A coluna German Report tem a honra de trazer aos leitores uma entrevista exclusiva com um dos maiores nomes do direito privado ocidental na atualidade: António Menezes Cordeiro, professor emérito da Universidade de Lisboa.
Menezes Cordeiro licenciou-se em direito em 1975 pela Universidade de Lisboa, onde concluiu o doutorado em 1985 com a tese Da Boa Fé no Direito Civil, a mais completa obra escrita em língua portuguesa sobre o princípio da boa-fé, na qual sobressai a minuciosa análise acerca da chamada boa-fé objetiva (Treu und Glauben, no vernáculo alemão), desenvolvida pioneiramente no direito germânico.
Durante o doutoramento, Menezes Cordeiro foi orientado pelo lendário Claus-Wilhelm Canaris, professor emérito da Universidade de Munique (Alemanha), com quem manteve amizade durante toda a vida, alimentada por estágios de pesquisas realizados por décadas na Ludwig Maximilian Universität, durante o verão europeu.
Dessa relação de afeto e intercâmbio científico nasceu a tradução para a língua portuguesa da monumental obra Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz – Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, uma publicação da Fundação Gulbenkian.
Menezes Cordeiro é um jurista completo, que aliou, como poucos, teoria e prática ao longo da vida. Na Faculdade de Direito, exerceu diversas funções acadêmicas, dentre as quais a de presidente do Conselho Diretivo (1989-1991), presidente do Conselho Científico (1998-2001) e Decano do Grupo de Ciências Jurídicas (2002-2022).
Regeu as disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, Teoria do Direito, Teoria Geral do Direito Civil, Direitos Reais, Direito das Obrigações, Filosofia do Direito, Direito da Economia, Direito do Trabalho, Direito Bancário, Direito Comercial e Direito dos Seguros. Atualmente, desenvolve intensa atividade como jurisconsulto, advogado e árbitro nacional e internacional na sociedade de advogados António Menezes Cordeiro e Associados.
Tem vasta e sólida produção acadêmica, merecendo destaque a emblemática obra "Da boa fé", o robusto Tratado de Direito Civil publicado em 14 volumes, bem como os livros Direito do Trabalho, Direito Bancário, Direito Comercial, Direito das Sociedades, Direito dos Seguros e Tratado da Arbitragem. É Diretor da Revista de Direito das Sociedades e da Revista de Direito Civil, além de Diretor-adjunto da Revista O Direito e membro da Comissão de redação da Revista da Ordem dos Advogados.
Nessa entrevista, Menezes Cordeiro fala sobre a relação com Canaris e sua importância para o direito privado ocidental, ressaltando também a relevância de Karl Larenz, um autor criticado por parte da doutrina nacional devido a seu envolvimento com o nacional-socialismo. O curioso, contudo, é que essa mesma doutrina não se furta de reverenciar autores italianos envolvidos com o fascismo e nomes nacionais simpatizantes e/ou apoiadores da ditadura militar.
Menezes Cordeiro recorda, porém, que a obra de Larenz posterior a 1943 é absolutamente incompatível com a ideologia nacional-socialista, algo objetivamente comprovável pela sua leitura. Se assim não fosse, provavelmente José Lamego, um conhecido antifascista, não teria traduzido o Methodenlehre (Metodologia da Ciência do Direito) para o português.
Nosso entrevistado fala ainda sobre suas primeiras impressões acerca do controverso projeto de reforma do Código Civil brasileiro, sobre o chamado “direito civil digital” e o crescimento da arbitragem no mundo. Em suma: uma entrevista imperdível!
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Durante sua vida acadêmica, o senhor manteve estreito contato com Claus-Wilhelm Canaris. Como foi a convivência com ele?
Em 1978/1979, escrevi, então como jovem assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, uma primeira versão das minhas Lições de Direito das Obrigações, mais tarde (1980) publicadas como Direito das Obrigações, dois volumes. Nessa ocasião, fiquei fascinado pelo princípio da boa-fé e pelas potencialidades que ele demonstrara, na Alemanha, no desenvolvimento do Direito civil. Praticamente todas as grandes descobertas do último século lhe podem ser reconduzidas: a culpa in contrahendo, o abuso do direito, a alteração das circunstâncias e a complexidade intra-obrigacional. Como obra de referência, tive acesso à habilitação do prof. Canaris, Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht. Obtida uma bolsa, dirigi-me por escrito, ao Prof. Canaris, pedindo que me aceitasse como doutorando. Aceitou. Conheci-o pessoalmente em Munique, em outubro de 1981, dando-lhe conta do meu projeto sobre a boa-fé. Devo dizer que ele não me levou a sério: fez-me algumas perguntas, para verificar se eu sabia o que estava em jogo. Sabia. Perguntou se não queria reduzir o âmbito da investigação. Mas fazê-lo, era abdicar da possibilidade de reconstruir, no plano do sistema, a boa-fé. Mantive contactos regulares. O Prof. Canaris era muito formal: só aos poucos foi quebrando o gelo. Finalmente, convidou-me para jantar em casa dele, na Mauerkirchenstraße, num bairro nobre de Munique. Fui muito bem acolhido pela esposa, conheci os filhos, então crianças. Recebi, até 1983, data do regresso a Lisboa, mais dois outros convites semelhantes. Mais tarde, regressei a Munique todos os anos, para estadas de dois meses, no Verão. Invariavelmente era convidado para jantar, na Mauerkirchenstraße. Apesar da diferença de idade, posso dizer que fomos amigos. Em 1991, convidei Canaris para Lisboa, onde apadrinhei o seu doutoramento honoris causa. Houve um alegre convívio, que envolveu estudantes e colegas. Mantive contactos regulares. A partir de 2001, arrendei um apartamento em Munique, que mantive até 2019. Ainda visitei o prof. Canaris várias vezes. Mas a sua saúde deterioru-se. Em 2007 participei num jantar em sua honra.
Resumidamente, como o senhor avalia a importância de Canaris para a evolução do direito ocidental?
Torna-se difícil sintetizar o relevo de Canaris. Foi importante nos países latinos, mormente com a divulgação do livro Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, que eu traduzi sob o título Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito: uma publicação da Fundação Gulbenkian, que conheceu várias edições e tiragens. Remeto para o artigo do Prof. Mario G. Losano, Das “Systemdenken” in den römischen Ländern, publ. no FS Canaris, II (2007), 1201-1221. Para além da revolução metodológica derivada do pensamento sistemático, Canaris teve influência direta no Direito bancário e no Direito das obrigações, em especial no domínio dos deveres acessórios. Teve, ainda, uma influência decisiva na reforma de 2001/2002, cuja divulgação procurei assegurar, numa série de artigos publicados na Revista da Ordem dos Advogados. Creio que, a larga distância, Canaris foi, no nosso tempo, o autor estrangeiro que mais influenciou a doutrina portuguesa, com prolongamentos no Brasil.
Canaris foi discípulo de Karl Larenz, que, na juventude, produziu alguns escritos de cunho nacional-socialista. No Brasil, alguns autores condenam as referências às obras de Larenz do pós-guerra devido à sua ligação com o nazismo, não obstante citem autores nacionais que defenderam a ditadura militar no país. Larenz deixou de ser estudado em Portugal por causa de seu passado?
Karl Larenz foi um neo-hegeliano notável, ainda que de leitura difícil e menos divulgada em Portugal. Na sua juventude e com o entusiasmo inicial criado pelo nacional-socialismo, na Alemanha, Larenz escreveu alguns artigos influenciados por essa onda. Todavia, em 1943, reviu essa posição, adotando orientações éticas incompatíveis com o nazismo. Tenho presentes os artigos de Rüthers, JZ 2011, 593 e de Canaris, JZ 2011, 879. Em Portugal, Larenz é conhecido pela Methodenlehre, pelo Allgemeiner Teil e pelo Schuldrecht. Não encontrou quaisquer resistências políticas. Aliás, a Methodenlehre foi traduzida em português pelo prof. José Lamego, conhecido antifascista, preso pela polícia política até ao 25 de abril de 1974.
O Brasil planeja reformar seu código civil (2002). Quais as vantagens e desvantagens em se atualizar uma codificação tão nova?
O projeto de reforma do código civil brasileiro de 2023 suscita dúvidas. Reformas como a alemã, de 2001/2002 ou a francesa, de 2016, exigiram estudos preparatórios de décadas. No Brasil, faz-se uma reforma ainda mais extensa em 180 dias. Apesar da excelência dos seus autores materiais, é difícil imaginar tal proeza. Quanto ao conteúdo da reforma, que atinge muitas centenas de artigos: é heterogénea, levantando dúvidas, em especial, na responsabilidade civil. No final de agosto, irei ao Brasil proferir conferências sobre o tema. Com muitas cautelas – pois a reforma tem níveis políticos nos quais não quero nem posso intervir – darei conta de mais pormenores.
Uma das grandes novidades constante do projeto é a criação de um 6º Livro intitulado “Direito Civil Digital”. Em sua visão, pode-se falar em um direito digital como uma área autônoma do direito ou em direito civil digital como uma subárea autônoma do direito civil, a exemplo do direito das obrigações e contratos?
O “Direito” digital acompanha toda a Ordem Jurídica. Seria bizarro falar-se, por exemplo, num “Direito de escrita”. O novo livro sobre Direito digital é interessante, mas esgotou-se em principiologias, em regras formais e numa responsabilidade por IA. Nada disso dá azo a um ramo civil.
Portugal planeja criar a curto prazo um novo livro no Código português para tratar do direito (civil) digital?
Nunca ouvira falar num novo livro civil sobre Direito digital. No princípio do século XXI, estudei, a pedido do então ministro da justiça (Doutor Vera Jardim) a oportunidade de, no Código Civil, acrescentar alguns artigos sobre “informática” (nome então dado à digitalização). Concluí pela negativa, acompanhado pela totalidade dos colegas consultados.
O art. 421-C § 1º II, a ser inserido no código civil, afirma que “a boa-fé empresarial mede-se, também, pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte”. Em sua visão, a boa-fé é medida pela expectativa comum a um determinado grupo de atores sociais ou pelo parâmetro ético-jurídico do homem reto e honesto, que tem consideração pelos interesses legítimos da contraparte, como preconizado no direito alemão?
A boa-fé implica um tratamento individualizado de cada ser humano. Não visa “expectativas comuns”, podendo tê-las em conta num modelo de decisão ao lado de outros parâmetros. O artigo 421-c, § 1.º, II não tem a ver com a boa-fé: antes com um estalão (standard) de conduta que se filia numa concretização do velho bonus pater familias. O uso excessivo e indevido do termo “boa-fé” só complica.
No Brasil, houve uma vulgarização da boa-fé (objetiva), decorrente, dentre outros fatores, do “método civil-constitucional”, que autorizava o juiz, com base na boa-fé, a afastar qualquer regra do Código Civil ou do contrato e criar a solução do caso concreto com base na tábua de valores da Constituição, na dignidade humana e na função social dos contratos. Como reação, uma corrente neoliberal, fortemente amparada em uma análise econômica do direito, pretende blindar os contratos comerciais da incidência da boa-fé. Em Portugal, a boa-fé não tem incidência sobre os contratos comerciais?
A vulgarização da boa-fé deve ser evitada. Em Portugal, o sistema, mediado pela boa-fé, pode afastar normas injustas, que o contrariem. Por exemplo: o senhorio deve fazer obras; as rendas estão congeladas; comete abuso do direito o inquilino que pague uma renda de 4 euros e exija obras de 100.000 euros.
Durante os trabalhos, surgiram diversas propostas destinadas a afastar a aplicação de institutos jusobrigacionais gerais aos contratos empresariais, como responsabilidade pré-contratual, violação positiva do contrato, adimplemento substancial, revisão por alteração superveniente das circunstâncias, etc. O direito comercial é um ramo autônomo e imune ao regime jurídico obrigacional geral?
Não creio que o Direito comercial seja um verdadeiro ramo autónomo. Deve a sua manutenção a respeitáveis tradições sócio-culturais. Os valores “comerciais”, com relevo para a tutela da confiança, são melhor prosseguidos pelo Direito civil. As decisões fundadoras da culpa in contrahendo e da alteração das circunstâncias são comerciais. Não entendo as “propostas” referidas.
A arbitragem tem ganhado espaço no mundo. Na Alemanha, porém, há um movimento destinado a impedir que complexas questões jurídicas fujam totalmente da jurisdição estatal para a jurisdição privada. A criação de Commercial Courts, com árbitros togados e procedimento em inglês, é uma expressão desse movimento. Qual o risco de o Estado perder o poder de dizer o direito em questões nucleares, como as que envolvem transações comerciais?
A arbitragem ocupa-se de temas que escapam às jurisdições estaduais. O problema não é o inglês: tem a ver com a rapidez, com o custo mais baixo, com a imagem de isenção, com a especialização dos árbitros, com a confidencialidade e com a possibilidade de escolher um árbitro em três. Em Portugal, a campanha contra a arbitragem derivou da condenação do Estado, em processos volumosos. Tais condenações advieram do facto de o Estado português, na sequência da crise das dívidas soberanas, ter deixado de cumprir uma série de contratos. Em geral, as condenações ficaram muito aquém do devido. O Estado não tem de se preocupar com o que as pessoas façam aos seus direitos disponíveis.