atualizados, disponíveis na data da sua publicação.
Aliava-se, em matéria de políticas públicas de educação, a necessidade de utilizarmos instrumentos de promoção do processo decisório fundamentado em evidências. Esse mecanismo foi incorporado ao Decreto n. 9203, de 22 novembro de 2017, que estabeleceu a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, disseminando então essa boa prática de governança para gama muito maior de políticas públicas.
No campo da educação, a proposta exposta no PNE era que o Brasil atingisse em 2015 a marca de 6,5% de analfabetos entre a população de 15 anos ou mais, e que em 2024 a taxa fosse zerada2. A realidade foi bem diferente do planejado e não trouxe o cotejo adequado ao cumprimento da diretriz exposta no art. 2°, inciso I, da lei 13.005, de 2014.
Só em 2019, portanto com quatro anos de atraso, a taxa nacional conseguiu ficar próxima da meta de 20153.
Informações como essas demonstram que, per si, a tomada de decisão baseada em evidências não traduz método único que garante o amplo alcance de metas previamente definidas. Por outro lado, porém, não pode ser desconsiderada como excelente ferramenta, inclusive para promover correção de rumos. Em adição, percebemos que o monitoramento e avaliação das evidências, entendidas como todos os dados e informações subjacentes à tomada de decisão, acrescem maturidade à entrega de valor público em qualquer política sob análise. Juntos, tomada de decisão e monitoramento, reproduzem com concretude e consciência a gestão pública.
Para entender melhor esse verdadeiro sistema desfavorável ao aprimoramento educacional brasileiro é necessário, ainda, desagregar os dados. Seja por faixa etária, classe social, raça e até localização geográfica. Essas discrepâncias acentuam as tão conhecidas e propaladas desigualdades brasileiras e puxam para baixo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país. Esses elementos também fortalecem o processo de tomada de decisão consciente defendido por uma política de boa governança.
Em termos geográficos, como evidencia o documento Mapa do Analfabetismo, que reúne indicadores levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), vinculado ao Ministério da Educação, em colaboração com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). As informações educacionais relativas aos municípios brasileiros em relação aos anos 2000 e 2001, que não se alteraram tanto por conta da já referida morosidade, mostravam que as pessoas que não sabem ler ou escrever estão distribuídas por todas as regiões do País. Porém a concentração é maior nos grandes centros urbanos, revelando distorções do acelerado e desordenado processo de urbanização pelo qual passou o Brasil.
Segundo os dados apurados, 25% dos analfabetos no país com 15 anos de idade ou mais se concentravam em 125 municípios, enquanto metade deles (cerca de seis milhões) habitava 586 cidades. Quando se olha o Brasil como um todo, os dados do IBGE apontam que 56,2% do total de analfabetos brasileiros com 15 anos de idade ou mais (cerca de 6,2 milhões) vivem na Região Nordeste, e 21,7% (cerca de 2,4 milhões), no Sudeste.
Outro traço geográfico marcante em termos proporcionais foi a profunda desigualdade regional, indicando a necessidade de formulação de políticas públicas diferenciadas que levem em conta circunstâncias regionais específicas. Enquanto o Sul e Sudeste, com 3,3%, têm as menores taxas relativas de analfabetismo entre os maiores de 15 anos de idade, o Nordeste tem o maior percentual, 13,9%. Entre esses dois extremos ficam o Centro-Oeste com 4,9% e o Norte, com 7,6%. As estatísticas tornam-se ainda mais dramáticas quando se analisam os dados relativos às pessoas com 60 anos de idade ou mais. 9,5% no Sul; 9,7% no Sudeste; 16,6% no Centro-Oeste; 25,5% no Norte; e 37,2% no Nordeste. Tristemente, o Nordeste foi a única região onde o analfabetismo cresceu relativamente entre 2018 e 2019.
Salta aos olhos, de forma alarmante, o fato de que o maior número de analfabetos em termos absolutos estava em 24 capitais, sendo os municípios de São Paulo e Rio de Janeiro líderes nesse triste ranking nacional. Mas proporcionalmente às populações totais de cada localidade, a taxa de analfabetismo no meio rural brasileiro era três vezes maior do que nas áreas urbanas: 28,7% e 9,5%, respectivamente. A situação fica ainda mais gritante quando se focalizam áreas rurais de regiões ou estados específicos. No Nordeste, o índice é de 40,7%, alcançando 49,2% no Estado do Piauí. O Sul tem a situação menos precária na área rural, com 11,9% de analfabetos.
Evidências como estas auxiliam claramente na identificação das necessidades prioritárias da sociedade, no estabelecimento de objetivos claros e na elaboração de estratégias para atingir as metas. Assim, a governança se consolida como metodologia voltada a encurtar esse caminho, a partir da utilização de mecanismos de liderança, estratégia e controle. A boa governança é, portanto, um meio para atingir um fim, qual seja, identificar as reais necessidades de uma sociedade e ampliar os resultados esperados (OCDE, 2017).
A renda familiar foi outro aspecto apurado pela PNAD Contínua que revelou uma relação causal direta com os índices de analfabetismo no Brasil. A pesquisa do IBGE apontou grandes disparidades entre os domicílios com renda superior a 10 (dez) salários mínimos, onde o índice ficou limitado a menos de 2%, e as famílias com renda menor do que um salário mínimo, nas quais o índice chegou a quase 30%. Esse quadro se mostrou ainda mais aviltado no Nordeste.
A discrepância entre as faixas etárias também deixa claro como o Brasil vem de uma base escolar muito frágil de décadas anteriores. Enquanto na faixa dos 10 a 19 anos de idade, o índice de analfabetos não chegava a 7,5% da população, 18% das pessoas com 60 anos ou mais de idade não conseguem ler ou escrever. Esta última faixa representava 20,4% em 2016 e 18,6% em 2018, indicando uma queda lenta e sutil ao longo de vários anos.
Além das diferenças entre as idades e de renda, os resultados estatísticos da PNAD Contínua Educação, divulgados em 2020, espelham desigualdades raciais na alfabetização brasileira. Enquanto a taxa de analfabetismo é de 3,6% entre os brancos com 15 anos ou mais, ela atinge 8,9% entre pretos e pardos, segundo os critérios do IBGE. A diferença aumenta ainda mais entre os que têm 60 anos ou mais de idade, para 9,5% e 27,1%, respectivamente.
Uma grande dificuldade em relação a essa multidão com gigantescas carências educacionais é o fato do Brasil possuir cerca de 49 mil professores atuando no primeiro ciclo do ensino fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), cerca de 800 mil no primeiro ciclo do Ensino Fundamental Regular e mais de 700 mil no segundo ciclo do Ensino Fundamental Regular4. São quantitativos considerados insuficientes para erradicar o analfabetismo em aproximadamente quatro anos.
Se os milhões de analfabetos com 15 anos ou mais de idade já é um número que assusta, chega a ser estarrecedor a quantidade de analfabetos funcionais existentes no Brasil. O conceito para se definir tal condição se refere às pessoas que até conseguem ler e escrever, mas são incapazes de interpretar o que leem e de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas. Esse contingente no país é associado àqueles com menos de quatro anos de estudo e calculado em torno de 30 milhões de pessoas.
Uma das características marcantes da sociedade brasileira na média são os poucos anos de estudo, que também decorrem de baixas taxas de sucesso escolar, especialmente nos primeiros anos de escolaridade. A insuficiência nos anos de estudo ou a baixa instrução são tão prejudiciais quanto ou até mais do que o próprio analfabetismo. Apesar de avanços nas últimas décadas, esse quadro também responde pela baixa produtividade do trabalhador brasileiro.
A PNAD Contínua Educação identificou que metade da população brasileira de 25 anos ou mais de idade não completou o ensino médio, o equivalente a 66,3 milhões de pessoas. Ainda é mais desalentador saber que mais da metade dos brasileiros com 25 anos ou mais de idade não completaram a educação escolar básica.
Em média, o brasileiro estuda 9,4 anos. Em 2016, a média era de 8,9. Ao desagregar tais dados, vemos que pessoas brancas estudam, em média, 10,4 anos, enquanto as pessoas pretas e pardas estudam, em média, 8,6 anos. As regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste ficam com as maiores médias de anos de estudo, com 10,1; 9,7; e 9,8 anos respectivamente. As regiões Nordeste e Norte ficaram abaixo da média do país, com 8,1 anos e 8,9 anos, respectivamente.
Esses dados certamente tornam mais clara a situação educacional que caracteriza a população brasileira. Por outro lado, sabemos que concretizar uma política nacional de educação efetiva exige muito mais do que a interiorização do ideal de "erradicação do analfabetismo". Cabe aplicá-la à luz de evidências claras que norteiem o processo decisório, levando a uma melhoria regulatória e garantindo a consistência sistêmica das ações propostas.
Verificamos, entretanto, que a falta de acompanhamento constante e controle das metas e objetivos propostos, formalizados, inclusive, por meio do Plano Nacional de Educação – PNE, podem prejudicar (e, ao que parece, estão prejudicando) o alcance dos resultados almejados, mesmo quando a tomada de decisão foi bem embasada na realidade social existente e em evidências consistentes.
Esse "monitoramento" que vem sendo realizado no Brasil parece ainda estar fragilizado, merecendo atenção por parte dos gestores e, também, da própria sociedade. Avançamos na definição de metas claras, fundadas em dados e informações coerentes. Para que ações educacionais brasileiras se tornem efetivas é necessário aperfeiçoar e implementar boas práticas de governança, conjugando os verbos "avaliar, direcionar e monitorar". É pelo monitoramento que será alcançado o valor público pretendido.
Referências bibliográficas
Bermúdez e Madeiro (2020). Com atraso, Brasil se aproxima de meta de alfabetização de 2015. Disponível aqui.
IBGE (2020). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro. Disponível aqui.
INEP (2003). Estudo detalha situação do analfabetismo no País. Brasília. Disponível aqui.
MEC (2014). Plano Nacional de Educação (Lei no. 13.005/2014). Brasília. Disponível aqui.
MELLO, Guiomar Namo de. Políticas públicas de educação. Estudos Avançados [online]. 1991, v. 5, n. 13 [Acessado 13 Setembro 2021] , pp. 7-47. Epub 09 Fev 2006. ISSN 1806-9592.
OECD (2017), Multi-level Governance Reforms: Overview of OECD Country Experiences, OECD Multi-level Governance Studies, OECD Publishing, Paris.
*Vládia Pompeu é mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (2015). Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrolo pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha - 2015). Especialista em Estudos de Defesa Nacional pela Escola Superior de Guerra (2020). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB (2010). Pós-graduada em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2005). Professora da Graduação e Pós-Graduação em Direito. Mentora em liderança pela Escola Nacional da Administração Pública (ENAP). Procuradora da Fazenda Nacional desde 2006. Ex- Procuradora do Estado do Pará. Ex-Corregedora da Agência Nacional de Aviação Civil. Ex-Corregedora-Geral da Advocacia da União. Ex-Advogada-Geral da União Adjunta. Atual Assessora Especial do Advogado-Geral da União. Redes sociais: @vladiapompeu
**Floriano Filho é coordenador de Educação Superior na Escola de Governo do Senado Federal. Pós-doutorado na Universidade Nacional Sun Yat-sen (Taiwan) sobre a economia política de segurança energética em Taiwan e na Ásia. Ph.D. em Desenvolvimento e Cooperação Internacional (Universidade de Brasília e estágios na SAIS, Johns Hopkins e ISS, Universidade de Tóquio), com foco nas relações estratégicas do Japão e da China. Pesquisador sênior (Fulbright-APSA) no Congresso dos EUA (2007-2008). Mestrados em Telejornalismo na Columbia University (1991), e em Políticas de Comunicação na Universidade de Westminster (Londres, 2001). MBA em TV Digital pela Universidade Federal Fluminense (2016). Foi estudante pesquisador sobre a sociedade da informação no Japão nas universidades de Tsukuba e Hitotsubashi (Tóquio, ‘93) e pesquisador na Universidade de Oxford (Comércio Global de Conteúdo Digital, 2006). Foi correspondente em Washington DC e repórter especial da TV Brasil. Em 2019, foi o delegado brasileiro no Fórum sobre o Desenvolvimento do Tibete (sua primeira visita ao Tibete ocorreu em 2012).
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1 IBGE (2020).
2 MEC (2014).
3 Bermúdez e Madeiro (2020).
4 INEP (2003).