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Justiça da Bélgica ordena AstraZeneca fornecer vacina, sob pena de multa

Justiça da Bélgica ordena AstraZeneca fornecer vacina, sob pena de multa.

27/7/2021

A União Europeia moveu a primeira ação contra a farmacêutica AstraZeneca por descumprimento contratual pelo fato da empresa não estar fornecendo a quantidade de doses de vacina contra a Covid-19 acordada no contrato.

Relembrando o caso: com o estopim da pandemia do coronavírus Sars-Cov-2 em 2020, a União Europeia celebrou com a AstraZeneca, em agosto do ano passado, um contrato milionário para aquisição de 300 milhões de doses de vacinas, que deveriam ser fornecidas ao longo de 2020/2021 e distribuídas entre os vinte e sete estados-membros do bloco para imunizar cerca de 450 milhões de pessoas.

Porém, o conglomerado farmacêutico anglo-sueco não conseguiu fornecer a quantidade contratada e muitas negociações foram feitas, inclusive com ameaças de levar o caso aos tribunais, o que de fato acabou acontecendo.

Segundo a Comissão Europeia, os fornecimentos dos imunizantes estavam cada vez menores e a AstraZeneca só entregou 30 milhões das 120 milhões de doses previstas para o primeiro trimestre desse ano.

No segundo trimestre, a União Europeia espera receber 70 milhões de imunizantes. Acordado no início, contudo, foram 180 milhões, totalizando as 300 milhões de doses inicialmente contratadas.

Para agravar a situação, há fortes indícios de que a AstraZeneca não conseguirá cumprir sua obrigação. Em comunicado em março desse ano, conglomerado farmacêutico afirmou que só vai conseguir fornecer um terço da encomenda.

E, para azedar ainda mais a relação entre os contratantes, a União Europeia acusa a AstraZeneca de ter beneficiado o Reino Unido, que não foi afetado por problemas de fornecimento até agora1.

Diante disso, a Comissão Europeia moveu ação cautelar no final de abril contra a empresa na Bélgica pedindo a entrega imediata de 90 milhões de doses, referentes ao fornecimento do primeiro trimestre de 2021.

A União Europeia acusa conglomerado anglo-sueco de descumprimento contratual e de não ter um plano confiável para garantir as entregas a tempo.

Em outras palavras: mora no fornecimento dos lotes vencidos e quebra antecipada do contrato em relação ao restante das prestações, que ocorre sempre que o inadimplemento se configura antes do vencimento da obrigação, seja porque o devedor informa ao credor que não cumprirá a prestação, seja porque o descumprimento resulta objetivamente das circunstâncias2.

Como o contrato da União Europeia com a AstraZeneca submete-se às leis e à jurisdição da Bélgica, a ação foi lá protocolada em nome dos países-membros integrantes do bloco.

Segundo noticiado na imprensa, o contrato continha cláusulas que protegiam a empresa em caso de eventuais atrasos de entrega e que os imunizantes seriam produzidos em fábricas localizadas na União Europeia e no Reino Unido.

Além disso, o contrato diz que a empresa deveria empregar “seus melhores esforços” (best reasonable efforts) para garantir o fornecimento das doses, o que inclui, caso necessário, a produção em fábricas situadas em outros locais3.

A empresa ré alega estar cumprindo o pactuado, pois vem empregando todos os esforços razoáveis para cumprir sua obrigação e que o atraso deveu-se a problemas na unidade fabril de Bruxelas.

O magistrado, contudo, condenou a fabricante de vacina a fornecer 50 milhões de doses à União Europeia, sob pena de multa diária por descumprimento, em sentença prolatada em junho passado.

As outras 40 milhões de doses deverão ser fornecidas segundo um detalhado calendário, estabelecido pelo juízo, até o fim de setembro.

No próximo dia 26 de julho, às 9h., conglomerado farmacêutico deve entregar 15 milhões de doses ou será multada em 10 euros por cada vacina ausente.

No dia 23 de agosto, a AstraZeneca deverá fornecer mais 20 milhões de imunizantes e em 27 de setembro, o último fornecimento de 15 milhões.

Segundo os jornais, a fabricante afirmou que irá cumprir a ordem judicial, mas sua produção ainda está deficitária.

Desde o início do processo em abril, a empresa já entregou 40 milhões de doses, de forma que a primeira parcela (50 milhões) já foi substancialmente cumprida e, segundo a empresa, não haverá atrasos – nem multas – com os demais fornecimentos.  Segundo a AstraZeneca, todos os demais pedidos da Comissão Europeia foram rejeitados pelo juiz4.

A União Europeia confirmou o recebimento das 40 milhões de doses durante o processo e considera exitosa a sentença, pois a Corte belga reconheceu o descumprimento contratual por parte da empresa.

Nada obstante, a União Europeia ainda está insatisfeita com o desempenho da empresa, pois ela não estaria empreendendo todos os esforços razoáveis para cumprir a obrigação (fornecimento das vacinas na quantidade acordada).

O bloco alega que a AstraZeneca poderia utilizar uma fábrica no Reino Unido para produzir as doses necessárias, mas ainda não o fez, nem há perspectivas concretas de que isso seja feito. Ou seja: para a credora (UE), a devedora não está empreendendo os esforços necessários e possíveis para cumprir a obrigação.

Ursula von der Leyen, Presidente da União Europeia, foi categórica ao afirmar que a farmacêutica não está cumprindo suas obrigações contratuais e que a decisão na Bélgica fortalece a posição do bloco.

Obviamente, não se pode tirar qualquer conclusão sem uma análise do contrato, mas, em tese, não há dúvida: o devedor deve fazer tudo o que for possível e razoável para cumprir a obrigação.

Isso significa, nesse caso concreto, empregar toda as atividades e esforços que uma empresa de igual porte, estrutura e recursos empregaria para desenvolver e fabricar vacinas diante da urgência imposta por uma pandemia da dimensão da Covid-19.

Não se pode perder de vista ainda que a farmacêutica tinha ciência da urgência e das dificuldades na fabricação dos imunizantes, e exigiu uma contraprestação pecuniária à altura do risco assumido.

Segundo o Prof. Thomas Riehm, da Universidade de Passau (Alemanha), a AstraZeneca não pode alegar problemas em uma única fábrica na Bélgica para justificar o incumprimento, porque no contrato o dever de produção do imunizante não está vinculado a um local específico. Pelo contrário, foi pactuado que, caso necessário, a empresa deveria produzir em outras fábricas, inclusive na Grã-Bretanha5.

Assim, aparentemente a razão está com a União Europeia. O problema é que, na atual conjuntura, o importante não é ter razão, mas sim vacina. E esse é um daqueles casos nos quais uma eventual indenização não satisfaz os interesses do credor.

__________

1 EU-Kommission klagt gegen Astrazeneca-Hersteller. LTO, 26/4/2021.

2 Exemplo paradigmático na jurisprudência brasileira é o caso em que a construtora, pouco antes da data aprazada para entrega, sequer havia iniciado a construção do hospital. Veja: TJRS, Apelação Cível 582000378, Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro, julgado em 8/2/1983.

3 União Europeia processa AstraZeneca por atraso em entrega de vacinas. G1, 26/4/2021.

4 Astrazeneca muss Impfstoff liefern oder Strafgeld zahlen. LTO, 21/6/2021.

5 Die EU-Kommission ist wohl im Recht – es hilft nur nicht. Spiegel, 29/1/2021.

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15