Em tempos de profundas e rápidas transformações como o nosso, em que a vida social – e profissional – tem se passado cada vez mais no mundo virtual, tem ganhado crescente relevância a questão do bloqueio ou cancelamento de contas de usuários em redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram.
Estima-se que cerca de 5 bilhões de pessoas em todo o mundo usam regularmente a internet, o que corresponde a 63% da população mundial, segundo o estudo Digital 2022: Global Overview Report, publicado pelo site Datareportal1. No Brasil, são mais de 150 milhões de usuários, representando mais de 70% da população2 e na Alemanha, a porcentagem sobe para 94%, segundo dados estatísticos do governo3.
As grandes plataformas digitais são os principais meios de comunicação da sociedade atualmente. Elas são o locus público por excelência, o grande fórum global onde se dá o intercâmbio e o embate de ideias, e onde formam-se opiniões.
O apagamento de postagens e, pior, o bloqueio definitivo de perfis representam um silenciamento e um banimento social. Mesmo o bloqueio temporário, quando indevido, implica não apenas perda de seguidores e contatos, mas, por vezes, perdas de contratos e oportunidades de negócio.
Dessa forma, uma das grandes discussões que se coloca é saber em que medida as grandes plataformas podem suspender ou banir usuários legitimamente desse grande fórum social de comunicação, restringindo diretamente seu direito fundamental de comunicação e liberdade de expressão, garantido tanto no art. 5º IV CF/1988 quanto no art. 5 da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz).
Sob o ponto de estrutural, surge entre os usuários e as empresas gestoras de plataformas de comunicação um contrato de uso (Nutzungsvertrag) por meio do qual a empresa disponibiliza o acesso e uso da plataforma ao usuário, recebendo, como contraprestação pelo serviço prestado, uma autorização para utilizar gratuitamente os dados pessoais do usuário, isto é, uma licença gratuita para o uso dos mencionados dados.
Trata-se de contrato atípico, semelhante à prestação de serviços, razão pela qual no direito comparado muitos autores falam em "serviço em troca de dados" (Dienst gegen Daten) para ressaltar o caráter sinalagmático desse contrato bilateral e oneroso estabelecido entre as partes. Afinal, o usuário só acessa a plataforma se permitir a coleta, o armazenamento, processamento e, sobretudo, a comercialização de seus dados pessoais4.
Além da cessão gratuita de seus dados pessoais, o usuário é obrigado ainda a observar os termos de uso (rectius: condições gerais do contrato) e as diretrizes da comunidade, que estabelecem os padrões de comportamento a serem por todos observados, como, por exemplo, a proibição de postagens de conteúdos discriminatórios, intimidatórios, violentos, ilícitos, falsos (fake news), odiosos (hate speech), etc.
Em caso de desrespeito a essas regras, plataformas como o Facebook, controladora do Instagram e WhatsApp, reservam-se o direito de bloquear ou banir a conta do usuário transgressor, o que pode significar a "morte digital" do individuo.
A jurisprudência alemã sobre bloqueio e exclusão de contas
Na Alemanha, a jurisprudência dos tribunais inferiores tem se posicionado no sentido de que as empresas de tecnologia podem apagar postagens, suspender ou até excluir a conta de usuários que violam o termos de uso e/ou os standards de comportamento da comunidade.
Mas, para isso, é necessário um motivo justo e que se conceda oportunidade de defesa ao usuário, prévia ou a posteriori. Quando a plataforma apaga postagens ou bloqueia o perfil indevidamente, o usuário tem o direito (rectius: a pretensão) de reativar o post ou a conta, sem prejuízo do ressarcimento de eventuais perdas e danos.
O Tribunal de Justiça – Oberlandesgericht (OLG) – da comarca de Rostock, no processo Az. 2 U 19/20, julgado em 18/3/2021, afirmou que o Instagram pode bloquear a conta para evitar um "abuso do perfil" (Missbrauch des Profils) pelo usuário, o que ocorre quando este viola os termos de uso ou as diretrizes da comunidade, por exemplo, com postagens ofensivas ou injuriosas a outro usuário. Nesse caso, a postagem pode ser apagada e o perfil do ofensor bloqueado pela plataforma em razão da violação do direito geral de personalidade da vítima, disse a Corte.
No mesmo sentido foi a decisão de primeiro grau do Landgericht (LG) Koblenz, de 21/4/2020, no processo Az. 9 O 239/18, na qual o juíz reconheceu o direito das redes sociais de apagar conteúdo ou bloquear conta de quem faz postagens desnecessariamente provocativas ou ameaçadoras a outros usuários, pois isso tem um efeito negativo sobre o intercâmbio de ideias e sobre o modelo de negócio como um todo.
A rede social deve, porém, observar o mandamento da proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsgebot) e adotar medidas sancionatórias condizentes com a gravidade da violação praticada pelo usuário, as quais podem variar desde o apagamento (total ou parcial) do conteúdo compartilhado até o bloqueio, temporário ou definitivo, do perfil.
Em caso de ofensas leves aos padrões de conduta da plataforma, sobretudo quando não reincidentes, alguns julgados têm entendido que a empresa gestora da plataforma deve primeiro alertar o titular do perfil a fim de que ele corrija seu comportamento e passe a utilizar sua conta de acordo com o standard imposto pela rede social5.
Em caso de reincidência e/ou infração grave, pode a plataforma bloquear o perfil e, como última medida, excluir definitivamente a conta, banindo o infrator da rede. Vários julgados têm permitido a bloqueio imediato em casos excepcionalmente graves, como a publicação de manifesto discurso de ódio ou o envio de material pornográfico de crianças e adolescente.
Caso semelhante foi apreciado recentemente, em 2/2/2022, pelo Landgericht (LG) München I no processo Az. 42 O 4307/19, no qual um usuário enviou a um amigo, através do Messenger, nove fotos identificadas pelo software do Facebook (PhotoDNA) como pornografia infantil, razão pela qual seu perfil foi imediatamente bloqueado.
Ele entrou com ação judicial pedindo a liberação da conta ao argumento de não ter sido ouvido previamente pelo Facebook e de estar sendo impedido de se comunicar com familiares e amigos ao arrepio de seu direito fundamental à liberdade de expressão.
O tribunal de primeira instância concluiu pela legitimidade do bloqueio sem prévia ouvida do usuário. A sentença salientou que o Facebook não tem apenas o direito, mas o dever de apagar ou bloquear postagens com conteúdos ilegais, puníveis criminalmente e que o mero (re)envio de pornografia infantil, mesmo quando recebida de terceiro, não está protegido pelo âmbito normativo da liberdade de expressão.
Nesse caso, frisou o LG München I, restou demonstrada a existência de um motivo extraordinário (außerordentlicher Grund) a legitimar o bloqueio imediato da conta e a consequente resolução contratual.
Em outro julgado, o Oberlandsgericht (OLG) de Dresden também entendeu que o discurso de ódio claro e manifesto e/ou a formação de "organizações de ódio" (Hassorganisationen) na plataforma configuram justa causa para o bloqueio extraordinário do perfil. Trata-se do processo Az. 4 U 2890/19, julgado em 16/6/2020.
No caso, a Corte de Apelação afirmou que as redes sociais são livres, em princípio, para prever em seus termos de uso a exclusão de comunidades disseminadoras de discursos de ódio e seus apoiadores, embora seja, em princípio, necessário ponderar no caso concreto o direito fundamental à liberdade de expressão do usuário e os efeitos de sua permanente exclusão.
O Judiciário alemão também já se manifestou acerca dos limites temporais do bloqueio da conta, ou seja, por quanto tempo o usuário pode ficar legitimamente impedido de acessar seu perfil.
Em caso de suspeita de ofensa aos termos de uso ou aos padrões da comunidade, alguns julgados entendem que a plataforma pode bloquear o acesso à conta até que os fatos sejam esclarecidos. Foi o que decidiu o juiz de primeiro grau da comarca de Frankenthal no processo LG Frankenthalt Az. 6 O 23/20, julgado em 8/9/2020, em caso envolvendo o Facebook. Esclarecidos, porém, os fatos e a legitimidade da postagem, a plataforma deve liberar imediatamente o acesso do titular à conta.
Sem justo motivo, as plataformas de comunicação não podem, por óbvio, excluir conteúdos ou perfis, ainda quando a empresa se reserve tal direito nas condições gerais do contrato de uso, afirmou o juízo de primeira instância – Amtsgericht (AG)6 – de Saarlouis em decisão proferida em 1/4/2020 no processo Az. 25 C 1233/19. Nesse caso, tais disposições são nulas, pois colocam os usuários em situação de extrema desvantagem.
O bloqueio injustificado configura descumprimento contratual por parte da plataforma, surgindo para o prejudicado uma pretensão à liberação imediata da conta, afirmou o Tribunal de Justiça de Colônia no julgado OLG Köln Az. 15 W 70/18, de 9/5/2019.
A próxima coluna comentará a paradigmática decisão da Corte infraconstituicional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH), proferida em caso envolvendo discurso de ódio na plataforma do Facebook, no qual foi fixada a tese de que a empresa deve ouvir o usuário antes de bloquear o perfil.
Spoiler: essa foi só a primeira, não a última decisão fundamental (Grundsatzurteil) acerca da legitimidade das sanções privadas impostas pelas grandes plataformas de comunicação. Muitas questões ainda estão em aberto.
Resumo (parcial) da ópera
O tema do bloqueio de conteúdo e/ou perfil tem aparente simplicidade, mas, em essência, toca questões nucleares do Direito Privado e do Direito Constitucional7. Basta ter em mente que, a despeito da relação contratual eminentemente privada estabelecida entre as partes, o contrato toca bens de status jusfundamentais: de um lado, a liberdade de expressão e os dados pessoais do usuário, objeto da contraprestação devida à plataforma, e, de outro, a liberdade de empresa (livre iniciativa) da plataforma de estabelecer as diretrizes gerais a serem observadas por todos os usuários.
Isso significa que nessa relação há de se ponderar, no caso concreto, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais eventualmente em colisão.
Além disso, a discussão acerca das sanções impostas nas redes sociais ainda levanta outro problema sensível, qual seja, o de legitimidade, pois muitos questionam se – e até que ponto – deve-se conceder tamanho poder às big techs para controlar e restringir a liberdade de expressão no fórum público global do debate de ideias.
O receio é que as grandes plataformas, que ocupam posições monopolísticas e são movidas por interesses econômicos e/ou políticos, acabem abusando desse poder de censura privada e silenciando discursos contrários a seus interesses, como os relacionados à regulação de conteúdos, controle dos termos de uso, instituição de tributação de serviços digitais, etc.8
Ainda quando se confira às big techs o dever de controlar e combater determinados conteúdos postados em suas plataformas, não se pode deixar de avaliar a legalidade das regras por elas impostas, verificando principalmente se tais regras não colocam os usuários em desvantagem exagerada e/ou não restringem demasiadamente direitos fundamentais caros à sociedade democrática.
O ideal é que o Legislador intervenha fixando uma estrutura normativa, sujeita à apreciação do Poder Judiciário, que, na Alemanha, deve-se dizer, não tem se intimidado em controlar a legalidade das regras ditadas pelos grandes conglomerados digitais que, não raras vezes, tentam substituir o direito posto pelo direito imposto em prol de seus exclusivos interesses.
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1 Disponível aqui. Acesso: 1/3/2022.
2 Veja matéria no jornal Estado de Minas, de 28/9/2021. Disponível aqui. Acesso: 15/5/2022.
3 Confira no site Destatis. Acesso: 15/5/2022.
4 Confira-se a respeito o excelente artigo: METZGER, Axel. Dienst gegen Daten: Ein synallagmatischer Vertrag. AcP 216 (2016), p. 817-865.
5 HOFMANN, Ruben A. Gesperrte Social-Media-Accounts: Nicht ohne Grund. Legal Tribune Online, 20(7/2021.
6 Segundo a lei processual alemã, Amtsgericht e Landgericht são juízos de primeira instância, os quais se diferenciam em relação à competência quanto à matéria e ao valor da causa.
7 Confira-se a respeito o instigante artigo de Marcelo Schenk Duque e Graziela Harff, no qual os autores analisam o banimento de Donald Trump do Twitter em 2021 após a invasão do Capitólio. Os autores chamam atenção para o eventual caráter institucional (e não mais eminentemente privado) da conta do ex-Presidente norte-americano, que utilizava o canal para divulgar informações governamentais, peculiaridade que não se põem nos casos analisados no presente artigo, os quais envolvem apenas pessoas privadas. Confira-se: Bloqueio permanente do Twitter, a pena capital no mundo digital. Conjur, 17/1/2021.
8 SCHENK DUQUE, Marcelo; HARFF, Graziela. Op. cit., p. 4.