Voos em jatos particulares, passeios de iate, viagens de pesca foram mimos dados nos últimos anos por bilionários conservadores aos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, segundo matéria publicada no The Guardian e no periódico alemão Legal Tribune Online (LTO)1. Esses e outros escândalos comprometedores levaram a mais alta Corte dos Estados Unidos a adotar recentemente um código de ética.
Um feito histórico, segundo um comunicado emitido pelo próprio Tribunal no dia 13 de novembro do corrente ano. Segundo o LTO, o documento descreve, dentre outras coisas, as situações nas quais os juízes devem se declarar impedidos e se retirar de um processo – por exemplo, devido a "preconceitos pessoais" ou "interesses financeiros"2.
O código também proíbe os juízes e juízas de falar em eventos organizados por partidos políticos ou em campanhas eleitorais, além de restringir o recebimento – mesmo legal – de presentes.
Incerto permanece, contudo, quem teria competência para fiscalizar a aplicação do código de ética e quais seriam as sanções aplicáveis em caso de descumprimento. A lacuna foi admitida pelos próprios magistrados, que pretendem “discutir e aprofundar a questão”3.
Como noticiou o The Guardian, as chamadas organizações de vigilância não-partidárias criticaram o documento como uma "manobra de relações públicas para apaziguar o público americano, que exige mais de sua Corte Suprema"4.
Segundo o jornal, ao elaborar o código de ética, a Corte respondeu às pressões crescentes decorrentes de uma série de escândalos éticos envolvendo alguns juízes com alinhamento de direita. Entretanto, embora o novo código tenha sido concebido para acalmar a crescente inquietação sobre os padrões éticos do Tribunal, especialistas em ética judicial salientam que não existe qualquer mecanismo de enforcement, o que deixa os juízes, de fato, policiarem-se a si próprios.
O senador democrata Sheldon Whitehouse, forte defensor de um ethics code para a Suprema Corte, afirmou em vídeo publicado no X (Twitter) que o documento deixa sem resposta questões fundamentais sobre sua aplicação, concluindo que: "That job is not done", ou seja, o trabalho ainda não está feito.
O Brennan Center for Justice, um instituto político sem fins lucrativos, disse que o código de ética era "o mínimo que a Corte poderia ter feito" e lamentou a falta de uma revisão independente. E concluiu: "A Corte ainda tem um longo caminho a percorrer antes de poder afirmar que respondeu de forma significativa às preocupações do público"5.
Enquanto os juízes federais já estavam sujeitos a um código de conduta, inexistia até então um conjunto de regras correspondentes para o Tribunal mais poderoso dos Estados Unidos, lacuna que levou, na visão dos magistrados da Corte, ao "mal-entendido" de que eles não se sentiam limitados por quaisquer regras éticas.
O código de conduta foi motivado, dentre outros escândalos, por relatórios acerca dos caros presentes dados pelo magnata do ramo imobiliário Harlan Crow ao justice Clarence Thomas. Crow é um dos principais doadores do Partido Republicano, ao qual Donald Trump é filiado. De acordo com um relatório da publicação investigativa ProPublica, ele ofereceu a Thomas uma viagem à Indonésia em seu jato particular, em 2019, incluindo uma estadia em seu luxuoso iate.
Clarence Thomas, que adota normalmente postura conservadora na Supreme Court, justificou o fato por razões de segurança: ele fora desaconselhado a viajar em voos regulares devido à sua oposição ao direito ao aborto e a uma possível reação de esquerdistas violentos.
Além de Clarence Thomas, outro juiz conservador de direita, Samuel Alito, foi igualmente alvo de críticas. A ProRepublica acusa o justice de ter feito uma pescaria de férias com Paul Singer, importante doador do Partido Republicano. O problema é que a Suprema Corte se pronunciou várias vezes sobre casos em que o fundo de investimento de Singer era parte interessada.
Um relatório da Associated Press também acusa a juíza Sonia Sotomayor, nomeada por Barack Obama: seus assessores teriam tentado vender, “de forma ofensiva”, seus livros a universidades e bibliotecas, sendo a magistrada remunerada com dinheiro dos contribuintes6. A Suprema Corte não disse, porém, se esse comportamento específico seria proibido pelo novo código de conduta.
A existência de um debate público acerca dos padrões éticos dos magistrados da mais alta Corte de Justiça não é uma peculiaridade estadunidense. Na Alemanha, a discussão é antiga e o Tribunal Constitucional – Bundesverfassungsgericht (BVerfG) – tem diretrizes destinadas a regular a conduta de seus magistrados durante o período no cargo e fora dele.
Panorama na Alemanha
Com efeito, desde 2018 vigoram as regras contidas na chamada Diretrizes de Conduta para as Juízas e Juízes do Tribunal Constitucional: Verhaltensrichtlinien für Richterinnen und Richter des Bundesverfassungsgericht7.
Especula-se que o BVerfG teve motivo semelhante ao da Supreme Court para elaborar seu código de ética: a percepção pública da instituição, ou seja, a confiança que os jurisdicionados depositam na Corte. Na época, cresciam as críticas ao Tribunal sobretudo devido ao comportamento de alguns magistrados após o mandato de doze anos.
Segundo o Legal Tribune Online, suscitaram críticas na imprensa – e desconfiança na sociedade – a conduta de Hans-Jürgen Papier e Udo di Fabio, que, logo após deixarem o cargo, iniciaram notável carreira como pareceristas em questões jurídicas politicamente controversas8.
Papier, ex-presidente da Corte, envolveu-se na discussão política acerca da eliminação progressiva da energia nuclear e na crise dos refugiados; di Fabio emitiu parecer sustentando as (em sua visão, boas) chances de êxito do Estado Livre da Baviera em eventual queixa constitucional proposta contra a política de fronteiras abertas da ex-Chanceler Angela Merkel.
Embora essa tomada de posição não fosse proibida à época, nada é mais temido em Karlsruhe do que a politização do Tribunal. A história alemã dá boas razões para isso. E o exemplo norte-americano também: não é de hoje que os juízes constitucionais são vistos nos Estados Unidos como o braço estendido dos partidos políticos que os indicam para a Suprema Corte. Na Alemanha, ao contrário, o magistrado tem um dever de ingratidão (Undankbarkeitspflicht) para com aqueles que o indicaram ao cargo.
A primeira regra do código de ética alemão estabelece que os juízes do Tribunal devem pautar sua conduta, dentro e fora do cargo, de forma a não prejudicar a reputação da Corte, a dignidade do cargo e a confiança em sua independência, imparcialidade, neutralidade e integridade.
Seus membros devem exercer suas funções com independência e imparcialidade, sem preconceitos quanto a interesses ou relações pessoais, sociais ou políticas. Em sua conduta, devem zelar para que não surjam dúvidas quanto à sua neutralidade na condução do cargo em relação a grupos sociais, políticos, religiosos ou ideológicos. Isso, contudo, não exclui o pertencimento a tais grupos, nem impede, desde que com o devido comedimento, o engajamento ou a participação no discurso social (item 3).
Os juízes devem manter discrição em relação à suas atividades na Corte, sem prejuízo do segredo das deliberações (item 4). Eles devem ter a máxima contenção, exigida pelo cargo, ao emitir qualquer crítica a outras opiniões ou posições jurídicas, seja do próprio Tribunal ou de outros tribunais nacionais, estrangeiros ou internacionais (item 6).
Presentes e benefícios de qualquer tipo só são admitidos em contextos sociais e na medida que não sejam aptos a suscitar quaisquer dúvidas quanto à integridade pessoal e à independência do magistrado (item 7).
Em sessão plenária em 2003, o BVerfG fixou o limite de 150 Euros para quaisquer presentes recebidos por seus membros, havendo, além disso, um limite para remunerações por palestras e publicações9.
Com efeito, o item 8 do ethics code estabelece que o exercício de atividades extrajudiciais não pode interferir no exercício da atividade judicial. Isso se aplica, principalmente, a publicações acadêmicas, conferências, palestras e outras participações em eventos e viagens.
Segundo o item 9, os magistrados só podem aceitar remuneração por palestras, participação em eventos e publicações se e na medida em que isso não comprometa a reputação do Tribunal nem suscite dúvidas quanto à sua independência, imparcialidade, neutralidade e integridade.
A remuneração recebida deve ser devidamente divulgada no site da Corte, não sendo considerado problemático o fato de o organizador assumir despesas de translado, hospedagem e alimentação, desde que em razoável medida (entenda-se: grandeza).
Além disso, antes de participar de qualquer evento, os juízes do Tribunal Constitucional devem se assegurar de que o tipo de evento é compatível com a dignidade do cargo e os princípios gerais do seu exercício, e com a reputação do BVerfG (item 10), que goza, a propósito, de alto prestígio e credibilidade junto à sociedade alemã. Pesquisa realizada em 2013 colocou a Corte em primeiro lugar dentre as instituições democráticas mais confiáveis do país, à frente, portanto, do Executivo e do Parlamento10.
Nos termos do item 11, os magistrados da Corte não podem, evidentemente, emitir pareceres sobre questões constitucionais nem fazer previsões sobre o resultado de processos pendentes ou prestes a ser decididos.
O item 12 estabelece que, no contato com meios de comunicação social, os juízes e juízas da Corte Constitucional devem assegurar que a natureza e o formato de suas declarações sejam compatíveis com suas funções, com a reputação do Tribunal e a dignidade do cargo.
Como dito, o código de ética tem eficácia mesmo após o fim do mandato de magistrado constitucional. O item 13 é expresso no sentido de que os juízes do BVerfG devem manter contenção e discrição em suas declarações e comportamento em questões relacionadas ao Tribunal mesmo após o termo de seu mandato.
Após o término do mandato, os magistrados não podem intervir em processos judiciais que estavam em andamento na Corte durante seu mandato ou que estejam diretamente relacionados a esses processos. Nesses casos, eles não podem emitir pareceres, atuar como advogados, assistentes ou atuar de qualquer forma perante o Tribunal (item 14).
Além disso, durante o primeiro ano após o fim do mandato, eles estão proibidos de prestar qualquer tipo de consultoria nas áreas de competência de sua antiga câmara na Corte. Mesmo depois desse prazo, eles não podem atuar perante o Tribunal Constitucional como representante de qualquer das partes nas respectivas áreas, o que tem como objetivo evitar a impressão de uso inadequado de conhecimentos internos (item 15).
Os juízes do Tribunal Constitucional dedicam-se regularmente, em sessão plenária, a questões relativas à conduta adequada ao cargo, ao bom funcionamento das Diretrizes de Conduta e a seu eventual desenvolvimento. Cada membro da Corte tem o direito de levantar questões acerca do cumprimento e da aplicação dessas normas (item 16).
Da mesma forma que o ethics code da Suprema Corte norte-americana, as diretrizes do BVerfG também são desprovidas de sanções e inexequíveis, pois o Tribunal, enquanto órgão constitucional (Verfassungsorgan), não está submetido a controle oficial. Apesar disso, as regras são cumpridas pelos membros da Corte, o que garante ao BVerfG confiabilidade e respeitabilidade junto à sociedade alemã.
A situação no Brasil
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) não possui um ethics code como o da Suprema Corte norte-americana e nem Diretrizes de Conduta como as do BVerfG. Em 2020, a Suprema Corte brasileira editou um Código de Ética direcionado a seus servidores11.
Existem, no entanto, outras normas éticas aplicáveis aos ministros do STF e ao Judiciário como um todo, vez que nossa Constituição prevê diversas vedações a juízes, que alcançam os ministros do STF, como magistrados que são. A norma constitucional proíbe, por exemplo, que juízes exerçam, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo a de magistério; recebam, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo ou dediquem-se à atividade político-partidária.
A Constituição proíbe ainda que os magistrados recebam, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei, e exerçam a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento (art. 95, parágrafo único).
Desde 1979, vigora a Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN (Lei Complementar n. 35/79) com regras sobre a disciplina judiciária que, embora anteriores à Constituição Federal, continuam vigentes. O art. 35 desta Lei inaugura os deveres do magistrado, prevendo a obrigação de “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”, e finaliza exigindo dos juízes “conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
A LOMAN veda ao magistrado, ainda, manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, ainda que não seja seu, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças (art. 36, inciso III).
Para sancionar o descumprimento dos deveres do magistrado, a LOMAN prevê as penas disciplinares de advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade e aposentadoria compulsória (art. 42 e parágrafo único).
As penas de advertência e de censura não podem ser aplicadas a desembargadores e ministros, restando, em especial, as penas de disponibilidade (em que há afastamento temporário do cargo com possibilidade de retorno) e de aposentadoria compulsória (em que há afastamento definitivo).
Pela redação legal, eventual responsabilização de ministro acaba por implicar que se afaste do cargo, o que tem gerado questionamentos acerca da proporcionalidade das penas nesses casos.
Para juízes de primeiro e segundo graus, as penas disciplinares são aplicadas pelo tribunal ao qual está vinculado ou pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Como o STF não está sujeito à atuação correcional do CNJ, cogita-se que a própria Suprema Corte conduziria o procedimento administrativo ético-disciplinar.
Em 2008, o CNJ aprovou o Código de Ética da Magistratura Nacional. Por ser um ato normativo, a ele não se sujeitam os magistrados integrantes do STF. De todo modo, o Código prevê, para todos os demais magistrados, que atuem com imparcialidade e evitem todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito (art. 8º). Além disso, exige que ajam de forma prudente e equitativa na sua relação com os meios de comunicação social.
O objetivo fundamental dessas normas éticas, seja no Brasil, nos EUA ou na Alemanha, é, sem dúvida, manter a integridade de conduta do magistrado dentro e fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional, o que contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura.
Boas Festas a todos!
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1 US supreme court announces ethics code amid pressure over gift scandals. The Guardian, 13/11/2023. Confira-se ainda: Nach Richter-Reisen mit republikanischen Grossspendern: Supreme Court gibt sich Verhaltenskodex. LTO, 14/11/2023.
2 Confira a mencionada matéria publicada no LTO, 14/11/2023.
3 Confira a matéria no LTO, 14/11/2023.
4 Confira a mencionada matéria no The Guardian, 13/11/2023.
5 “The court still has a long way to go before it can claim to have meaningfully responded to the public’s concerns.”. The Guardian, 13/11/2023.
6 Confira a matéria do The Guardian, 13/11/2023.
7 A mencionada Diretriz está disponibilizada no site da Corte. Acesso em 19/12/2023.
8 Vertrauen und Verantwortung. LTO, 23/2/2017.
9 Confira a matéria publicada em LTO, 25/11/2023.
10 Confira a matéria publicada em LTO, 23/2/2017.
11 Confira a Resolução 711, de 24/11/2020.