Um dos temas mais comentados durante a pandemia de Covi-19 foi a existência (ou não) do chamado dever de renegociar. Inegavelmente, naquela circunstância dramática, como em outras situações de crise no contrato, a melhor solução era o consenso, o ajuste – de comum acordo – do contrato à nova realidade que se impunha nua e crua, alterada pela maior crise de saúde pública do século. E ninguém melhor do que as partes para (re)compor, com autonomia, seus interesses.
No exercício da autonomia privada, as partes podem, evidentemente, estipular deveres de renegociação diante de superveniências que perturbam a relação contratual, seja dificultando excessivamente o cumprimento da prestação, seja rompendo o equilíbrio originário entre as prestações ou frustrando o alcance do fim último (escopo) do negócio. Exemplos são as chamadas cláusulas de hardship, frequentes, sobretudo, em contratos complexos e vultuosos.
Se não há discussão acerca da legitimidade dessas cláusulas, o mesmo não ocorre quando se trata de impor judicialmente um dever de renegociar ex bonna fides, em regra contra a vontade de um dos contratantes. E aqui surgem discussões e dúvidas inquietantes: Qual comando o dever de renegociar imporia concretamente às partes: apenas entabular negociações ou chegar a um acordo? Como pleitear judicialmente esse dever?
E mais: Qual a utilidade prática – sobretudo sob a ótica da eficiência econômica – de um dever meramente procedimental, que obriga as partes a investir tempo e dinheiro em renegociar de boa-fé, se, afinal, sem o consenso, o contrato continua desequilibrado? Se as partes não chegam a um acordo, pode o juiz ainda alterar o pactuado?
A discussão em torno do dever de renegociar ex bonna fides envolve, primeiro, reconhecer a natureza jurídica desse dever e, em caso positivo, determinar seu conteúdo e os efeitos jurídicos decorrentes de sua violação. Essas são questões importantes a serem discutidas e decididas antes de se postular a existência de mais um dever lateral oriundo da boa-fé na fase de execução do contrato, nos termos do art. 422 CC.
Por isso, a opinião majoritária – inclusive no direito alemão, berço da celeuma – rejeita a imposição ex bonna fides de um dever jurídico de renegociar1, salvo previsão expressa no contrato. Nada obstante, a mais alta Corte infraconstitucional alemã – Bundesgerichtshof (BGH) – tem precedente reconhecendo a existência de um dever de cooperar (Mitwirkungspflicht) com a adaptação do contrato pleiteada pela parte prejudicada em decorrência de alterações supervenientes nas circunstâncias.
Para entender o caso
Para entender o caso, faz-se necessária breve retrospectiva histórica acerca do chamado dever de renegociar. As discussões acerca da existência de um dever jurídico ex bonna fides de renegociar surgiram no bojo da teoria da quebra da base do negócio jurídico.
Com efeito, a teoria da quebra da base do negócio parte da ideia de que é extremamente desleal o credor exigir o cumprimento do contrato tal como pactuado – em linguagem vulgar: exigir o cumprimento “a ferro e fogo” do acordo – quando eventos (de efeitos) extraordinários e imprevisíveis alterarem profundamente a base do negócio (e do consenso), tornando seu cumprimento extremamente gravoso para o devedor ou frustrando o fim último do contrato.
Nesse caso, o cumprimento inalterado do contrato torna-se irrazoável e surge para o contratante prejudicado uma pretensão à revisão do contrato. A teoria – aplicada por mais de um século com base na boa-fé objetiva (Treu und Glauben) do § 242 BGB2 – encontra previsão expressa no § 313 BGB desde a reforma do Código Civil alemão em 2002.
Os defensores do dever de renegociar argumentam que, se o dever de lealdade e consideração pelos interesses legítimos da parte prejudicada exige a adaptação do contrato às novas circunstâncias, esta teria um direito à adaptação ao qual corresponderia um dever da contraparte de renegociar os termos do negócio desequilibrado.
No direito alemão é antiga a ideia de que a boa-fé imporia a ambos os contratantes o dever de cooperar para a readaptação do contrato às novas circunstâncias. Karl Larenz (1903-1993), por exemplo, propôs, em 1941, um projeto de revisão do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) no qual constava expressa previsão da possibilidade de revisão judicial dos contratos por quebra da base do negócio e do dever de renegociar. Dizia o projeto:
“§ 19. Quebra da base do negócio. Se, em decorrência de alteração nas circunstâncias gerais que as partes, na celebração do contrato, esperavam que se mantivessem, for completamente destruído o equilíbrio, típico ou pressuposto segundo o sentido do contrato, entre prestação e contraprestação, cada parte é obrigada a cooperar para a adaptação do conteúdo contratual às novas circunstâncias. Se não houver acordo, qualquer das partes pode requerer a alteração judicial do contrato. Se for impossível uma adaptação às novas circunstâncias, qualquer das partes pode rescindir a relação contratual com efeitos imediatos.”3
Quatro décadas depois, Norbert Horn (1936-2023), discípulo de Helmut Coing, apresentaria uma das mais sólidas defesas em prol do reconhecimento do dever de renegociar fundado na boa-fé em artigo paradigmático intitulado Neuverhandlungspflicht, publicado na renomada revista Archiv für die civilistische Praxis em 1981 e em pareceres e sugestões para a reforma do livro das obrigações do BGB4.
Essas propostas, contudo, foram rejeitadas, inclusive durante a grande reforma de modernização do direito das obrigações do BGB em 2002. Com efeito, o legislador alemão positivou a teoria da base do negócio jurídico, em suas vertentes subjetiva e objetiva, no § 313 BGB, mas não fez qualquer referência a um suposto dever de renegociar, de forma que a figura não teve acolhida legal em seu próprio país de origem5.
Nada obstante, o 5º Senado do Bundesgerichtshof admitiu a existência desse dever em precedente julgado em 30/9/2011, no âmbito do processo BGH V ZR 17/11.
Os contornos fáticos do caso
Em 4/11/2008, as partes celebraram em cartório um contrato de permuta de imóveis por meio do qual o réu obrigava-se a transferir uma área de 28.699m2 ao município, que, em contrapartida, se comprometia a transferir área de igual dimensão e a pavimentar com betume uma estrada localizada em um terreno daquele. No pacto, os contratantes excluíram qualquer responsabilidade por vícios na coisa e afastaram expressamente quaisquer garantias pela dimensão, qualidade e características dos imóveis, objeto do contrato.
Medição posterior da área indicada na planta apontou, contudo, que o tamanho do terreno oferecido pelo réu era de apenas 18.632m2, fato que levou o município a pleitear extrajudicialmente a alteração do negócio. A contraparte, que àquela altura já constava como proprietária do imóvel no Grundbuch, o livro de registro de imóveis, simplesmente recusou a proposta de reajuste contratual sem fazer qualquer contraproposta, levando o município a rescindir o contrato em 2010.
Na ação judicial, ele pediu a devolução do imóvel ou, subsidiariamente, o pagamento de 18.120,60 Euros, além dos custos extrajudiciais com honorários advocatícios. Em reconvenção, o réu pediu a condenação do município a realizar a pavimentação da estrada.
O Tribunal de primeira instância da comarca de Paderborn julgou procedente a ação, determinando a devolução dos imóveis e improcedente a reconvenção, mas a sentença foi reformada, em 13/12/2010, pelo Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Hamm, atendendo ao pedido reconvencional do réu.
A decisão do OLG Hamm
Em apertada síntese, o município, autor da ação, pleiteava a invalidade do negócio por indeterminação do objeto contratual, hipótese prevista expressamente no direito brasileiro no art. 166 II CC. Subsidiariamente, requeria a extinção do contrato alegando vício na coisa ou quebra da base subjetiva do negócio.
O Oberlandesgericht (OLG) Hamm entendeu que se tratava de contrato válido, com obrigação suficientemente determinada, tendo em vista que a área a ser permutada era perfeitamente identificável e mensurável através da planta do imóvel, anexo ao contrato.
Segundo o Tribunal, não caberia recurso ao instituto da quebra da base do negócio (§ 313 BGB), pois sua aplicação é afastada pelas regras especiais do direito dos vícios redibitórios. No caso, porém, a Corte entendeu que o município não tinha qualquer pretensão redibitória, uma vez que as partes afastaram expressamente quaisquer garantias e responsabilidades pela dimensão dos respectivos terrenos. Dessa forma, o Tribunal a quo condenou o Poder Público a cumprir a obrigação de pavimentar a estrada de terra localizada no terreno do réu.
A decisão do Bundesgerichtshof
Por meio da interposição do recurso de Revision, o caso subiu ao BGH, que reformou a decisão, restaurando a sentença que determinou a extinção do contrato. Segundo a Corte de Karlsruhe, houve quebra da base subjetiva do negócio jurídico e violação do dever de colaborar com a revisão contratual, nos termos do § 313 II-III BGB. Diz a ementa:
A pretensão da parte prejudicada por uma perturbação na base do negócio de readaptar o contrato obriga a contraparte a cooperar para o ajustamento. Diante da recusa em colaborar, a parte prejudicada pode requerer judicialmente o consentimento para o ajustamento considerado adequado ou pleitear diretamente a prestação resultante do ajuste.
A violação do dever de colaborar com a adaptação do contrato pode dar origem a pretensões indenizatórias, nos termos do § 280 I do BGB. Ela só autoriza a parte prejudicada a rescindir o contrato sob os pressupostos do § 313 III do BGB.6
Inicialmente, o BGH rejeitou a alegação de invalidade do negócio, pleiteada pelo município com base na suposta indeterminação do objeto do contrato. Isso porque, em caso de venda de terreno não submetido a mensuração prévia, se houver divergência entre a metragem indicada na planta e a metragem aproximada indicada no contrato, prevalece a primeira. Nesses casos, entende-se que a vontade objetiva do contratante está direcionada à aquisição da área representada e delimitada na planta.
Esse entendimento não destoa no direito brasileiro, que distingue a venda ad corpus, em que o imóvel é vendido como coisa certa e determinada, figurando as dimensões como meramente enunciativas, e a venda ad mensuram, i.e., por medida de extensão, em que a extensão da área é decisiva para a definição do preço de modo que, quando a dimensão real não corresponde à dimensão informada, o comprador tem o direito de exigir o complemento da área ou, não sendo possível, pleitear abatimento proporcional do preço ou a resolução do contrato, nos termos do art. 500 CC.
O BGH, porém, entendeu que naquele caso a divergência de áreas não constituiu vício na coisa. A uma, porque, a rigor, objetivamente falando, o terreno não apresentava vício algum. A duas, porque também não se podia falar em vício em sentido subjetivo, nos termos do § 437 I BGB, o qual surge quando o objeto não apresenta as características acordadas entre as partes no contrato.
Com efeito, para o Tribunal, o que foi objetivamente pactuado era que o credor – como na venda ad mensuram – receberia a extensão de terra correspondente à área representada em escala na planta, o que, de fato, ocorreu. Logo, não se poderia falar em vício em sentido subjetivo como desvio das características pactuadas no contrato.
O fato das partes terem afastado expressamente a responsabilidade por vícios na coisa, bem como quaisquer garantias pelas características – inclusive pela dimensão – do terreno corrobora, na visão da Corte, a conclusão de que elas não fizeram um acordo sobre a extensão exata do terreno, o qual seria, ao contrário, adquirido em sua dimensão real a ser apurada com base na planta do imóvel.
Para o BGH, o que houve, de fato, foi uma falsa representação das circunstâncias do negócio pelos contratantes. Adotando as conclusões da sentença, a Corte de Karlsruhe afirmou que o município partiu da ideia – perceptível, mas não contestada pela contraparte – de que os imóveis possuíam aproximadamente as mesmas dimensões.
Decisivo não foi a representação feita acerca de determinada qualidade da coisa, mas a representação acerca da relação de valor (equivalência) entre prestação e contraprestação (relação de troca de 1:1), circunstância sobre a qual as partes alicerçaram a decisão de contratar e que configura a base subjetiva do negócio, prevista no § 313 II BGB. Com efeito, a jurisprudência alemã há décadas considera a representação das partes sobre a equivalência das prestações como base subjetiva nos contratos bilaterais7.
Aqui cabe um parêntese para recordar que a base do negócio pode ser analisada sob os aspectos objetivo e subjetivo. Enquanto a base objetiva são aquelas circunstâncias externas (condições políticas, socioeconômicas, legais, técnicas, tecnológicas, climáticas, etc.), presentes no momento da celebração, que consciente ou inconscientemente influenciam na formação da vontade de contratar, a base subjetiva são as representações comuns das partes (ou de uma delas, sem objeção da outra) acerca da existência (ou futura ocorrência) de circunstâncias relevantes do negócio.
No caso sub judice, como as representações das partes acerca da relação de equivalência entre prestação e contraprestação mostraram-se equivocadas quando posteriormente se apurou que um dos terrenos possuía 10.000m2 a menos que o incialmente suposto, houve uma perturbação na base do negócio jurídico tornando irrazoável, devido à sua magnitude, a manutenção do contrato nos termos inicialmente pactuados.
A situação fática assemelha-se às hipóteses de erro sobre as qualidades essenciais do objeto, que dá ensejo à anulação do negócio tanto no direito alemão (§ 119 II BGB), quanto no direito nacional (arts. 138 e 139 I CC). Sem enfrentar, contudo, o espinhoso problema da concorrência entre os institutos do erro e da perturbação na base do negócio, o BGH limitou-se a afirmar que o erro comum às partes não impede a readaptação do contrato.
De fato, doutrina e jurisprudência admitem, em casos excepcionais, que o erro comum às partes acerca de questões fáticas ou jurídicas relevantes (pense-se, por exemplo, no erro sobre o faturamento a ser alcançado com o objeto arrendado) permite a revisão do contrato quando, devido à relevância do erro, for irrazoável manter inalterados os termos inicialmente pactuados8.
Porém, apesar dos hard cases, a base subjetiva do negócio distingue-se da figura do erro, como mostra o famoso caso da coroação de Eduardo VII, no qual a festa da celebração fora cancelada de última hora, frustrando a utilidade – e a finalidade – dos contratos de locação das sacadas dos imóveis localizados nas ruas por onde passaria o cortejo real.
Nesse caso, locador e locatário não estavam em erro no momento da conclusão do contrato: ambos fizeram uma leitura correta da realidade, qual seja, que iria acontecer, como programado, a solenidade da coroação do monarca e, por esse motivo, celebraram o negócio. Logo, a festividade integrou a base (subjetiva) do negócio para ambos os contratantes. Porém, a superveniência de evento extraordinário e imprevisível (doença repentina do rei) alterou profundamente a base do negócio, impedindo que o contrato alcançasse sua finalidade primordial: permitir ao locatário assistir à festa da coroação.
Aqui, contudo, não é o locus adequado para discutir as distinções e intersecções entre as figuras do erro e da perturbação da base do negócio, sob pena de fugir-se à questão de fundo discutida no acórdão: a existência de um dever jurídico de colaborar com a revisão do contrato.
Tendo em vista a considerável diferença de metragem entre os imóveis (10.000 m2), o que representava um desvio de 35% em relação à área na qual as partes basearam seu consentimento, o BGH afirmou que não seria razoável exigir que o autor cumprisse o contrato em seus termos originais – muito embora fosse razoável esperar que o réu se afastasse do pactuado, por exemplo, restituindo parte da área correspondente à diferença de extensão dos terrenos.
E, dessa forma, a Corte concluiu que a parte prejudicada com a perturbação na base do negócio estava legitimada a resolver o contrato, não obstante o § 313 III BGB privilegie, em princípio, a readaptação à extinção do contrato. Embora no caso concreto o réu tenha ignorado todas as tentativas do autor de renegociar amigavelmente o contrato, o BGH ressaltou que o direito de rescisão não surge pelo simples fato da contraparte se recusar a colaborar com a revisão contratual. Porém, em situações excepcionais, a recusa em “corresponder” à demanda legítima da parte prejudicada torna irrazoável a manutenção inalterada do pacto, justificando a extinção do vínculo contratual.
Doutrina e jurisprudência alemãs explicam que a primazia da revisão contratual, vale dizer, o primado da conservação do contrato justifica-se pelo fato de que a extinção representa uma intervenção maior na autonomia privada dos contratantes do que a revisão. Por isso, o § 313 III BGB consagra a extinção contratual como medida excepcional, cabível apenas nos casos em que o reajuste do contrato se mostra impossível ou irrazoável para uma das partes.
Mas quando as partes não estão interessadas na preservação do contrato, a prioridade da manutenção do negócio perde sua razão de ser. Foi o que aconteceu no caso concreto no qual o réu ignorou, sem qualquer justificativa, as tentativas do autor de renegociar extrajudicialmente a modificação do contrato, não se opondo também ao pedido de extinção contratual formulado na ação judicial pelo Poder Público.
Isso levou a Corte a concluir que – face ao dever de colaborar para a adaptação do contrato – o comportamento do réu só poderia ser objetivamente interpretado como concordância tácita ao pedido de rescisão contratual formulado pela parte prejudicada.
Falta, porém, ao acórdão uma fundamentação adequada para o reconhecimento do polêmico dever de renegociar. Com efeito, rechaçando a corrente majoritária contrária à imposição ex bonna fides desse dever lateral de conduta, a Corte limitou-se a afirmar que ao direito da parte prejudicada de readaptar o contrato, reconhecido no § 313 I BGB, correspondia o dever da contraparte de colaborar com o reajuste. “Pretensão e dever são dois lados do mesmo direito”,9 afirmou o 5º. Senado do BGH.
Assim, a pretensão da parte prejudicada à adaptação do contrato obrigaria a contraparte a colaborar com a modificação dos termos do negócio. Ante a recusa da contraparte em renegociar, pode a parte prejudicada requerer judicialmente a concordância daquela com a adaptação por ela tida como adequada ou exigir diretamente a prestação resultante dessa adaptação. A violação do dever de renegociar dá ensejo ao dever de indenizar, nos termos do § 280 I BGB, só justificando a rescisão do contrato em casos excepcionais, nos termos do § 313 III BGB.
Resumo da ópera
Muito embora o dever de renegociar (Neuverhandlungspflicht) ou dever de colaborar (Mitwirkungspflicht) para a alteração do contrato seja defendido por importantes vozes no direito alemão, não faltaram críticas e oposições à decisão do Bundesgerichtshof10. E a primeira remonta a um dado histórico: o legislador não quis positivar na Codificação o dever de renegociar ou de colaborar para a readaptação do contrato às novas circunstâncias.
Além do recurso à sempre questionável vontade de um (fictício) legislador omnisciente, outras convincentes razões de fundo depõem contra a existência do dever de renegociar. A ausência de um conteúdo material judicialmente exigível constitui, sem dúvida, um óbice de difícil superação, pois o fato de se tratar de um dever meramente procedimental que impõe às partes tão só um renegociar de boa-fé, i.e., um empenhar-se honestamente (seja lá o que isso signifique no caso concreto) para o alcance do consenso, dificulta sua exigibilidade em juízo.
Outra objeção diz respeito à utilidade prática e à eficiência econômica desse dever, pois, embora obrigue as partes a investir tempo e dinheiro em conversações, fica ele privado de qualquer serventia quando os contratantes não chegam a consenso na medida em que o contrato permanece desequilibrado. E a falta de entendimento quanto à readaptação dá munição para que vozes antirevisionistas, contrárias a qualquer intervenção do juiz nos contratos, ponham em xeque a legitimidade do julgador para reequilibrar o pacto quando as próprias partes amigavelmente não o fazem.
A aceitar-se tal argumento, o próprio dever de renegociar inviabilizaria a revisão contratual sempre que uma parte (até maliciosamente) impedisse o consenso, tornando a figura contraproducente. Esse argumento, porém, é falacioso, pois a doutrina mais abalizada sempre entendeu que, diante do dissenso, cabe ao juiz a tarefa de reequilibrar o contrato, como, aliás, prevê o art. 1.195 do Código Civil francês, de acordo com a nova redação dada pela reforma de 201611.
Ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, o dispositivo não impõe um dever de renegociar, mas apenas exorta os contratantes a renegociar. Com efeito, a norma estabelece que a parte prejudicada por mudanças imprevisíveis das circunstâncias presentes na conclusão do contrato (base do negócio) pode requerer da contraparte a renegociação das condições contratuais se a execução se tornar excessivamente onerosa, devendo, contudo, nesse ínterim, continuar a adimplir suas obrigações.
Em caso de recusa em renegociar ou de fracasso das conversações, as partes podem rescindir amigavelmente o negócio ou requerer ao juiz que proceda à revisão ou extinção do contrato. Ou seja, mesmo na França, último baluarte da (obsoleta) corrente contrária à revisão judicial dos contratos, o legislador atribui ao julgador pode alterar o negócio quando as partes não chegam a consenso.
No Brasil, o dever de renegociar não tem base legal, salvo se – e enquanto – admitido como um dever ético-jurídico, deduzido da boa-fé (art. 422 CC) na fase de execução do contrato, momento no qual a superveniência se põe. Consequência lógica e necessária desse reconhecimento é que sua violação culposa configura o que Herman Staub batizou de violação positiva do contrato (positive Vertragsverletzung), que atualmente pode ser compreendida como o descumprimento dos deveres laterais da boa-fé durante a fase de execução do contrato.
Com efeito, seria grave deturpação conceitual classificar como mora o descumprimento do dever de renegociar, vez que a alteração das circunstâncias pode se dar antes do termo e, ademais, o dever tem por escopo justamente viabilizar a execução do contrato, desequilibrado por eventos extraordinários e imprevisíveis não imputáveis à esfera de risco e responsabilidade do devedor. Da mesma forma, descabido o enquadramento como responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo), pois o dever de renegociar não surge na fase pré-contratual, na qual ainda inexiste o próprio contrato, mas na fase da execução, logicamente superveniente à celebração.
Dessa forma, aceitar a existência de um dever de renegociar ex bonna fides exige, lógica e substancialmente, reconhecer os institutos da quebra da base do negócio jurídico e da violação positiva do contrato no direito brasileiro. Do contrário, incorrer-se-ia na incoerente postura de colher o fruto, mas rejeitar a árvore.
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1 FINKENAUER, Thomas. In: Munchener Kommentar BGB. Wolfgang Krüger (redator). v. 2 §§ 241-432. 7a ed. München: Beck, 2016, p. 1921.
2 Dentre outros: LORENZ, Stephan; RIEHM, Thomas. Lehrbuch zum neuen Schuldrecht. München: Beck, 2002, p. 197. Confira, ainda: NUNES FRITZ, Karina. Webinar debate a revisão contratual sob a perspectiva do STJ e do BGH. German Report, Migalhas, 13/7/2022.
3 No original: „§ 19. Fortfall der Geschäftsgrundlage. Wird infolge einer Veränderung der allgemeinen Verhältnisse, mit deren Fortdauer die Beteiligten beim Vertragsschluss gerechnet hatten, das typische oder das nach dem Sinn des Vertrages vorausgesetzte Gleichgewicht von Leistung und Gegenleistung völlig zerstört, so ist jeder Teil verpflichtet, zu einer der Billigkeit entschenden Apassung des Vertragsinhalts an die veränderten Verhältnisse mitzuwirken. Kommt eine Einigung hierüber nicht zustande, so kann jeder Teil richterliche Vertragsgestaltung begehren. Ist eine Anpassung an die geänderten Verhältnisse untunlich, so kann jeder Teil das Vertragsverhältnis mit sofortiger Wirkung kündigen.“. SCHMIDT, Jürgen, In: Staudinger Kommentar zum BGB. Michael Martinek (redator). 13a ed. Berlin: de Gruyter, 1995, p. 593.
4 Confira-se: Neuverhandlungspflicht. AcP 181 (1981), p. 255-288 e Gutachten und Vorschläge zur Überbearbeitung des Schuldrechts, v. 1, 1981. O tema é novamente abordado no artigo Die Anpassung langfristiger Verträge im internationalen Wirtschaftsverkehr. In: Die Anpassung langfristiger Verträge. Kötz, Marschall v. Bieberstein (editores). Frankfurt a.M., 1984.
5 No mesmo sentido: FIKENAUER, Thomas. In: Münchener Kommentar zum BGB. Wolfgang Krüger (redator). Bd. 2. 7a ed. München: Beck, 2016, § 313, Rn. 122, p. 1921.
6 Tradução livre: „Der Anspruch der durch eine Störung der Geschäftsgrundlage benachteilig-ten Partei auf Vertragsanpassung verpflichtet die andere Partei, an der An-passung mitzuwirken. Wird die Mitwirkung verweigert, kann die benachteilig-te Partei auf Zustimmung zu der als angemessen erachteten Anpassung oder unmittelbar auf die Leistung klagen, die sich aus dieser Anpassung ergibt. Die Verletzung der Verpflichtung, an der Anpassung des Vertrages mitzuwir-ken, kann Schadensersatzansprüche nach § 280 Abs. 1 BGB auslösen. Zu einem Rücktritt vom Vertrag berechtigt sie die benachteiligte Partei nur unter den Voraussetzungen des § 313 Abs. 3 BGB.“
7 SCHMIDT, Jürgen. Op. Cit., p. 578.
8 Dentre outros: LORENZ, Stephan; RIEHM, Thomas. Lehrbuch zum neuen Schuldrecht. München: Beck, 2002, p. 206.
9 No original: „Anspruch und Verpflichtung sind zwei Seiten desselben Rechts.“. BGH V ZR 17/11, Rn. 34, p. 14.
10 Dentre outros: THOLE, Christoph. Renaissance der Lehre von der Neuverhandlungspflicht bei § 313 BGB? JZ 69 (2014), p. 443-450.
11 Sobre a revisão judicial no direito francês, seja consentido remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Alteração das circunstâncias do negócio: como o direito francês poderia inspirar o PL n. 1.179/2020. Data da publicação: 27/4/2020. Disponível aqui.