A coluna German Report inicia o novo ano com o julgado mais esperado no Direito Privado durante a pandemia: a Corte infraconstitucional alemã – Bundesgerichtshof (BGH) – proferiu decisão esclarecendo a grande dúvida que atormentou os civilistas desde o início da crise epidemiológica: mas, afinal, o fechamento das lojas configura vício na coisa locada, um caso de impossibilidade temporária ou alteração posterior das circunstâncias?
Essa questão tem relevância teórica e prática, pois os pressupostos e consequências jurídicas das três figuras – vício redibitório, impossibilidade e quebra da base do negócio – são distintos, determinando, em última análise, o destino da lide.
O caso
A lide que foi parar no BGH, em Karlsruhe, é banal: as partes discutem acerca da redução de um único mês de aluguel do ano de 2020, quando o estabelecimento comercial ficou fechado por conta do primeiro lockdown na Alemanha.
Segundo consta dos autos, as partes celebraram o contrato de locação de um prédio comercial com estacionamento em setembro de 2013. O objeto deveria ser utilizado exclusivamente como local de venda e depósito de produtos têxtis. Desde janeiro de 2019, o valor da locação – com encargos locatícios – era de 7.854,00 euros.
O contrato continha, porém, uma peculiaridade: o § 5 n. 3 afastava expressamente qualquer direito do inquilino a indenização ou redução do aluguel em caso de interrompimento de gás, energia, água e escoamento d'água causado por circunstâncias não imputáveis ao locador, bem como por inundações e "outras catástrofes".
Por conta da virulenta disseminação do coronavírus, o Estado de Sachsen (Saxônia) determinou, em 18/3/2020, o fechamento dos estabelecimentos comerciais não-essenciais e a suspensão dos eventos em toda a região, com base no § 28 I da Infektionsschutzgesetz, a lei alemã de proteção contra doenças infectocontagiosas.
Consequentemente, o estabelecimento comercial do locatário ficou fechado pelo período de um mês, de 19 de março a 19 de abril de 2020. Em correspondência datada de 24/3/2020, o inquilino comunicou ao locador que não pagaria o aluguel do mês de abril e que iria abater do próximo pagamento a quantia desembolsada a mais no período de 19 a 31 de março. Os meses seguintes foram pagos normalmente.
O processo judicial
Após tentar, sem sucesso, resolver o caso amigavelmente, a proprietária do imóvel entrou com ação de cobrança contra a empresa locatária requerendo o pagamento do valor do aluguel (7.854,00 €) mais juros e custos extrajudiciais de advogado.
A ação foi julgada procedente em primeira instância pelo Landgericht de Chemnitz, em 26/8/2020, e o locatário condenado ao pagamento integral da renda. Mas o Oberlandesgericht (OLG) de Dresden reformou parcialmente a decisão, reduzindo o valor do aluguel em 50%.
O Tribunal entendeu, em síntese, que as medidas do Poder Público de combate à pandemia de Covid-19 – dentre as quais o fechamento de lojas – gerou uma crise sistêmica e, consequentemente, uma perturbação na grande base do negócio, vez que tais medidas provocaram profundas alterações na vida social e econômica, o que justificaria a revisão do contrato.
Como nenhuma das partes pode ser responsável pela quebra da base do negócio, o aluguel deve ser reduzido meio a meio, distribuindo-se, assim, os prejuízos da pandemia de forma equânime entre os contratantes.
Segundo o OLG Dresden, não restara comprovado que o inquilino tenha recebido auxílio estatal nesse período, nem que tenha conseguido vender seus produtos por meio de entrega ou retirada, o que reforçaria a necessidade de diminuir o valor do aluguel. Trata-se do processo OLG Dresden 5 U 1782/20, julgado em 24/1/2021.
O processo subiu a Karlsruhe, cidade sede dos tribunais superiores, por meio de Revision interpostas pelas partes, tendo o BGH dado provimento aos recursos, ordenando a suspensão da decisão atacada e a remessa dos autos à Corte de origem para novo julgamento. Trata-se do processo BGH XII ZR 8/21, julgado semana passada, dia 12/1/2022.
A decisão do Bundesgerichtshof
O 12º Senado do Bundesgerichtshof entendeu, em suma, que faltara fundamentação adequada à decisão do OLG Dresden. Não cabe uma redução padronizada do aluguel em 50%, dividindo-se meio a meio os prejuízos da pandemia entre as partes ao mero argumento de que nenhum dos contratantes deu causa à quebra da base do negócio jurídico.
É necessário uma análise detalhada de todas as circunstâncias do caso concreto para verificar a presença de todos os pressupostos da quebra da base do negócio, o que não fora feito pelo Tribunal a quo, razão pela qual os autos devem retornar à origem para reapreciação da matéria.
O BGH, porém, fixou as linhas dogmáticas gerais da questão, afirmando, em apertada síntese, que o fechamento das lojas não configura vício redibitório, nem impossibilidade, mas sim quebra da grande base do negócio. E disse mais: a lei emergencial alemã não impede o recurso às regras gerais do BGB.
a) A lei emergencial não impede o recurso às regras gerais do BGB
Uma primeira questão posta no julgamento foi se a lei emergencial da pandemia não impediria o recurso às regras gerais do regime da perturbação da prestação do Código Civil alemão, principalmente do § 313 BGB no qual está positivado o instituto da perturbação na base do negócio.
Da mesma forma, discutiu-se se a mesma afastaria a incidência das normas sobre vícios redibitórios no âmbito da locação, as quais fazem parte, na Alemanha, do sistema geral da perturbação da prestação, profundamente remodelado com a Reforma do Direito das Obrigações em 2001/2002.
Recorde-se que a Alemanha editou várias leis emergenciais para tentar contornar ou minimizar os impactos da pandemia em diversas situações jurídicas. Uma delas acrescentou o Art. 240 § 2 à Lei de Introdução ao BGB – Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (EGBGB) – proibindo temporariamente a denúncia por falta de pagamento e o despejo de inquilinos.
Com efeito, antevendo um atraso em massa no pagamento dos alugueis em função da perda ou redução da renda por pessoas físicas e jurídicas em decorrência da crise epidemiológica, a mencionada norma suspendeu temporariamente o direito do locador de denunciar a locação por falta de pagamento, desde que a mora tivesse como causa as medidas governamentais de combate à pandemia.
Como comentado à época nesta coluna (clique aqui), a referida lei emergencial não decretou uma moratória geral nos contratos de locação, mas tão só suspendeu temporariamente a denúncia e o despejo dos inquilinos1. O Art. 240 § 2 EGBGB parte, portando, do pressuposto de que persiste, em princípio, o dever do inquilino de pagar a renda, ainda quando ao mesmo fosse facultado renegociar com o locador a forma de pagamento dos valores em atraso2.
A lei, porém, nada dispôs sobre o valor do aluguel ou sobre quaisquer outros impactos das medidas de combate à pandemia sobre o dever de pagamento do aluguel (Mietzahlungspflicht), afirmou o BGH. Ou seja, ela não disse se o locatário – que está, sem culpa, em mora com o pagamento do aluguel em decorrência das medidas restritivas de combate à pandemia – deve ou não pagar o valor integral durante o período de interdição da atividade comercial.
Não decorre da literalidade da norma, nem do seu escopo (proteger inquilinos e arrendatários contra a perda de seu ponto espacial de vida devido ao atraso não culposo no pagamento das rendas) e, menos ainda, da Exposição de Motivos (Gesetzesbegründung) que o legislador teria pretendido impedir o recurso à figura da quebra da base do negócio ou a qualquer outro instituto pertinente.
Isso é importante ser frisado, porque algumas vozes sustentaram a impossibilidade de revisão dos valores do alugueis ao argumento de que o legislador emergencial teria regulado exaustivamente a questão e só permitido aos locatários em dificuldade negociar a forma do pagamento do atrasado, mas não pleitear a diminuição do valor da prestação.
A Corte seguiu, porém, a doutrina flagrantemente majoritária que não atribui qualquer eficácia de bloqueio (Sperrwirkung) à lei emergencial, impeditiva do recurso à grande Codificação para disciplinar os multifacetados impactos da pandemia sobre os contratos de locação comercial e residencial.
Aqui não se pode furtar em fazer um rápido paralelo com a nossa lei emergencial (lei 14.010/2020), que estabeleceu um regime jurídico emergencial de direito privado para o período pandêmico, estimado para acabar com data marcada: 30/10/2020, o que fez com que a lei caducasse, ironicamente, quando a Europa enfrentava a segunda onda de Covid-193.
O problema da eficácia de bloqueio não se pôs e nem poderia se colocar no Brasil, porque a lei 14.010/2020 sequer proibiu temporariamente o despejo dos inquilinos por falta de pagamento em decorrência das medidas de isolamento social e paralisação (total ou parcial) das atividades não-essenciais, nada dispondo também sobre a possibilidade ou não de redução dos alugueis4, de modo que aqui, por maior razão, não faria qualquer sentido recorrer à linha argumentativa de aplicação exclusiva da lei emergencial.
Ao contrário, por maior razão deve o magistrado recorrer – como o fez, de fato – ao Código Civil para revisar os contratos desequilibrados pela pandemia, o que mais se justifica diante da omissão da Lei 14.010/2020 em disciplinar os graves impactos do vírus sobre os contratos de locação e os contratos em geral.
Dessa forma, a confusa redação do art. 7º da lei 14.010/2020 – que não considera o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do (há décadas, estável) padrão monetário como fatos imprevisíveis para os fins dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil – também não tem qualquer eficácia obstativa da aplicação das regras gerais do Código Civil.
A uma, porque a intenção do legislador não foi impedir a revisão contratual, mas tão só coibir comportamentos oportunistas daqueles que, já em mora, alegam as dificuldades da pandemia para se esquivar de suas obrigações5.
A duas, porque a norma, caso pretendesse regular o problema do desequilíbrio contratual superveniente, teria extrapolado sua competência ao – a priori e in abstrato, desconectado das peculiaridades do caso concreto – desqualificar os efeitos econômicos do maior evento extraordinário e imprevisível desde a 2ª Guerra Mundial: a pandemia de Covid-19, algo que não faz sequer o Código Civil.
E, evidentemente, ao legislador emergencial não é dado dizer mais que a Codificação, esvaziando – sem razões de fundo convincentes – o suporte fático do art. 317 CC2002, que tem em vista justamente a variação do valor da prestação provocada por acontecimentos de efeitos extraordinários e imprevisíveis, como variação cambial, desvalorização monetária ou alta inflacionária anormais, aos moldes do ocorrido durante a 1ª Guerra Mundial na Europa, que deu ensejo na França à edição da Loi Faillot (1918) e, na Alemanha, à aplicação da teoria da quebra da base do negócio com base no princípio da boa-fé objetiva do § 242 BGB.
Aceitar que o legislador emergencial, contrariando o Codex, pretendesse subtrair do contratante prejudicado toda e qualquer possibilidade de se defender judicialmente dos dramáticos efeitos socioeconômicos da maior crise de saúde pública do século, seria anular a autonomia privada material, pois ele jamais teria celebrado o contrato, ou jamais o teria celebrado naqueles termos, se tivesse antevisto a ocorrência da pandemia de Covid-19 e seus dramáticos efeitos colaterais.
A norma padeceria, assim, do vício insanável da inconstitucionalidade. Não à toa ela permaneceu letra morta na prática judiciária tendo em vista a enxurrada de decisões judiciais, prolatadas de norte a sul do país, readaptando os contratos desequilibrados em decorrência da pandemia.
b) Fechamento das lojas não configura vício, nem impossibilidade
No que tange ao mérito do caso, o Bundesgerichtshof foi enfático ao afirmar que o fechamento da loja não configura impossibilidade, nem vício na coisa. Da mesma forma que no Brasil, mas por razões de fundo totalmente distintas, surgiu na Alemanha a dúvida sobre se o fechamento da loja poderia configurar vício na coisa, nos termos do § 536 I BGB, que – tal como o art. 567 CC2002 – autoriza o locatário a pleitear a redução do aluguel.
Por aqui, essa ideia apresentou-se como alternativa teórica para justificar a redução do aluguel e, logo, a revisão contratual fora das específicas hipóteses dos arts. 317 e 478 CC2002, os quais têm sido interpretados restritivamente, por renomada doutrina, com o fim deliberado de dificultar a revisão judicial dos contratos desequilibrados pela pandemia.
Com efeito, ao contrário do esperado, essa corrente não buscou, como de praxe, uma justificativa na "tábula axiológica" da Constituição para legitimar a adaptação dos contratos nos quais os devedores se viram – sem culpa – em extrema dificuldade de cumprir suas obrigações em decorrência direta e imediata do distanciamento social e da paralisação total ou parcial das atividades econômicas não-essenciais impostos pela pandemia6.
Ao contrário: fechou as portas da revisão por onerosidade excessiva ao argumento de que o art. 478 CC2002 exige elevação excessiva no valor da prestação, ausente nos casos de locação e que a pandemia não teria afetado a relação contratual, mas tão só o sujeito da relação contratual, vale dizer, não teria atingido a economia do contrato, mas tão só a situação pessoal do devedor, colocando-o numa situação de dificuldade financeira, o que não autorizaria a revisão do pactuado.
Na Alemanha, porém, o recurso à figura do vício na coisa deveu-se ao fato de que o conceito de vício do § 536 BGB é bem mais amplo que no Brasil, não se limitando a um defeito oculto na coisa que a torna imprópria ao uso a que se destina.
De acordo com o § 536 BGB, o vício é um descompasso, i.e., uma desconformidade entre o estado real da coisa e o estado devido, segundo o contrato. Como vício da coisa locada considera-se não apenas o defeito (Mangel) que impede o uso, mas também a falta de qualidades asseguradas pelo locador (Fehlen einer zugesicherten Eigenschaft) e o vício jurídico (Rechtsmangel)7.
Em situações excepcionais, doutrina e jurisprudência admitem que obstáculos e restrições ao uso da coisa, provenientes do Poder Público, que impeçam o uso do objeto locado conforme ao contrato, possam configurar vício na coisa. Para tanto, porém, é necessário que esses obstáculos e restrições baseiem-se em qualidades concretas da coisa e não em circunstâncias pessoais e/ou operacionais do locatário8.
Com base nesse amplo conceito de vício, uma minoritária doutrina advogou que o fechamento da loja, determinado pelo Poder Público por causa da pandemia, configuraria vício da coisa, vez que a ordem de fechamento estaria vinculada diretamente ao objeto locado e à sua localização dentro da área de risco epidemiológico. E, em assim sendo, o locador poderia pedir um abatimento do valor do aluguel.
Contudo, a opinião amplamente majoritária reconhece a necessidade de revisão do aluguel, mas sob outros fundamentos, opondo-se a essa corrente ao argumento de que o fechamento da loja não configura vício, vez que a proibição de funcionamento – embora constituindo obstáculo ao uso do imóvel locado – não tem causa na qualidade, no estado ou na localização do bem.
De fato, para configurar vício na coisa, afirmou o BGH, a ordem estatal de fechamento teria que decorrer de problemas diretamente relacionados com as qualidades da coisa locada, seu estado ou localização e não com circunstâncias pessoais e/ou operacionais do locatário. E, nessa constelação de casos, a ordem de fechamento e/ou restrição de uso não se deveu a problemas substanciais ou espaciais no imóvel, mas a circunstâncias operacionais do inquilino.
De fato, as restrições de uso durante a pandemia não tiveram por causa as qualidades concretas do imóvel, nem seu estado ou localização, mas simplesmente o tipo de atividade realizada e o tráfego de pessoas daí decorrente, que favorecia a propagação do vírus.
A ordem de fechamento não tinha por destinatário a um locatário individual, mas dirigia-se indistintamente a todos os agentes econômicos ofertantes de serviços não-essenciais. A finalidade da medida não foi contornar um problema concreto no imóvel do locatário, mas tentar conter a propagação da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, proteger a população e evitar o colapso do sistema de saúde.
Como em lugares frequentados por várias pessoas há risco elevado de contágio, o fechamento de locais e estabelecimentos de atividades não-essenciais foi uma medida adequada e necessária para reduzir o contato humano e, consequentemente, o contaminação.
Dessa forma, as medidas restritivas do Poder Público não afetaram a coisa em si, mas a utilização e a rentabilidade do bem. Ocorre que, na locação comercial, os riscos de uso do bem, principalmente o risco de obter ganho com a coisa, fazem parte, em princípio, da esfera jurídica do locatário, o que impede que se alcance a redução do aluguel com recurso à figura dos vícios redibitórios.
Assim, se as expectativas de rendimento do inquilino não se concretizam devido a circunstâncias posteriores adversas, tem-se, em princípio, a materialização de um risco típico da locação comercial na esfera jurídica do locatário. Isso vale ainda quando a rentabilidade do negócio seja frustrada por medidas supervenientes de natureza legal ou administrativa, afirmou o Tribunal de Karlsruhe.
Isso significa dizer que o locador de espaços comerciais não assume o risco pelo uso da coisa, o qual inclui o risco de auferir proveito econômico com o imóvel locado. Pelo § 535, inc. 1, 2º período do BGB, o locador obriga-se apenas a manter o bem em estado adequado ao uso durante todo o período do contrato. Mas, como visto, o estado do bem não fora comprometido pelas medidas governamentais de combate à pandemia. Nas palavras da Corte:
"Se, durante o desenrolar da relação locatícia, surgem, devido a medidas legislativas, restrições à utilização, conforme ao contrato, do objeto comercial locado, isso também pode constituir um vício na acepção do § 536, inc. 1, 1º período do BGB. Pressuposto para tanto é, porém, que a restrição de uso, decorrente da medida legislativa, esteja diretamente relacionada com a qualidade concreta, o estado ou a localização do objeto alugado. Outras medidas legislativas que afetam o êxito comercial recaem, ao contrário, na esfera de risco do locatário, pois o locador de estabelecimentos comerciais só é obrigado, nos termos do § 535, inc. 1, 2º período do BGB, a manter o imóvel alugado, durante a vigência do contrato, em um estado que permita ao inquilino utilizá-lo como previsto no contrato. No caso de locação de espaços comerciais, porém, o locador suporta o risco de utilização da coisa locada. Isso inclui, acima de tudo, o risco de poder obter lucro com o bem alugado. Se a expectativa de lucro do locatário não for satisfeita devido à ocorrência de uma posterior circunstância, realiza-se um risco típico do locatário comercial. Isto também se aplica aos casos em que o negócio do inquilino é prejudicado por medidas legislativas ou administrativas supervenientes."9
E conclui o Tribunal, afirmando que: "Nessa base jurídica, o fechamento da loja do réu, realizado com base nas disposições gerais do Ministério de Coesão Social do Estado da Saxônia de 18 e 20 de março de 2020, não conduz a um vício na coisa locada, nos termos do § 536, inc. 1, 1º período do BGB, porque a restrição de uso, associada à ordem de fechamento, não se baseia na qualidade concreta, no estado ou na localização do bem alugado, mas liga-se às operações comerciais do réu enquanto inquilino."10
O fato da ordem estatal de fechamento impedir ou restringir o acesso de potenciais clientes ao espaço locado é insuficiente para configurar um defeito na coisa. É bem verdade, ponderou o BGH, que o acesso ilimitado ao espaço locado é pressuposto para o uso do bem conforme ao contrato, principalmente em estabelecimentos comerciais destinados ao público em geral.
Porém, para evitar que o conceito de vício perca seus contornos, a restrição ao acesso só deve ser considerada vício da coisa quando decorrer diretamente de problemas de qualidade, estado ou localização do bem. É o caso, disse a Corte, de obras realizadas pelo Poder Público no entorno do objeto que dificultam ou impeçam o acesso ao bem – o que, atente-se, não configuraria vício no direito brasileiro devido à estreiteza do conceito nuclear do art. 441 CC2002.
Mas, no caso em comento, a localização do imóvel é irrelevante para a configuração do vício, pois a proibição de funcionamento e a restrição de uso valem indistintamente em toda a área territorial da Saxônia, afirmou a Corte.
O BGH salientou ainda que o defeito da coisa não resulta também do escopo do contrato, ou seja, do fato do contrato ter por fim o uso do espaço como local de venda e armazenamento de produtos têxteis. Aqui, o Tribunal recordou que a extensão dos deveres assumidos pelo devedor – nesse caso: os deveres de prestação a cargo do locador – deve ser apurada com base na interpretação objetiva segundo a boa-fé, tendo em vista o horizonte do receptor da declaração, nos termos dos §§ 133 e 157 BGB.
Sob essa perspectiva, concluiu o BGH, um locatário probo e honesto não pode interpretar a obrigação assumida por seu locador como se ele quisesse garantir o uso da coisa em todas e quaisquer circunstâncias imagináveis, sob pena de tornar ilimitada a responsabilidade do locador11.
Por isso, não é razoável admitir que a locadora, autora da ação, quis assumir o dever de garantir a utilização do bem e, consequentemente, de responder ilimitadamente por quaisquer restrições de uso, inclusive as decorrentes da pandemia de Covid-19. Em outras palavras: o locador não responde pela ordem de fechamento condicionada pela pandemia.
Por fim, o BGH também descartou o argumento que pretendia justificar a aplicação do regime dos vícios redibitórios à atual constelação de casos (fechamento das lojas por causa da pandemia) com base em antigas decisões do Tribunal do Império (Reichsgericht) que, durante a 1ª. Guerra Mundial, considerara vício na coisa a interdição pelo Poder Público de danças em restaurantes e congêneres, destinados a tal fim12.
Naquela época, disse a Corte de Karlsruhe, o conceito de vício era totalmente diferente do atual, remodelado com a Reforma do Direito das Obrigações em 2001/2002, e, além disso, a teoria da quebra da base do negócio ainda estava em gestação, só sendo desenvolvida posteriormente, razão pela qual provavelmente o Reichsgericht dela não lançou mão.
Em suma, o fechamento das lojas, condicionado pela pandemia, não configura vício na coisa, pois não atinge o bem em si, mas apenas seu uso e rentabilidade, riscos que fazem parte da esfera jurídica do locatário de espaços comerciais. Logo, o locatário não faz jus à redução do aluguel alegando vício na coisa.
Da mesma forma, ele não se livra do dever de pagar a renda por estar o locador impossibilitado – total ou parcialmente – de cumprir a obrigação de conservar o bem em estado adequado ao uso. O dever de garantir o uso do bem, de acordo com o fim do contrato, não se tornou impossível para o locador. Ao contrário, disse o BGH: este cumpriu sua obrigação mesmo durante o período de fechamento da loja, até porque ele não assumira o dever de responder pela interdição no funcionamento decretada pelo Poder Público em decorrência da pandemia de Covid-19.
Com isso, a Corte afastou o recurso aos institutos do vício redibitório e da impossibilidade, disciplinada no § 275 I BGB c/c § 326 I BGB, linha argumentativa também ouvida por aqui a fim de justificar a redução do valor do aluguel de espaços comerciais durante a pandemia.
b) Fechamento das lojas configura quebra da grande base do negócio
Na verdade, o BGH confirmou o que sólida doutrina já vinha afirmando desde o início da crise de saúde pública: o fechamento das lojas por determinação do Poder Público para contenção da pandemia configura quebra da base do negócio, podendo justificar a revisão contratual desde que preenchidos os demais pressupostos para a aplicação da teoria, positivada no § 313 BGB.
Segundo o § 313 I BGB, quando as circunstâncias presentes no momento da conclusão do negócio, que formaram a base do negócio, sofrem profundas alterações em decorrência de eventos supervenientes, não antevistos pelas partes, de modo que se possa concluir – à partir da análise das circunstâncias do caso concreto – que as partes não teriam concluído o contrato, ou o teriam feito sob outras condições, pode o contratante prejudicado pedir a adaptação do negócio quando demonstrar, adicionalmente, que a manutenção das condições inicialmente pactuadas tornou-se insustentável, ou seja, que a manutenção inalterada do contrato tornou-se irrazoável.
O § 313 II BGB vem complementar a norma afirmando que também ocorre uma quebra na base do negócio quando as representações das partes mostrarem-se posteriormente equivocadas. O inc. 2 do § 313 BGB consagra a chamada base subjetiva do negócio, que são as representações comuns às partes – ou à uma delas, mas não contestadas pela outra – acerca da existência ou da ocorrência futura de certas circunstâncias, as quais embasaram a decisão de contratar do(s) contratante(s).
Ambas as situações – quebra da base objetiva ou da base subjetiva do negócio – conduzem ao mesmo resultado, permitindo a revisão contratual ou a extinção do negócio, quando não for possível a adaptação, nos termos do § 313 III BGB.
Ora, é evidente que a pandemia de Covid-19 exigiu uma massiva intervenção do Estado na vida social e econômica para conter a vertiginosa propagação do vírus, não só na Alemanha, mas em outras partes do globo. Essas gravosas medidas governamentais de combate à pandemia – dentre as quais o distanciamento social, o fechamento de estabelecimentos comerciais e as restrições de funcionamento – provocaram uma crise sistêmica e, consequentemente, uma perturbação na grande base do negócio, pois alteraram profundamente a vida social e econômica, disse o BGH.
Não apenas a base objetiva foi profundamente abalada, mas também a base subjetiva, pois, no caso sub judice, é evidente que as partes, ao celebrar o contrato em 2013, não imaginaram que ocorreria uma pandemia mundial que demandaria massivas intervenções do Poder Público na vida econômica e social, e, principalmente, gravosas interferências no funcionamento das atividades da empresa locatária, restringindo consideravelmente a utilização do espaço locado. Se tivessem previsto, certamente teriam disciplinado a questão ou estabelecido regras de adaptação do contrato, disse a Corte.
Dessa forma, sob qualquer ângulo que se olhe a questão, o resultado é o mesmo: as massivas restrições impostas à vida social e econômica afetaram tanto a base subjetiva, quanto a base objetiva do negócio. A rigor, considerando a dimensão e os efeitos das medidas restritivas, que geraram uma crise sistêmica mundial de severos efeitos (sobretudo macroeconômicos), houve a quebra da chamada grande base do negócio.
A grande base do negócio, explica o Tribunal, são as expectativas das partes de que as condições-quadro gerais de natureza política, econômica e sociais não sejam perturbadas por eventos anormais e extraordinários, como guerras, revoluções, hiperinflação ou catástrofes naturais. Essas condições-quadro, presentes no momento da celebração, foram inquestionavelmente abaladas com as medidas estatais interventivas para a contenção da pandemia.
Não por acaso o legislador emergencial alemão, a fim de espancar quaisquer dúvidas porventura ainda existentes, interveio no apagar das luzes de 2020 acrescentando o § 7 ao Art. 240 da Lei de Introdução ao BGB (EGBGB), no qual estabeleceu expressamente a presunção de que o fechamento dos estabelecimentos comerciais configurava evento (circunstância) extraordinário que provocou profundas alterações na base dos contratos de locação comercial e arrendamento13.
A norma presume, contudo, apenas a presença do elemento factual (real)14 do instituto, qual seja, a ocorrência de profundas alterações supervenientes nas circunstâncias iniciais do negócio, i.e., a quebra da base do negócio. Para a revisão contratual, porém, faz-se necessário ainda o preenchimento dos demais elementos do tatbestand do § 313 BGB.
Assim, é imprescindível ainda que o cumprimento do contrato, tal como originalmente pactuado, tenha se tornado irrazoável para a parte afetada (elemento normativo) e que se possa concluir – à partir da análise de todas as circunstâncias do caso concreto, dentre as quais a repartição legal ou negocial dos riscos – que os contratantes, se tivessem antevisto a alteração nas circunstâncias, teriam celebrado o contrato com outros termos ou quiçá desistido do negócio (elemento hipotético)15.
O BGH frisou que, em princípio, descabe revisão contratual diante de circunstâncias e/ou expectativas que, por força do pactuado, fazem parte da esfera de risco da parte, pois a repartição – e assunção – negocial dos riscos exclui, em regra, por óbvio, a possibilidade do contratante alegar perturbação na base do negócio diante da materialização do risco.
Nada obstante e a despeito do § 5 n. 3 do contrato de locação afastar o direito à indenização ou à redução do aluguel no caso do estabelecimento ficar interditado por causa de “catástrofes” em geral, a Corte entendeu que o locatário não assumiu sozinho os riscos de uso da coisa na hipótese da paralisação do estabelecimento ser provocada pela pandemia de Covid-19.
Segundo o Tribunal, as disposições contratuais acerca da distribuição dos riscos devem ser interpretadas restritivamente, especialmente quando alteram a repartição legal dos riscos. Dessa forma, pela literalidade do texto, a cláusula contém apenas a renúncia a pretensões decorrentes de vícios redibitórios na coisa, mas a pandemia e seus efeitos não caracterizam vício, como demonstrado.
Assim, não se pode concluir, à partir da interpretação da cláusula contratual do § 5 n. 3, que o locatário – além de renunciar às suas pretensões redibitórias – fez uma renúncia geral também para o caso da interdição decorrer de uma pandemia de extensão global, assumindo sozinho todos os riscos daí decorrentes, dentre os quais o de não poder usar regularmente a coisa locada durante determinado período.
Tendo em vista que nenhuma das partes – no momento da celebração do contrato em 2013 – previu que o estabelecimento poderia ficar fechado durante certo tempo em decorrência de medidas governamentais de combate à pandemia, pode-se razoavelmente supor que elas teriam celebrado o contrato com outro conteúdo se tivessem antevisto os efeitos gravosos decorrentes dessas medidas.
E mais: é de se admitir que contratantes leais e honestos não teriam jogado todos os riscos econômicos, conexos à pandemia, exclusivamente nos ombros do locatário, mas teriam, ao contrário, previsto a possibilidade de adaptação do aluguel. Dessa forma, o BGH interpretou restritivamente a distribuição contratual dos riscos, dela excluindo os riscos concretos decorrentes da pandemia.
Presente, assim, o elemento hipotético (celebração do contrato sob outras condições), falta averiguar ainda a ocorrência do elemento normativo, ou seja, se a manutenção do pactuado – mais precisamente: do valor do aluguel – tornou-se insuportável para o locatário, pois não cabe revisão contratual quando a manutenção da prestação, ponderadas todas as circunstâncias, ainda for razoavelmente exigível do devedor.
Inicialmente, a Corte relembrou que é o locatário quem suporta, em regra, o risco da utilização da coisa e isso inclui o risco de auferir ganho do imóvel. Assim, quando as expectativas de rentabilidade do inquilino não se concretizam por eventos supervenientes, materializa-se um risco típico do locatário de espaços comerciais.
Porém, quando essas expectativas de rentabilidade são frustradas por medidas de império (ex: fechamento do estabelecimento por certo tempo) do Estado para combater uma pandemia, isso não mais se deixa acobertar pelos “riscos normais” da locação comercial.
As dificuldades e prejuízos financeiros não decorreram de decisões empresariais ou de representações frustradas do locatário de poder usar o espaço para auferir retorno financeiro. Suas dificuldades e prejuízos financeiros decorreram, na verdade, das amplas intervenções estatais na vida econômica e social para combater a pandemia, vale dizer, resultaram de um fator externo, alheio à sua influência, pelo qual nenhum dos contratantes pode ser responsabilizado.
"Com a pandemia de Covid-19", disse o BGH, "materializou-se, em última análise, um risco geral de vida, que não é abarcado pela repartição contratual do risco sem uma correspondente regra contratual. Essa crise sistêmica, com todas as suas consequências de largo alcance, conduziu, ao contrário, a uma perturbação da grande base do negócio."16 E o risco daí decorrente não pode, em princípio, ser imputado somente a um dos contratantes, concluiu o Tribunal.
A Corte, contudo, determinou o retorno dos autos ao Tribunal a quo, porque o reequilíbrio do contrato não pode ser feito através de uma fórmula padronizada, dividindo-se equitativamente os prejuízos entre as partes, como fez o OLG Dresden ao determinar a redução de 50% do aluguel sem analisar detidamente as circunstâncias do caso concreto.
Frise-se: não há uma fórmula matemática pronta e acabada para a adaptação e reequilíbrio dos pactos. Isso requer, ao contrário, uma ampla ponderação de todas as circunstâncias e variantes do caso individual.
Assim, há de se verificar, inicialmente, quais as desvantagens efetivamente sofridas pela parte prejudicada: no caso sub judice, qual a redução amargada no faturamento. Em seguida, há que se considerar as medidas empreendidas – ou que poderiam ter sido adotadas – pelo locatário para minimizar a perda durante o período de fechamento do estabelecimento: vendas online, vendas com serviço de entrega ou retirada, etc.
Deve-se analisar também os benefícios financeiros eventualmente obtidos, a exemplo de auxílios financeiros concedidos pelo Estado e, por fim, há que se ter em conta na ponderação também os interesses do locador. Não há, portanto, uma fórmula matemática pronta (fifty-fifty) para reequilibrar a relação contratual afetada por eventos supervenientes de gravosas consequências.
Em regra, cabe à parte prejudicada alegar e provar os requisitos da perturbação na base do negócio, principalmente que a manutenção inalterada do pactuado tornou-se insuportável. Nessa constelação de casos, isso significa que o inquilino deve alegar e provar as desvantagens com o fechamento do estabelecimento, os esforços razoáveis que empreendeu para compensar as perdas, inclusive que ele se esforçou para receber ajuda estatal, disse a Corte.
Se o locador alegar que as perdas do locatário não decorrem da pandemia, cabe-lhe, evidentemente, o onus probandi quanto a esse ponto. Tudo isso mostra o equívoco em se promover a revisão contratual com base em alegações genéricas de que a pandemia a todos prejudicou, sem uma análise das individualidades do caso, como tem-se visto em algumas decisões judiciais no Brasil.
Reflexões para o direito brasileiro
A decisão da Corte alemã tem importância crucial para o direito brasileiro – a rigor para todos os países pertencentes ao círculo jurídico romano-germânico. E a razão é simples: independente do texto legal, as questões de fundo nela discutidas dizem respeito à dogmática do direito obrigacional. Ela mostra a necessidade de se delimitar com clareza os institutos jurídicos, o que só contribui para sua aplicação prática e para o refinamento teórico-dogmático da ciência do direito.
Nesse ponto, o julgado separa, com precisão cirúrgica, as situações jurídicas de vício na coisa, impossibilidade e alteração superveniente nas circunstâncias, enevoadas pela complexidade dos problemas postos pela pandemia. Sem dúvida, nem sempre é fácil encontrar as claras fronteiras entre as multifacetadas situações de perturbação da relação obrigacional, como bem o demonstram as discussões em torno dos contratos de locação comercial e arrendamento durante a pandemia.
A decisão do BGH serve para mostrar que o fechamento dos estabelecimentos comerciais por determinação do Poder Público com o escopo de combate à pandemia de Covid-19 não configura vício na coisa locada, nos termos do art. 567 CC2002, nem hipótese de impossibilidade do locador em garantir o uso do imóvel. Isso não é uma questão de lei, mas de delimitação dogmática dos institutos em colisão.
O fechamento dos estabelecimentos configura uma alteração posterior nas circunstâncias iniciais do negócio, que os alemães apropriadamente chamam de base, fundamento do negócio, pois também sobre ela se ergue e se baseia a decisão de contratar. Se o ordenamento jurídico vai permitir ou não a readaptação do contrato nessas situações, é uma questão que varia conforme o sistema jurídico de cada país.
Com respeito às opiniões divergentes, parece equivocado pensar que o Código Civil não oferece solução para o desequilíbrio contratual provocado pela pandemia. A Codificação, se não dispõe de uma solução pronta e acabada, fornece um instrumental mínimo para a construção de soluções para esse intrincado problema, que tem se apresentado em todos os sistemas jurídicos.
Evidentemente, o Código Civil não pode permanecer indiferente à gravosa crise sistêmica, de dimensão mundial, provocada pela pandemia de Covid-19, que comprometeu a situação socioeconômica de inúmeras pessoas físicas e jurídicas. Como deixou claro o Tribunal alemão, não está em causa um problema financeiro exclusivo de um devedor individual que, por inabilidade ou azar do destino, caiu em ruina financeira e está sem condições de cumprir suas obrigações.
O problema é mais complexo, estando em causa uma dificuldade excessiva que atinge um número expressivo de pessoas naturais e empresas dos mais variados portes – excepcionados, evidentemente, aqueles que ficaram imunes à crise ou até lucraram com ela. A excessiva dificuldade de prestar que se está a tratar decorreu, ao contrário, das amplas intervenções estatais na vida econômica e social para combater a pandemia, ou seja, resultou de um fator externo, alheio à influência das partes, pelo qual não pode o devedor – nem o credor, por certo – ser responsabilizado.
É imperioso, portanto, distinguir, de um lado, a dificuldade financeira subjetiva e, de outro, a excessiva dificuldade de prestar provocada pela pandemia, pois, como atentamente percebeu o BGH, com a pandemia de Covid-19 materializou-se um risco geral não abarcado pela repartição legal – e, até então, pela repartição negocial – dos riscos.
Todo ordenamento jurídico precisa dispor de mecanismos de readaptação dos contratos, válvulas de escape à rigidez da força vinculante do contrato, sob pena de comprometer, em última análise, a autonomia privada material, vez que o contrato desequilibrado não encontra mais fundamento na autodeterminação negocial, pois não corresponde ao contrato celebrado e almejado pelas partes.
O Código Civil, conquanto não possua um sistema harmônico e coerente de revisão contratual por alterações supervenientes das circunstâncias, não deixa o devedor desamparado quando sua situação não se enquadra nos específicos suportes fáticos dos arts. 317 e 479.
A uma, porque o legislador deixou consignada a intenção de construir um sistema revisional amplo, cônscio que era das limitações das hipóteses previstas. A duas, porque a Codificação possui duas cláusulas gerais da boa-fé aptas a fundamentar a recepção e aplicação da teoria da base do negócio: os arts. 422 e 113 CC2002.
Afinal, o problema da modificação superveniente das circunstâncias se põe durante a fase de execução do contrato (art. 422 CC2002), desafiando, em última análise, uma interpretação do negócio para restaurar adequadamente o equilíbrio inicialmente pactuado (art. 113 CC2002).
A boa-fé objetiva exige que o contrato desequilibrado por evento extraordinário, imprevisto pelas partes no momento da celebração e da alocação dos riscos, seja reequilibrado a fim de tornar o cumprimento suportável para a parte prejudicada, restaurando-se o equilíbrio, o sentido e o escopo do negócio.
Não por outra razão Karl Larenz já dizia que a reanálise do contrato (por via da revisão ou extinção) é um imperativo da boa-fé17. Entre nós, Agostinho Alvim, nos trabalhos preparatórios ao Anteprojeto do Código, registrou o mesmo entendimento quando, tratando da revisão contratual, afirmou que "não pode haver boa-fé nos contratos se uma das partes escraviza a outra parte, ou se há lucro desmesurado e prejuízo fatal para a outra parte"18.
Disso se percebe que o legislador nacional não apenas deixou claro que a revisão contratual é, em última análise, um imperativo da boa-fé, como buscou inspiração no direito alemão para disciplinar – embora sem grande êxito – o fenômeno da alteração posterior das circunstâncias.
Por isso, muitos autores defendem até que a boa-fé imporia ao credor um dever de renegociar o contrato desajustado, pois, de fato, nada pode ser mais desleal que o credor exigir o cumprimento de um contrato desequilibrado por eventos de consequências extraordinárias, não antevistas na celebração e não imputáveis à esfera de risco, de responsabilidade e de influência do devedor.
Se a boa-fé impõe um dever de renegociar, é porque exige, como antecedente lógico e necessário, a revisão do contrato desequilibrado. Logo, não se pode – sem incorrer em grave incoerência lógica e valorativa – defender ex bonna fides a existência do dever de renegociar e recusar a aplicação da teoria da base do negócio, no seio da qual historicamente surgiu o dever de renegociação19.
Aliás, o julgado alemão silenciou eloquentemente quanto à controvertida existência do dever de renegociar ex bonna fides, não mencionado - sequer en passant - por ocasião da análise da (im)previsibilidade do evento e da possibilidade das partes terem pactuado uma clausula de hardship acaso tivessem antevisto eventos dramáticos como a pandemia, deixando dúvidas sobre se o BGH vai confirmar ou abandonar antigos precedentes admitindo um dever de renegociar por força da boa-fé (Treu und Glauben).
Conclui-se, do exposto, que a aplicação da teoria da base do negócio é uma decorrência lógica e axiológica da boa-fé (art. 422 c/c art. 113 CC2002) e, portanto, uma solução extraída do próprio sistema jurídico. Sua aplicação no direito brasileiro justifica-se ainda mais quando se constata que o Código Civil só disciplina duas hipóteses de modificação posterior das circunstâncias – quebra da equivalência das prestações (art. 317 CC2002) e onerosidade excessiva do custo da prestação (art. 478 CC2002) – deixando de fora outras situações de excessiva dificuldade de prestar e de frustração do fim do contrato, não subsumíveis nos estreitos limites dos arts. 317 e 478 CC2002, mas solucionáveis por meio da teoria da base do negócio.
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1 Para um panorama completo sobre as principais medidas legislativas adotadas na Alemanha desde o início da pandemia de Covid-19, bem como sobre importantes decisões judiciais a respeito da temática, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Jurisprudência comentada dos tribunais alemães. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 211-314.
2 Sobre as regras emergenciais referentes ao direito de locação, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Lei alemã para amenização dos efeitos do coronavírus altera temporariamente o direito de locação. In: Jurisprudência comentada dos tribunais alemães, p. 221-226.
3 Sobre o descompasso da lei emergencial brasileira com os modelos legislativos adotados na Alemanha e em outros países europeus, veja-se: NUNES FRITZ, Karina. Lei 14.010/2020 caduca quando a Europa enfrenta a segunda onda de Covid-19. In: Jurisprudência comentada dos tribunais alemães, p. 277-282 e O PL 1.179/2020 e a revisão dos contratos – análise comparada com o direito europeu. In: Direitos em tempos de crise – Covid-19. v. 5. Alexandre Carneiro da Cunha Filho et al (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 137-150.
4 Atente-se que o art. 9º, inicialmente vetado pelo Presidente da República em 10/6/2020, apenas proibia – até 30/10/2020 – a concessão de medida liminar para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo fundadas nas estritas hipóteses do art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX da lei 8.245/1991. A norma não teve grande repercussão, porque o Poder Judiciário, percebendo o grave risco de contágio inerente às situações de despejo, deixara já no início da pandemia de ordenar despejos judiciais de toda ordem a fim de não pôr em risco a vida e a saúde de inquilinos e agentes públicos.
5 Relatório da Senadora Simone Tebet ao PL 1.179/2020, p. 14, o qual deu origem à lei 14.010/2020.
6 Interessante notar que embora na Alemanha a corrente flagrantemente majoritária posicione-se à favor da eficácia indireta dos direitos fundamentais sobre o direito privado, o que lhe rende muitas críticas da doutrina brasileira, autores com Jörg Neuner entendem que, mesmo que a lei emergencial não tivesse proibido o despejo e a denúncia da locação por falta de pagamento durante a pandemia e inexistisse o § 313 BGB (quebra da base do negócio), o judiciário alemão chegaria ao mesmo resultado por meio de uma interpretação conforme a Constituição. Como já frisou diversas vezes o Tribunal Constitucional alemão, o direito à moradia é direito fundamental e a casa é o centro da existência privada, dela dependendo o indivíduo para a satisfação de suas necessidades vitais mais elementares, bem como para a garantia da liberdade e do desenvolvimento da personalidade. Entrevista: Prof. Dr. Jörg Neuner. German Report, 1/9/2020.
7 EBERT, Ina. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). Baden-Baden: Nomos, 2014, § 536, Rn. 1, p. 796.
8 BGH XII ZR 8/21, Rn. 30, p. 14.
9 Tadução livre: „Ergeben sich aufgrund von gesetzgeberischen Maßnahmen erst während eines laufenden Mietverhältnisses Beeinträchtigungen des vertragsmäßigen Gebrauchs eines gewerblichen Mietobjekts, kann auch dies einen Mangel i.S.v. § 536 Abs. 1 Satz 1 BGB begründen. Voraussetzung hierfür ist jedoch, dass die durch die gesetzgeberische Maßnahme bewirkte Gebrauchsbeschränkung unmittelbar mit der konkreten Beschaffenheit, dem Zustand oder der Lage des Mietobjekts in Zusammenhang steht. Andere gesetzgeberische Maßnahmen, die den geschäftlichen Erfolg beeinträchtigen, fallen dagegen in den Risikobereich des Mieters. Denn der Vermieter von Gewerberäumen ist gemäß § 535 Abs. 1 Satz 2 BGB lediglich verpflichtet, den Mietgegenstand während der Vertragslaufzeit in einem Zustand zu erhalten, der dem Mieter die vertraglich vorgesehene Nutzung ermöglicht. Das Verwendungsrisiko bezüglich der Mietsache trägt bei der Gewerberaummiete dagegen grundsätzlich der Mieter. Dazu gehört vor allem das Risiko, mit dem Mietobjekt Gewinne erzielen zu können. Erfüllt sich die Gewinnerwartung des Mieters aufgrund eines nachträglich eintretenden Umstandes nicht, so verwirklicht sich damit ein typisches Risiko des gewerblichen Mieters. Das gilt auch in Fällen, in denen es durch nachträgliche gesetzgeberische oder behördliche Maßnahmen zu einer Beeinträchtigung des Gewerbebetriebs des Mieters kommt.". BGH XII ZR 8/21, Rn 31, p. 14s.
10 No original: “Auf dieser rechtlichen Grundlage führt die auf den Allgemeinverfügungen des Sächsischen Staatsministeriums für Soziales und Gesellschaftlichen Zusammenhalt vom 18. und 20. März 2020 beruhende Schließung des Einzelhandelsgeschäfts der Beklagten nicht zu einem Mangel der Mietsache i.S.v. § 536 Abs. 1 Satz 1 BGB, weil die mit der Schließungsanordnung zusammenhängende Gebrauchsbeschränkung nicht auf der konkreten Beschaffenheit, dem Zustand oder der Lage der Mietsache beruht, sondern an den Geschäftsbetrieb der Beklagten als Mieterin anknüpft.“. BGH XII ZR 8/21, Rn 32, p. 15.
11 No mesmo sentido: HÄUBLEIN, Martin e MÜLLER, Maximilian. Wer trägt das Pandemierisiko in der Geschäftsraummiete? NZM 2020, p. 484.
12 A guisa de exemplo, confira-se RG Az. Rep. VIII 145/15, julgado em 9/11/1915. In: RGZ 87, p. 277.
13 „§ 7 Störung der Geschäftsgrundlage von Miet- und Pachtverträgen
(1) Sind vermietete Grundstücke oder vermietete Räume, die keine Wohnräume sind, infolge staatlicher Maßnahmen zur Bekämpfung der COVID-19-Pandemie für den Betrieb des Mieters nicht oder nur mit erheblicher Einschränkung verwendbar, so wird vermutet, dass sich insofern ein Umstand im Sinne des § 313 Absatz 1 des Bürgerlichen Gesetzbuchs, der zur Grundlage des Mietvertrags geworden ist, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert hat.
(2) Absatz 1 ist auf Pachtverträge entsprechend anzuwenden.“
Tradução livre do original do § 7 do Art. 240 EGBGB, aprovado em 17/12/2020 pelo Bundestag:
"§ 7 Perturbação da base do negócio de contratos de locação e arrendamento
(1) Se imóveis ou espaços alugados, que não são imóveis residenciais, em decorrência das medidas estatais de combate à pandemia de Covid-19, não forem utilizáveis para exploração pelo locatário, ou só o forem com consideráveis restrições, presume-se ter-se alterado profundamente, após a conclusão do contrato, uma circunstância, nos termos do § 313 inc. 1 do Código Civil, que se tornou base do contrato de locação.
(2) O inciso 1 deve ser aplicado, no que couber, aos contratos de arrendamento.”. Sobre o tema, clique aqui.
14 Confira-se, nesse sentido, as entrevistas com os professores Nils Jansen e Jörg Neuner, publicadas na coluna German Report, respectivamente, em 19/5/2020 e 1/9/2020.
15 Para uma visão geral acerca da teoria alemã da base do negócio e sua aplicabilidade no Código Civil brasileiro, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Alteração posterior das circunstâncias: a caminho da quebra da base do negócio. In: Inexecução das obrigações. v. 2. Aline Terra e Gisela Sampaio Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2021, p. 491-536. Confira-se ainda: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 160ss.; COUTO E SILVA, Clóvis. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro. RT 655, 1990; FERREIRA, Viviane. Impactos da pandemia na revisão contratual. Valor Econômico, 20/4/2020; NERY JÚNIOR, Nelson e Nery, Rosa. Manual de direito civil – obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 169ss; NERY JÚNIOR, Nelson. Base objetiva do negócio jurídico e interpretação do acordo judicial. In: Soluções práticas de direito, v. 6, 2014, p. 268-288; SIMÃO, José Fernando. “O contrato nos tempos da COVID-19”. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio”. Migalhas Contratuais, 3/4/2020.
16 No original: „Durch die COVID-19-Pandemie hat sich damit letztlich ein allgemeines Lebensrisiko verwirklicht, das von der mietvertraglichen Risikoverteilung ohne eine entsprechende vertragliche Regelung nicht erfasst wird. Diese Systemkrise mit ihren weitreichenden Folgen hat vielmehr zu einer St rung der gro en Ge-sch ftsgrundlage geführt. Das damit verbundene Risiko kann regelm ig keiner Vertragspartei allein zugewiesen werden.“. BGH XII ZR 8/21, Rn. 55, p. 26.
17 Karl Larenz coloca, com precisão, que a consideração das alterações das circunstâncias é um imperativo da boa-fé objetiva. Schuldrecht I. München: Beck, 1987, p. 322. A doutrina alemã é uníssona nesse sentido. Dentre outros: HOHLOCH, Gerhard. Erman BGB. Bd. 1, Harm Peter Westermann (coord.). 11a. ed., Köln: OVS, 2004, § 313, Rn. 4 , p. 1218. O legislador da Reforma do BGB ponderou até se não se deveria inserir o instituto da perturbação da base do negócio logo depois da cláusula geral da boa-fé objetiva do § 242, já que a quebra da base do negócio é um caso especial de aplicação da boa-fé e tem relevância não apenas para os contratos, mas para o negócios jurídicos em geral. Porém, como o problema da quebra da base afeta mais diretamente os contratos, a Comissão de Reforma optou por positivar a figura na parte geral dos contratos, mais precisamente no § 313 localizado no Título 3 que trata das relações obrigacionais oriundas do contrato, Subtítulo 3 (Adaptação e extinção do contrato) do Livro 2 (Direito das Obrigações). BT-Drucksache 14/6040, p. 175.
18 "Foi inserida uma norma relativa à boa-fé nos contratos. No Código Civil não há essa norma. No Código alemão existe, assim como em outros códigos. Na Alemanha, ela salvou aquela questão da imprevisão, porque os alemães rejeitaram a teoria da imprevisão em 1896, quando promulgaram o Código, porque o contrato ainda estava no apogeu. 'O contrato é lei entre as partes'. Mas eles não puderam resistir à pressão dos acontecimentos. Depois de 1914, passaram a admitir a teoria da imprevisão[18]. A jurisprudência alemã é posterior a 1914. E com que fundamento? Porque a lei não tratava da imprevisão. Eles foram buscar fundamentos justamente na boa-fé dos contratos. E não pode haver boa-fé nos contratos se uma das partes escraviza a outra parte, ou se há lucro desmesurado e prejuízo fatal para a outra parte. De modo que, nos contratos, não só no início, como diz o Projeto, na formação, mas também na execução, sempre deve haver boa-fé.” In: MENCK, José Theodoro Mascarenhas (org.). Código Civil Brasileiro no Debate Parlamentar – Elementos históricos da elaboração da Lei 10.406, de 2002. Volume 1 – Audiências públicas e relatórios (1975-1983), Tomos 1 a 4. Câmara dos Deputados, 2012, p. 985.
19 A referência mais antiga ao dever de renegociar até agora encontrada por essa articulista foi sua previsão em projetos do chamado "código popular" (Volksgesetzbuch), elaborados para substituir ao BGB. Em anteprojeto de 1940, apresentado por Karl Larenz, o § 15 consagrava a possibilidade da revisão contratual por quebra da base do negócio e afirmava que as partes eram obrigadas a colaborar para a justa adaptação do conteúdo do contrato. SCHMIDT, Jürgen. J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. Bd. 2, Michael Martinek (redator), 13a. ed. Berlin: De Gruyter, 1995, p. 593.