Recentemente, a Corte infraconstitucional alemã – Bundesgerichtshof (BGH) – deu mais um exemplo de sua sólida e bem fundamentada jurisprudência ao debruçar-se sobre caso de direito ao esquecimento envolvendo plágio cometido por conhecida política alemã.
Não é a primeira vez que um político tem problemas na Alemanha com a descoberta de plágio acadêmico. Caso rumoroso envolveu Karl-Theodor zu Guttenberg, à época Ministro da Defesa do governo de Angela Merkel, que em cerca de duas semanas perdeu o cargo e o título de doutorado concedido pela Universidade de Bayreuth.
O escândalo mais recente foi protagonizado por Annette Schavan, jurista, socióloga e ex-Ministra da Educação. A suspeita de fraude veio à tona no final de 2016: Schavan teria cometido plágio na tese de doutorado e de livre-docência apresentada na Universidade de Düsseldorf, onde era professora.
Tratava-se, portanto, de duplo plágio denunciado em primeira mão pelo site VroniPlag Wiki, coordenado por um grupo de cientistas especializado em descobrir fraudes acadêmicas. A história foi parar na imprensa e Schavan pediu demissão da Universidade em janeiro de 2017, retirando-se definitivamente da vida pública.
O processo administrativo instaurado pela Faculdade de Direito revelou que 41% da tese de doutorado continha trechos plagiados, com capítulos copiados de outros autores, frases levemente modificadas e ausência de indicação das fontes. Na tese de livre-docência, o VroniPlag Wiki detectou 38% de plágio.
Um jornalista independente, também formado em Direito, escreveu várias reportagens sobre o escândalo com citação expressa do nome da política, as quais foram publicadas em diferentes jornais, dentre os quais o renomado Frankfurter Allgemeine Zeitung. E ainda tinha a intenção declarada de continuar abordando o caso.
Por isso, Schavan, por meio de seu advogado, notificou o periodicista, exortando-o a não mencionar seu nome em futuras matérias. Ela alegava ter se retirado totalmente da vida pública e acadêmica, e que o escândalo, juntamente com as matérias mencionando seu nome, provocaram-lhe graves problemas de depressão, prejudicando sua vida pessoal.
O jornalista ignorou o apelo da política, que, então, moveu ação judicial com pedido de tutela inibitória a fim de proibi-lo de nomina-la em futuros artigos jornalísticos.
O processo
Annette Schavan obteve êxito em primeira instância: o juízo (Landgericht) de Frankfurt am Main condenou o jornalista a omitir o nome da política nas futuras matérias sobre a fraude autoral.
O réu apelou ao Oberlandesgericht (OLG), que reformou a decisão e julgou improcedente a ação. Além da discussão processual acerca da (in)determinabilidade da ação (§ 253, inc. 2, n. 2 ZPO, o código de processo civil alemão), vez que o pedido formulado (proibição de citação nominal da autora em futuras publicações) seria demasiado amplo, a Corte assentou, no mérito, que ao caso não se aplicava o direito ao esquecimento e que o jornalista poderia continuar a citar o nome da plagiária em suas matérias.
De acordo com o OLG Frankfurt a.M., as matérias não diziam respeito a circunstâncias da esfera privada, mas da esfera social da autora: sua atividade profissional.
É bem verdade que a autora havia se retirado totalmente da vida pública e profissional, disse o Tribunal. Porém, fato é que sua tese de doutorado (Doktorarbeit) e de livre-docência (Habilitationsschrift) continuam no “mundo” como obra científica, seja nas faculdades ou em bibliotecas, servindo de base para o debate científico.
A livre-docência sobre o banco central europeu tem grande atualidade e ainda permanece no discurso público, já tendo sido citada pelo Tribunal Constitucional alemão, anotou o acórdão estadual.
A sociedade tem, portanto, interesse legítimo na divulgação do nome da autora nas matérias, até porque uma denúncia de plágio, sem nominar o plagiador, conduz à perpetuação do fraude autoral, o que contraria os interesses da ciência como um todo.
O Tribunal de Frankfurt a.M. assinalou que não se aplicam aos casos de reportagens sobre plágio os mesmos critérios aplicáveis a reportagens sobre crimes, pois o autor de um trabalho científico, diferentemente do delinquente, se insere e se movimenta no plano do discurso público.
Dessa forma, na ponderação dos interesses jusfundamentais em colisão, o OLG Frankfurt am Main concluiu que o direito ao esquecimento não se aplicava ao caso concreto.
Outra poderia ser a conclusão, ressaltou a Corte, se restasse devidamente demonstrado nos autos que a indicação do nome da plagiadora havia provocado graves transtornos à sua saúde física e mental, hipótese em que o direito fundamental à saúde teria peso maior em confronto com o direito à liberdade de expressão do jornalista e com o direito à informação da sociedade.
A autora interpôs o recurso de Revision e o caso foi parar em Karlsruhe, cidade sede das cortes supremas na Alemanha, localizada nas proximidades da outrora disputada região da Alsácia-Lorena.
A decisão do BGH
O BGH rejeitou o recurso da recorrente, confirmando a decisão do Tribunal a quo. Trata-se do processo BGH VI ZR 73/20, julgado em 9/5/2021.
De início, a Corte reconheceu que, de fato, a publicação de matérias jornalísticas com a indicação do nome da copista atingia seu direito geral de personalidade, mais precisamente sua honra objetiva (bom nome), uma vez que a reportagem tornava público um comportamento acadêmico falho e reprovável, e qualificava negativamente a pessoa da plagiadora perante o público.
Mas reconheceu que no caso concreto era necessário ponderar o direito da recorrente à proteção de seu bom nome, tutelado nos arts. 1, inc. 1 e 2, inc. 1 da Lei Fundamental (Grundgesetz) e no art. 8, inc. 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos com o direito à liberdade de expressão e de imprensa do jornalista, consagrado no art. 5, inc. 1 da Lei Fundamental c/c art. 10 da mencionada Convenção.
Segundo o Bundesgerichtshof, o direito geral de personalidade é uma espécie de “direito-quadro” (Rahmenrecht), cuja amplitude não está totalmente delimitada na lei, precisando, por isso, ser estabelecida através da ponderação dos interesses jusfundamentais em colisão.
E nesse processo de ponderação, deve o intérprete levar em consideração os direitos e garantias fundamentais atingidos, bem como as circunstâncias do caso concreto.
Segundo a Corte de Karlsruhe, a interferência no direito de personalidade só é contrária ao direito quando o interesse de proteção da pessoa afetada tem peso maior que os interesses merecedores de tutela da contraparte.
No caso concreto, a recorrente questionava a menção de seu nome em futuras matérias realizadas pelo jornalista acerca do escândalo de dupla fraude na qual estava envolvida. A solução do caso requeria a valoração de diversos critérios desenvolvidos ao longo do tempo em doutrina e jurisprudência, disse o BGH.
Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a imprensa, em princípio, não pode ser compelida a, no desempenho de sua tarefa, fazer matérias anonimizada. Faz parte da tarefa legítima da mídia relatar crimes e delitos perpetrados, afirmou o Tribunal.
A intermediação e/ou a comunicação de fatos verdadeiros de interesse geral faz parte da função elementar de uma imprensa livre, que tem, em princípio, o poder de decidir o que deve ser divulgação e como isso será feito. Dessa forma, deve-se aceitar a comunicação de fatos verdadeiros de cunho social.
Em segundo lugar, deve-se atentar que o direito geral de personalidade não confere à pessoa um direito de ser exposta em público de acordo com a imagem que a pessoa faz de si mesma, nem de forma a provocar o efeito por ela pretendido, pois, às vezes, a exposição pode produzir um efeito negativo no público destinatário da notícia.
Ademais, é vedado ao lesado pinçar da totalidade de seu comportamento social – e do retrato de sua personalidade daí resultante – apenas os aspectos positivos, deixando tudo o mais longe dos olhos do público, em uma filtragem seletiva das informações que ficarão acessíveis ao público em geral.
Porém, mesmo uma exposição verdadeira da pessoa pode violar seu direito de personalidade quando essa exposição seja apta a causar graves danos à personalidade do retratado, desproporcionais ao interesse na divulgação da notícia verídica.
É o que ocorre, v.g., quando a matéria tem enorme repercussão e provoca a estigmatização, a exclusão ou o isolamento social da pessoa afetada. A lesão pode decorrer ainda da forma como a matéria é redigida ou da insistência com que é divulgada.
Esse risco de dano se potencializa exponenencialmente com a disponibilização permanente de informações relacionadas a dados pessoais do titular na rede mundial de computadores e com a amplitude da propagação da notícia que a internet proporciona, afirmou o BGH.
Outro critério central a ser ponderado no julgamento de casos de direito ao esquecimento é o decurso do tempo, pois a realidade mostra que o interesse público na divulgação da notícia se arrefece com o tempo. Também importante, nesse contexto, é verificar o comportamento da pessoa atingida.
E aqui vale o velho ditado: quem está na chuva, é pra se molhar. Nas palavras da Corte de Karlsruhe: quem está continuamente presente na vida pública, não pode exigir que seu comportamento não seja objeto de exposição e/ou discussão pública, como pode, em princípio, aquele, cujo comportamento revela um “querer ser esquecido” (Vergessenwerdenwollen).
Last but not least, deve-se analisar se a informação divulgada diz respeito à esfera privada da pessoa ou a fatos ou circunstâncias da esfera social, bem como qual a amplitude e os efeitos da notícia considerando, por exemplo, o círculo de seus destinatários, o número de edições do jornal ou revista e a disponibilidade (acessibilidade) na internet.
De acordo com esses parâmetros, o Tribunal infraconstitucional concluiu que a autora não podia exigir preventivamente do réu a omissão de seu nome em futuras matérias jornalísticas sobre a acusação de plágio e a perda dos títulos acadêmicos, não se aplicando no caso o direito ao esquecimento. A fraude autoral lesa não apenas o plagiado, mas a ciência em geral e é importante que a sociedade saiba quem foi o autor do plágio.
Le bilan
Com o julgado, o BGH deu mais um exemplo de solidez dogmática: reconhecendo o instituto do direito ao esquecimento, negou sua aplicação no caso concreto.
O mesmo diga-se em relação ao Superior Tribunal de Justiça que, a despeito de todas as críticas e imprecisões em torno do direito ao esquecimento, teve maturidade dogmática de, admitindo a figura, negar sua aplicação no caso Aída Curi, levado ao Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral por ocasião do julgamento do RE 1.010.606/RJ, em 11/2/21.
O caso girava em torno do assassinato da jovem Aída Curi, ocorrido em 1958 no Rio de Janeiro, que entrou para a história como um brutal feminicídio. O crime fora recontado cinquenta anos depois em documentário no programa Linha Direta da TV Globo contra expressa vontade da família, levando os irmãos da vítima a mover ação de indenização contra a emissora.
A ação foi julgada improcedente em todas as instâncias, inclusive no STJ durante o julgamento do REsp. 1.335.153/RJ, em 28/3/13, sob a relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão, que negou a aplicação do direito ao esquecimento por se tratar de crime de repercussão nacional que não poderia ser recontado sem referência à figura da vítima.
Porém, o STF acabou afetando caso tido como não representativo do direito ao esquecimento e – na contramão da melhor doutrina nacional e europeia, na qual o direito brasileiro finca profundas raízes – concluiu pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal.
Interessante notar que a tese de repercussão geral fixada pela Suprema Corte diz o oposto da decisão alemã, aqui comentada, ao afirmar que “é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como um poder de obstar em razão da passagem do tempo a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais.”
O BGH, seguindo a doutrina mais moderna sobre a temática, não titubeia: em casos excepcionais, o decurso do tempo pode impedir a divulgação de fatos verídicos, licitamente obtidos e publicados na mídia, quando isso representar grave entrave ao pleno desenvolvimento da pessoa envolvida, incompatível com a tutela constitucional da dignidade, da personalidade e, não por último, com a autodeterminação informacional do indivíduo.
Mas, como bem ressalvou o e. Min. Luís Felipe Salomão em recente evento sobre o tema (clique aqui), a decisão do STF só se aplica a casos estritamente análogos ao de Aída Curi, pois a segunda parte da tese deixa aberta larga porta por onde passarão todos os demais casos de direito ao esquecimento, principalmente aqueles nos quais o lesado volta-se contra a divulgação – ou a permanente disponibilização – de notícias na internet, os quais vem sendo instrumentalizados através de pleitos de desindexação de conteúdos e/ou apagamento de dados pessoais por operadores de busca como Google ou Yahoo.
Com efeito, a tese afirma na sequência que “eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.”.
Ou seja: longe de banir a figura do ordenamento jurídico, o STF deixou ao juiz a tarefa de analisar no caso concreto os pleitos de direito ao esquecimento com base nos parâmetros constitucionais, em especial na proteção da “personalidade em geral”, da qual o direito ao esquecimento, enquanto mecanismo de tutela ao livre desenvolvimento da personalidade, é decorrência lógica e necessária.
Dessa forma, a despeito da polêmica e controvertida decisão do STF, o direito ao esquecimento deve continuar a ser aplicado a casos com conjuntura fática diversa do julgado paradigma (Aída Curi).
O direito ao esquecimento é perfeitamente conciliável com a liberdade de imprensa, expressão e informação, como deixa claro a decisão da Corte alemã. Ainda quando se admita a primazia das liberdades comunicativas, o direito ao esquecimento constitui importante e indispensável mecanismo de tutela do pleno desenvolvimento da personalidade e da autodeterminação informacional do individuo na era digital.
Ele impede, em situações excepcionais, que informações pretéritas de cunho pessoal – e, portanto, destituídas de relevância histórica e/ou social – fiquem permanentemente expostas ao acesso de todos na internet, provocando uma situação vexatória que impede a pessoa de levar sua vida normalmente.
A decisão do BGH sobre o duplo plágio da reclusa política alemã mostra o quão importante é o Judiciário caminhar de mãos dadas com a boa dogmática.