"O Estado democrático de direito não pode e não deve se entregar nas mãos de seus aniquiladores"
Josef Christ
No último dia 16 de agosto, o juiz do Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), Josef Christ, proferiu conferência magna no Tribunal Superior Eleitoral sobre o tema “Democracia defensiva”. O evento contou com a presença de diversas autoridades, dentre as quais os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes (Supremo Tribunal Federal), Paulo Sérgio Domingues (Superior Tribunal de Justiça) e Jorge Messias (Advocacia Geral da União).
Josef Christ veio participar de um ciclo de palestras organizado pelo Fórum de Democracia Europa-Brasil, coordenado pelo Diplomata Emil Richter, da Embaixada da Alemanha em Brasília, e pelo Fórum Jurídico Brasil-Alemanha, um fórum acadêmico coordenado por esta articulista.
Durante a visita, o juiz do Bundesverfassungsgericht (BVerfG) falou ainda na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e no Tribunal Regional da 5ª região, em Recife, onde visitou a renomada Faculdade de Direito e conheceu um pouco da história da Escola do Recife de Tobias Barreto e Silvio Romero.
O público brasileiro teve a oportunidade ímpar de ouvir, em primeira mão, acerca de um tema crucial para o nosso tempo: a democracia defensiva. De fato, o assunto não poderia ser mais relevante na medida em que – após a tragédia humanitária causada pelo totalitarismo no séc. 20 – observamos atônitos o crescimento de manifestações antidemocráticas em várias partes do globo.
Itália, Espanha, Finlândia e Suécia – apenas para mencionar alguns países europeus – enfrentam o crescimento de partidos de extrema direita de cunho nacionalista, conservador, xenófobo e antidemocrático. Hungria e Polônia, com governos autoritários camuflados sob as vestes de um Estado liberal, há tempos desafiam a harmonia institucional no continente europeu, desrespeitando os padrões democráticos vigentes na Europa. Na América Latina, Venezuela, Nicarágua e Cuba dificultam a consolidação da democracia na região.
Nesse contexto, Brasil e Alemanha não ficam imunes e enfrentam, em maior ou menor medida, os mesmos problemas, principalmente o crescimento do populismo e do extremismo político, que – conquanto não seja um problema novo – ganha dimensão alarmante com as novas mídias sociais, utilizadas como canais de propagação de desinformação, discursos de ódio contra grupos minoritários e de ataques aos valores constitucionais e às instituições democráticas.
Na Alemanha, o partido de extrema direita, AfD (Alternativa para a Alemanha), que está oficialmente sob observação do Órgão Federal de Proteção da Constituição (Bundesamt für Verfassungsschutz), elegeu recentemente o prefeito de uma pequena cidade no estado da Alta Saxônia, antiga Alemanha Oriental, onde o extremismo e neonazismo têm raízes profundas.
O assassinato em 2019 do político Walter Lübcke e a prisão, em dezembro do ano passado, de membros do grupo "Cidadãos do Império" (Reichsbürger), que planejavam derrubar o governo e a ordem constitucional vigente, mostram que o combate ao extremismo político é uma pauta a ser enfrentada pelo Estado em suas três esferas: Executivo, Legislativo e Judiciário.
No Brasil, o extremismo político alcançou seu ápice em janeiro desse ano com a depredação dos prédios dos principais poderes da República (Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal) por um grupo de cidadãos inconformados com o resultado das eleições presidenciais que pediam a instauração de um governo militar no país.
Mas não só: o Supremo Tribunal Federal passou a ser alvo de uma campanha que pretende desacreditar o Tribunal, transformando-o em inimigo da sociedade brasileira1. Seus ministros são alvos frequentes de ataques e ameaças nas redes sociais, que extrapolam o legitimo direito de crítica e descambam para práticas criminosas.
Não se pode ignorar ou banalizar o efeito deslegitimador e desestabilizador dessas narrativas, pois os regimes autoritários contemporâneos principiam por desacreditar a Corte Constitucional e a reformar o sistema judiciário sob o pretenso combate ao ativismo judicial, atacando os preceitos essenciais da democracia liberal: separação de poderes, direitos humanos, liberdades civis, liberdade de expressão e reunião, e eleições livres, deformando o regime em uma democracia iliberal.
Hungria e Polônia são exemplos dessa estratégia, seguida agora por Israel que – também sob o pretexto de combater os excessos judiciais – aprovou há pouco uma reforma que pretende sujeitar a Suprema Corte, na prática, a um Parlamento conservador, em claro processo de erosão institucional e democrática.
Segundo Elmar Esser, Presidente da Associação de Juristas Alemã-Israelita, há mais de 180 projetos de lei tramitando no Parlamento israelense com o objetivo de subjugar o Poder Judiciário, v.g., reduzindo suas competências, alterando as regras de ingresso e progressão na carreira e até submetendo a ordem dos advogados de Israel ao controle do Ministério da Justiça2.
Isso deve servir de alerta por aqui diante da tão discutida reforma do Judiciário a fim de que – também sob a bandeira da liberdade e do combate ao ativismo – não se enfraqueça um poder que, conquanto carente de aperfeiçoamento, é essencial para a manutenção da democracia brasileira.
Nesse contexto, surgem questões angustiantes: Como lidar – em um Estado Democrático de Direito – com ideias e movimentos antidemocráticos? Como lidar com aqueles que, sob o escudo da liberdade de expressão, pretendem derrubar a ordem constitucional vigente ou difundir desinformação e ódio na população, destruindo valores e conquistas importantes da nossa civilização? Quais os limites do direito à informação e da liberdade de expressão? E qual a responsabilidade das grandes plataformas digitais nesse contexto?
E mais: Qual o significado do dever de lealdade que agentes e funcionários públicos, inclusive magistrados, têm para com a Constituição? Ou será que o compromisso de respeitar a Constituição, feito pelos juízes no momento da investidura no cargo, tem eficácia mitigada? Magistrados alinhados a ideologias antidemocráticas devem ter o poder de dizer o que é direito no caso concreto?
Em suma: como o Estado Democrático de Direito deve se defender contra os ataques de seus inimigos? E aqui vale o alerta feito recentemente pelo presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier: uma coisa são os opositores políticos; outra, os inimigos da Constituição3. Todas essas são questões complexas que desafiam o nosso tempo, como pontuou Josef Christ.
Segundo ele, os Estados liberais e democráticos estão sob pressão em todo o mundo, pois as forças que rejeitam a liberdade e a democracia têm crescido ultimamente. Com isso, cresce também o temor de que até mesmo democracias consolidadas possam entrar em crise. Democracias liberais no mundo inteiro estão diante de um dilema: Pode o Estado garantir liberdade até mesmo aos inimigos da liberdade? Um Estado deixa de ser liberal por não tolerar essas forças?
A Lei Fundamental alemã (Grundgesetz) de 1949, da mesma forma que a nossa Constituição de 1988, garante a todo cidadão diversas liberdades. Em princípio, mesmo aqueles que rejeitam a orientação livre e democrática da Lei Fundamental e o Estado de Direito podem invocar essa liberdade, pois seu art. 5°, inc. 1° garante a todo indivíduo o direito de expressar e divulgar livremente sua opinião – norma que encontra similar no art. 5° IV da Constituição brasileira.
O Bundesverfassungsgericht já afirmou diversas vezes que essa liberdade de expressão cabe também aos cidadãos que rejeitam os valores fundamentais da Constituição e que o art. 5°, inc. 1° da Lei Fundamental protege até mesmo opiniões que defendam a extinção da democracia liberal, desde que manifestadas de forma pacífica e não através de meios violentos e combativos.
A norma se ampara na crença na força do livre embate de ideias como a arma mais eficaz contra a disseminação de ideologias totalitárias e de desprezo pelo ser humano. O juiz do BVerfG alertou, no entanto, que a democracia liberal na Alemanha não está indefesa, à mercê de seus inimigos, pois a Lei Fundamental contém diversos instrumentos destinados a evitar que a liberdade concedida constitucionalmente seja usada – e desvirtuada – por seus inimigos para instituir um sistema totalitário. Assim, a Constituição transformou a democracia liberal na Alemanha em uma "democracia defensiva", disse.
O que significa democracia defensiva?
A Lei Fundamental alemã instaurou uma ordem estatal na qual democracia, liberdade e Estado de Direito estejam permanentemente garantidos. Isso significa que a Grundgesetz não concede uma liberdade que possa ser abusada e/ou desvirtuada para extinguir a própria ordem constitucional. Ela não permite que o exercício da liberdade possa se tornar um risco justamente para a própria liberdade.
Por isso, o BVerfG tem afirmado que os inimigos da Constituição não podem – invocando as liberdades garantidas constitucionalmente – ameaçar, prejudicar ou destruir a ordem constitucional ou a existência do Estado. Essa é a ideia contida por trás do conceito de “democracia defensiva?, afirmou Josef Christ.
Assim, em uma série de disposições, a Lei Fundamental adota medidas para proteger seus fundamentos liberais e democráticos contra ataques internos (do próprio Estado) e externos (da sociedade). Os mecanismos de autoproteção da Constituição, decorrentes de um conjunto de distintas normas, são designados pelo conceito de "democracia defensiva".
Por que a Constituição é defensiva?
Segundo o magistrado, a ideia da democracia defensiva tem raízes históricas, baseadas nas dolorosas experiências de ameaça e violação de direitos fundamentais, principalmente nas atrocidades cometidas pelo Estado durante o regime de terror do nacional-socialismo.
A República de Weimar foi a primeira democracia em solo alemão, mas ela teve um fim abrupto com a tomada de poder pelos nazistas. Muitos atribuem a queda da República de Weimar à incapacidade de defesa da Constituição de Weimar, que carecia de instrumentos para a proteção da República.
Além disso, a Teoria do Estado da época baseava-se em uma noção de Estado essencialmente positivista: a Constituição não vinculava por seus objetivos, mas exclusivamente pelo método jurídico que prescrevia. Hans Kelsen, por exemplo, sustentava que uma democracia – para permanecer fiel a si mesma – deveria tolerar também um movimento voltado à sua própria destruição. Ele dizia que era preciso permanecer fiel à sua bandeira, ainda que o navio afundasse.
Ademais, a Constituição de Weimar podia ser alterada por meio de simples lei ordinária e se acreditava que o poder de alterar a Constituição era materialmente ilimitado. Mas foi ainda durante a República de Weimar que surgiu a ideia de democracia defensiva, sobretudo através dos trabalhos de Karl Loewenstein, que defendeu a existência de um "dever de autopreservação" da chamada democracia militante (milatant democracy).
Para Josef Christ, a democracia defensiva foi uma resposta ao relativismo axiológico predominante na época da Constituição de Weimar. Face ao doloroso passado, havia consenso na Assembleia Nacional Constituinte, instituída após o fim da 2ª Guerra Mundial, de que a nova Constituição deveria conter instrumentos com os quais a ordem fundamental livre e democrática pudesse ser permanentemente protegida contra seus inimigos.
A democracia defensiva é uma faca de dois gumes?
Josef Christ alertou, porém, que a democracia defensiva traz o risco de que o embate público de opiniões, democraticamente desejado, seja impedido e que certas opiniões sejam excluídas da luta pelas melhores soluções. O princípio da democracia defensiva pode ainda ser deturpado para combater adversários políticos ou uma crítica indesejada.
Por isso, é preciso tomar cuidado para que somente os inimigos da ordem fundamental livre e democrática sejam excluídos do confronto público de opiniões. Para tanto, a Lei Fundamental prevê quatro garantias contra a aplicação demasiadamente ampla dos instrumentos da democracia defensiva.
Em primeiro lugar, esses instrumentos só podem ser usados para a proteção dos princípios básicos indispensáveis ao Estado constitucional liberal. Segundo, é necessário que haja um limiar elevado de risco a partir do qual os instrumentos da democracia defensiva sejam utilizados.
Terceiro, a maioria dos instrumentos está sob monopólio do Tribunal Constitucional, cabendo exclusivamente a esse o poder de decisão e, quarto, os instrumentos da democracia defensiva estão claramente definidos quanto aos seus efeitos jurídicos, não deixando margem ao arbítrio ou a discricionariedades.
Os bens tutelados pela democracia defensiva
De início, é importante notar que a democracia defensiva tutela apenas os princípios fundamentais elementares da ordem constitucional, descritos no art. 18 e art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental como "ordem fundamental livre e democrática". Aqui tratam-se de princípios fundamentais da Constituição, reconhecidos como valores absolutos.
Para o Tribunal Constitucional alemão, fazem parte do conceito de ordem fundamental livre e democrática, dentre outros, o respeito à dignidade humana e aos direitos humanos, o federalismo, a democracia, o Estado de Direito, a soberania popular, a separação dos poderes, a independência dos tribunais, o monopólio estatal do poder e o pluripartidarismo.
Instrumentos de proteção da "ordem fundamental livre e democrática"
Dentre os principais instrumentos da democracia defensiva previstos na Lei Fundamental, destacam-se: a proibição de associações anticonstitucionais (art. 9°, inc. 2°), a privação temporária de direitos fundamentais (art. 18), proibição de partidos anticonstitucionais ou sua exclusão do financiamento partidário estatal (art. 21, inc. 2° e 3°) e a aposentadoria compulsória de juízes que atentem contra a Constituição ou sua transferência para outro cargo (art. 98). A isso acresça-se o dever de lealdade dos funcionários públicos em geral (em especial, policiais e juízes) e a existência de órgãos de proteção da Constituição.
Segundo Josef Christ, os instrumentos constitucionais da democracia defensiva estão configurados de forma muito rígida na Grundgesetz, não permitindo gradações em seus efeitos jurídicos, de modo que o Tribunal não tem discricionariedade para decidir sobre a extensão e a intensidade da medida no caso concreto. Aqui vale a regra do “tudo ou nada”: ou uma associação será proibida ou não será. Se os pressupostos para a proibição de um partido político estiverem presentes, o partido deverá ser proibido, disse o magistrado.
Em razão desses rígidos efeitos jurídicos, o Tribunal Constitucional interpreta restritivamente os pressupostos para cada medida, que não serão adotadas se houver medidas mais brandas para o alcance da mesma finalidade.
Proibição de partidos políticos e exclusão do financiamento partidário
Dentre os instrumentos mais rígidos para a defesa da democracia destaca-se a possibilidade de proibição partidos anticonstitucionais ou sua exclusão do financiamento estatal, prevista no art. 21 da Lei Fundamental.
O inc. 1º da norma garante inicialmente a liberdade partidária. Segundo a Constituição alemã, os partidos têm um status elevado e uma posição de destaque como um instituto constitucional, sendo reconhecidos como elementos indispensáveis à vida constitucional na medida em que têm a função de participar da formação da vontade política do povo, o que, por sua vez, pressupõe liberdade para sua fundação e para o exercício das suas atividades.
Quando o art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental prevê a possibilidade da vedação de partidos políticos, ele o faz com o objetivo de evitar que os partidos se radicalizem e, dessa forma – tal como na fase final da República de Weimar – criem condições para a instauração de uma ditadura totalitária, afirmou Josef Christ.
Nos termos do art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental, são inconstitucionais aqueles partidos políticos que, por seus objetivos ou pela conduta dos seus adeptos, tentem prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática ou pôr em perigo a existência da República Federal da Alemanha. O magistrado lembrou que o art. 17 da Constituição brasileira também prevê a liberdade partidária, mas a condiciona ao respeito ao sistema democrático, so pluripartidarismo e aos direitos humanos.
O objetivo da proibição de partidos é vetar permanentemente a participação de uma organização anticonstitucional na formação da vontade política. Segundo o art. 21, inc. 4° da Lei Fundamental, cabe exclusivamente Tribunal Constitucional a competência para decidir acerca da (in)constitucionalidade do partido político, mediante requerimento do Parlamento (Bundestag), do Conselho Federal (Bundesrat) ou do governo federal.
O BVerfG tem interpretado restritivamente a norma de banimento partidário, pois suas consequências são dramáticas: o partido é dissolvido, perde seu status constitucional, seu patrimônio é confiscado, ele fica proibido de fundar qualquer organização substituta e seus deputados perdem os mandatos.
Na história da República Federal da Alemanha, apenas dois requerimentos de proibição de partidos políticos tiveram êxito: em 1952, o BVerfG dissolveu o Partido Socialista do Reich devido à sua orientação nazista e, em 1956, o Partido Comunista da Alemanha.
Josef Christ explicou que os processos de proibição movidos contra o Partido Nacional-Democrata da Alemanha (NPD) em 2003 e 2017 não tiveram êxito. O primeiro, porque se baseou em provas colhidas por pessoas previamente infiltradas no partido pelo Departamento Federal de Proteção da Constituição; o segundo, porque a Corte entendeu que o NPD não tinha chances reais de prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática, como exigido pelo art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental.
A decisão do Tribunal Constitucional provocou uma alteração na Lei Fundamental, passando o inc. 3º do art. 21 a prever agora uma forma escalonada de mecanismos de autoproteção. Segundo o dispositivo, aqueles partidos anticonstitucionais que não possuem potencial suficiente de periculosidade – e que, portanto, não podem ser banidos – devem ser excluídos do financiamento estatal e dos benefícios fiscais. Trata-se de uma proteção a mais contra o radicalismo partidário.
Denúncia contra juízes
Outro instrumento sensível – e importantíssimo – para a democracia defensiva é a chamada denúncia contra juízes. Os juízes possuem um status especial devido à sua independência pessoal e material garantida constitucionalmente. O art. 98 da Lei Fundamental leva isso em consideração ao exigir que – apenas mediante requisição do Parlamento e com maioria de dois terços – o Tribunal Constitucional possa determinar a transferência de um juiz para outro cargo ou sua aposentadoria compulsória caso o magistrado, no âmbito do cargo ou fora dele, infrinja os princípios da Lei Fundamental.
Josef Christ explicou que essa ação contra magistrados foi a resposta que a Lei Fundamental deu à radicalização de parte da magistratura durante o nacional-socialismo. Foi preciso adotar medidas para que a independência dos magistrados não fosse novamente usada contra a democracia. Na prática, porém, esse instrumento nunca foi utilizado. Em vez disso, tem-se utilizado das regras do direito administrativo do funcionalismo público para enquadrar os juízes inimigos da Constituição.
Dever de lealdade à Constituição do serviço público
De grande importância para a defesa da democracia na Alemanha é ainda o dever de lealdade à Constituição, que recai sobre os funcionários públicos em geral, inclusive juízes e soldados. Josef Christ sublinhou que se espera desses "empregados do Estado" que eles compartilhem os valores estruturais da Constituição.
Nesse sentido, o Tribunal Constitucional já afirmou que um servidor público não pode atuar na estrutura estatal, gozando de garantias e vantagens, e, ao mesmo tempo, pretender destruir o fundamento de sua atividade. "O Estado democrático de direito não pode e não deve se entregar nas mãos dos seus aniquiladores", afirmou o magistrado.
Tomando como exemplo os magistrados, ele explicou que só pode ser nomeado juiz quem dê garantias de sempre defender a ordem fundamental livre e democrática. Se, no período de experiência, surgirem dúvidas a esse respeito, ele será dispensado. Em caso de infrações durante o período de estabilidade, o juiz pode perder seu cargo ou ser aposentado compulsoriamente para que se evitem graves danos à Justiça. Dessa forma, espera-se dos juízes independência, neutralidade e lealdade à Constituição.
"Garantia de eternidade"
Outra expressão importante da democracia defensiva é a norma do art. 79, inc. 3° da Lei Fundamental, mais conhecida como cláusula pétrea – em alemão, literalmente: garantia de eternidade (Ewigkeitsgarantie). Segundo Josef Christ, a Grundgesetz tomou o caminho oposto à Constituição de Weimar que, devido ao relativismo axiológico reinante à época, podia ser alterada por meio de simples lei ordinária e, por isso, estabelece no mencionado dispositivo determinadas matérias como limites intransponíveis, subtraindo-as ao poder do legislador de modificar a Constituição.
Dentre essas áreas cruciais estão o federalismo, a garantia da dignidade humana, os princípios da democracia, da república e do Estado social, bem como a vinculação dos três poderes à lei e ao direito. A Constituição brasileira prevê limites semelhantes em seu art. 60 com as chamadas cláusulas pétreas, as quais pretendem impedir que o Parlamento estabeleça um regime totalitário no país.
A garantia pétrea serve, contudo, à democracia defensiva de forma diferente dos demais instrumentos já citados: enquanto, v.g., a proibição partidária pretende evitar que partidos anticonstitucionais possam alcançar a maioria necessária para realizar alterações na Constituição, se isso vier a acontecer a garantia da cláusula pétrea seria aplicável como a última barreira para alterações na Constituição incompatíveis com uma ordem livre e democrática.
Proteção da Constituição
Outra expressão da democracia defensiva na Alemanha, de grande relevância prática, é o órgão de proteção da Constituição, existente a nível federal e estadual. Nos termos do art. 73, inc. 1°, n. 10b da Lei Fundamental, o órgão de proteção constitucional tem a função de garantir a ordem fundamental livre e democrática, bem como a existência e a segurança da União ou dos estados da federação.
Dentre suas atividades destaca-se o combate ao extremismo político de direita ou esquerda, ao extremismo islâmico, ao terrorismo, além de proteger o Estado e a sociedade contra espionagem, sabotagem e ataques cibernéticos.
Para esse fim, os órgãos de proteção constitucional podem monitorar pessoas, grupos ou partidos políticos por eles classificados como anticonstitucionais e como ameaças à segurança, bem como coletar e analisar. Para isso, eles têm à disposição instrumentos de inteligência, como a observação, atuação de pessoas de confiança, o monitoramento de correspondências e de telecomunicações e o monitoramento na internet.
Como esses meios de vigilância sigilosa atingem intensamente os direitos fundamentais, eles só podem ser usados mediante o atendimento de rigorosos critérios de proporcionalidade. Até mesmo magistrados e deputados podem ser monitorados em sigilo se a proteção da ordem fundamental livre e democrática for mais premente que a proteção da independência e da liberdade de determinados juízes ou deputados. Isso pode acontecer, por exemplo, se um deputado abusar do seu mandato para combater ativamente a ordem fundamental do Estado, exemplificou Josef Christ.
Conclusão
Josef Christ concluiu sua fala afirmando que não faltam na Alemanha instrumentos para combater as ameaças à ordem fundamental livre e democrática. Enquanto a proibição de partidos políticos e o dever de lealdade à Constituição por parte dos funcionários públicos, juízes e soldados protegem a ordem constitucional contra ameaças provenientes do interior do próprio Estado, a proibição de associações, a privação temporária de direitos fundamentais e os órgãos de proteção da Constituição protegem-na contra ameaças vindas da sociedade. A última tábua de salvação são as cláusulas pétreas.
Com esses instrumentos, a Alemanha afastou as nefastas consequências das deficiências da democracia na República de Weimar e da terrível experiência nazista. Mas outra grande lição da República de Weimar é que a ordem livre e democrática é melhor protegida contra seus inimigos quando está firmemente arraigada na convicção política dos cidadãos e sustentada pela ampla maioria da população.
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1 Nesse sentido, alerta Georges Abboud que setores políticos da extrema direita elegeram o Judiciário, em especial o STF, como inimigo ficcional a quem atribuem todos as mazelas do cenário político atual. STF e TSE têm sido acusados de ativismo justamente quando agem em defesa das instituições democráticas, combatendo manifestações autocráticas, fake news e discursos de ódio. O autor pontua ser fundamental estar atento a essas narrativas para que saibamos criticar o Judiciário sem sacrificá-lo. Ativismo judicial. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 18s.
2 Gesetzesvorhaben der Regierung Netanjahus: Israels Rechtsstaat in der Krise. Legal Tribune Online, 26/7/2023.
3 STEINMEIER, Franz-Walter. Eine Demokratie muss wehrhaft sein. Der Spiegel, 9/8/2023.