German Report

Parlamento alemão proíbe telemarketing sem consentimento e limita prazo de carência de contratos de consumo

6/7/2021

No último dia 25/6/21, o Parlamento alemão (Bundestag) aprovou um pacote de medidas de proteção aos consumidores face às atuais práticas abusivas no mercado que restringem excessivamente a liberdade e o poder de decisão dos usuários, causando-lhes profundos aborrecimentos.

Exemplo disso são as cláusulas que impõem prazo de carência e/ou dificultam o cancelamento dos contratos, impedindo o usuário de mudar de prestador em busca de produtos e serviços mais baratos, pois está preso ao prazo de vigência (carência) do contrato ou sujeito a pesadas multas rescisórias em caso de cancelamento.

Outro problema crítico é o telemarketing, que consiste na promoção de vendas de produtos e serviços por telefone e mensagens de texto. Desde que os fornecedores descobriram o chamado “marketing direto ativo”, estratégia de vendas que consiste em estabelecer uma interação entre fornecedor e consumidor, independente da vontade deste, com o objetivo de oferecer produtos e/ou serviços, os consumidores nunca mais tiveram sossego.

Provavelmente, todo mundo já recebeu ligações ou mensagens indesejadas de fornecedores ofertando seus produtos e serviços. E, tanto aqui, como na Alemanha, as empresas de telecomunicações (telefonia fixa e/ou móvel, internet, TV por assinatura) e as instituições financeiras são campeãs em importunar os usuários.

Por isso, o Governo alemão encaminhou ao Parlamento, em 24/2/21, um Projeto de Lei (Gesetzentwurf) com diversas propostas de alterações legislativas a fim de garantir que o conteúdo dos contratos de consumo tenham regras mais justas e equitativas.

A proposta, aliás, foi denominada: projeto de lei para contratos de consumos justos (Entwurf eines Gesetzes für faire Verbraucherverträge)1. Diz trecho da extensa  justificativa do Projeto:

“Apesar dos intensivos esforços de fortalecer a posição dos consumidores perante a economia e de fomentar contratos de consumo justos, surgem repetidamente constelações de casos que exigem outras medidas de proteção. Atualmente, trata-se, de um lado, de fenômenos já conhecidos, como a publicidade telefônica não autorizada, que representa não só um incômodo irrazoável, mas também, em muitos casos, faz com que o consumidor seja pressionado ou induzido a contratos que ele não quer celebrar. Por outro lado, verifica-se que cada vez mais as empresas utilizam certas cláusulas contratuais nos seus termos e condições gerais que dificultam desproporcionalmente o aproveitamento das oportunidades de mercado pelos consumidores ou a cessão de suas pretensões a terceiros para fins de postulação.

As regras propostas devem melhorar ainda mais a posição dos consumidores perante as empresas e garantir que não só a celebração do contrato ocorra em condições mais justas, mas também que o conteúdo do contrato sujeite-se a regulamentações mais justas.”2

A lei, que aguarda a sanção do Presidente, Frank-Walter Steinmeier, e publicação no diário oficial para entrar em vigor, tem dois objetivos básicos: primeiro, facilitar ao consumidor trocar de fornecedores em busca de melhores ofertas e, segundo, proibir o telemarketing sem consentimento prévio. Para tanto, algumas leis serão modificadas, dentre as quais o BGB, no capítulo referente às condições contratuais gerais. 

Facilitação do cancelamento dos contratos de consumo 

A partir de agora, os consumidores alemães poderão cancelar seus contratos de consumo de longa duração com mais facilidade, sem estar amarrados a longos prazos de carência, pesadas multas, nem submetidos a obstáculos burocráticos, como as longas horas de espera nos call centers, prolongadas por aquele atendente impertinente que tudo faz para impedir o cancelamento. 

Esses contratos de consumo deverão ter, de agora em diante, o prazo máximo de um ano de vigência. Prazos de carência mais longos, de até dois anos, passarão a ser exceção, nos termos da nova redação que será dada ao § 308 BGB. 

O atual § 309 9 do BGB já contém regra limitando o poder das empresas de estipular, nas condições contratuais gerais, um prazo de permanência mínimo nos contratos de longa duração. De acordo com a regra vigente, esses contratos não podem ter duração superior a dois anos, sendo cabível uma única prorrogação tácita pelo prazo de um ano. 

O problema, segundo o Projeto de Lei, é que essa norma mostra-se inadequada, pois “a mudança dos consumidores para outro fornecedor é restringida e, dessa forma, a concorrência é inibida se só se oferecem ao consumidor prazos de carência longos. As cláusulas de prorrogação do contrato são desapercebidas ou esquecidas pelos consumidores. Longos períodos para a resilição também restringem a liberdade de escolha dos consumidores.”3

O escopo da lei é permitir que consumidores e usuários possam trocar de fornecedor de forma mais ágil, beneficiando-se de preços e condições melhores de empresas concorrentes. 

Aqui no Brasil, a situação não é diferente e o consumidor enfrenta os mesmos problemas: pesadas multas escondidas em condições contratuais gerais, cujo conteúdo, dependendo do serviço (ex: telefonia), o consumidor sequer tem conhecimento antes de fechar o negócio, sem falar nos irritantes serviços de call centers, que tomam tempo e acabam com os nervos de milhares de usuários. 

Diante da falta de uma norma geral válida para todos os contratos de consumo de longa duração, na área específica dos contratos de telefonia, a Resolução 632/14 da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estabelece restrições temporais para a chamada cláusula de permanência, limitada ao prazo de doze meses para os consumidores comuns (art. 57, § 1º), mas sujeita à livre negociação em caso de contratos celebrados com consumidores coorporativos (art. 59). 

No AgInt no AREsp. 1.704.638/SP, apreciado pela 4ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 1/3/21, sob a relatoria do e. Min. Raul Araújo, a Corte confirmou a validade de cláusula de fidelidade de dois anos em contrato de prestação de serviços de telefonia celebrado entre a operadora e uma empresa privada. 

A jurisprudência do STJ também é firme em reconhecer a legalidade da cláusula de fidelização em contratos de telefonia, pois entende que o assinante recebe benefícios pela fidelização e, ademais, assegura às operadoras um período para a recuperação do investimento realizado com a concessão de tarifas menores, bônus, fornecimento de aparelhos e outras vantagens ao usuário4. 

A lei alemã, porém, abarca todos os contratos de consumo de longa duração, atingindo em cheio, dentre outros, os contratos de telefonia, internet, TV por assinatura, serviços de streaming, assinaturas de jornais e revistas, academias de ginástica e contratos de fornecimento de energia, mencionados expressamente no Projeto. 

Esse tipo de cláusula contratual, que tenta amarrar o usuário ao contrato por um período mínimo pré-estabelecido, contraria exageradamente os interesses econômicos dos consumidores, diz o Projeto de Lei elaborado pelo Governo5. Mais: impede-os de reagir e aproveitar as mudanças no mercado, escolhendo contratar um produto ou serviço mais barato de outro fornecedor, prejudicando, por tabela, a livre concorrência. 

Segundo a Ministra da Justiça, Christine Lambrecht, “os contratos com longa vigência ou com longo prazo para denúncia restringem a liberdade de escolha dos consumidores e os impedem de mudar para ofertas mais baratas e atrativas”6. 

O prazo de denúncia dos contratos também foi encurtado. A partir de agora, o consumidor/usuário pode pôr fim a qualquer tempo ao contrato, observando o prazo máximo de um mês. 

As regras sobre a prorrogação automática dos contratos também sofreram alterações: com a entrada em vigor da nova lei, só será permitida a prorrogação automática do pacto se o consumidor puder cancelá-lo a qualquer tempo. 

Além disso, nos contratos celebrados pela internet, a empresa deverá instalar em seu site um botão de denúncia (Kündigungsbutton) a fim de que os contratos possam ser cancelados com a mesma facilidade com que são celebrados, elevando, dessa forma, a proteção dos consumidores no comércio eletrônico. 

A nova regra virá prevista no § 312k BGB e a empresa deverá implementar o botão de denúncia de forma visível, legível, com expressões claras e simples como “cancelar agora”. Além disso, deverá fornecer documento comprobatório da extinção contratual que possa ser salvo e armazenado pelo consumidor. 

Todas essas medidas visam, como dito, conferir maior liberdade para o consumidor exercer seu poder de escolha e mudar de fornecedor, aproveitando ofertas mais baratas e melhores condições oferecidas pela concorrência. 

Elas partem da constatação de que não apenas a conclusão do contrato traz riscos aos consumidores, mas também a extinção, frequentemente obstaculizada por meio de cláusulas contratuais intransparentes. A realidade mostra que a extinção dos contratos é bem mais difícil que sua conclusão e isso compromete o poder de disposição do consumidor.

Proteção contra ligações indesejadas 

Outra importante alteração introduzida pela nova lei é a proibição de telemarketing sem consentimento do consumidor. A medida visa ampliar a proteção dos cidadãos face a propagandas indesejadas e impertinentes feitas por telefone, das quais são vítimas também os brasileiros, como dão provas as ofertas abusivas de crédito a aposentados, feitas em insistentes ligações diárias, mesmo contra a vontade expressa do destinatário. 

Segundo o Projeto apresentado pelo Governo alemão, as ofertas feitas por telefone e/ou mensagens sem prévia autorização são uma importunação inadmissível para os consumidores. Elas fazem com que, frequentemente, os consumidores sejam pressionados ou induzidos a contratar algo que eles não desejam. 

Por isso, com a entrada em vigor da lei, as empresas só poderão oferecer produtos e serviços por telefone mediante o consentimento prévio do destinatário. Além disso, esse consentimento deverá ser detalhadamente documentado pelo fornecedor e apresentado à autoridade competente quando requisitado. 

A lei cria, portanto, ao lado da obrigação de obter o consentimento prévio do consumidor para o recebimento das ligações, um dever de documentação para as empresas, cujo descumprimento poderá ser sancionado com multas de até 50 mil euros. A nova regra será inserida no § 7a da lei anticoncorrencial alemã (Gesetz gegen unlauteren Wettbewerb). 

No Brasil, falta lei específica regulando o telemarketing, principalmente proibindo a prática sem prévio e expresso consentimento do consumidor. Em 2019, a Anatel criou uma ferramenta, chamada “Não me perturbe”, que permite a qualquer usuário solicitar o bloqueio de ligações de telemarketing. 

O serviço, porém, é restrito a empresas de telecomunicações e instituições financeiras, que bombardeiam os cidadãos com ofertas de empréstimos e cartões de crédito consignado, principalmente consumidores mais vulneráveis como os idosos. 

O usuário que não desejar receber chamadas dessas empresas precisa acessar o site e se cadastrar, informando o número do telefone e a prestadora que deseja bloquear. 

À falta de lei federal, os órgãos de defesa do consumidor de vários estados têm oferecido serviço semelhante aos cidadãos a fim de reduzir essa prática comercial abusiva. 

Em São Paulo, a lei 13.226/08, atualizada pela lei 17.334, de 9/3/21, instituiu o cadastro para bloqueio do recebimento de ligações de telemarketing e de serviços de cobrança de quaisquer naturezas. De acordo com a lei, depois do trigésimo dia do cadastro, as empresas não poderão efetuar ligações telefônicas às pessoas inscritas.

Atente-se que o telemarketing, em si, é uma prática lícita e, embora inconveniente, não acarreta, a princípio, dano (moral) ao consumidor. O abuso da prática, porém, dá ensejo a indenização, pois o usuário é invadido em sua privacidade com insistentes ligações, muitas vezes fora dos horários e dias permitidos, mesmo diante de sua expressa recusa e desinteresse pelo produto ou serviço ofertado. 

Vale lembrar que o art. 6º, inc. IV do Código de Defesa do Consumidor elenca como direito básico do consumidor a proteção contra publicidade enganosa e abusiva, bem como face a métodos comerciais coercitivos ou desleais, dentre os quais insere-se o telemarketing excessivo, prática que o Judiciário deve continuar a punir exemplarmente.

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1 Drucksache 19/26915, de 24/2/2021, Gesetzentwurf der Bundesregierung, p. 1.

2 No Original: „Trotz intensiver Bemühungen, die Position der Verbraucher gegenüber der Wirtschaft zu stärken und faire Ver¬braucherverträge zu fördern, treten immer wieder gehäuft Fallkonstellationen auf, die nach weiteren Schutzma߬nahmen verlangen. Aktuell handelt es sich zum einen um bereits bekannte Phänomene, wie die unerlaubte Tele¬fonwerbung, die nicht nur als solche eine unzumutbare Belästigung darstellt, sondern immer noch in zu vielen Fällen dazu führt, dass dem Verbraucher Verträge aufgedrängt oder untergeschoben werden, die er so nicht ab¬schließen möchte. Zum anderen ist zu beobachten, dass Unternehmen zunehmend bestimmte Vertragsklauseln in ihren Allgemeinen Geschäftsbedingungen (AGB) verwenden, die die Nutzung von Marktchancen durch die Ver¬braucher oder die Abtretung ihrer Ansprüche zwecks Geltendmachung durch Dritte unverhältnismäßig erschwe¬ren. Die vorgesehenen Regelungen sollen die Position der Verbraucher gegenüber den Unternehmen weiter verbessern und erreichen, dass nicht nur der Vertragsschluss unter faireren Bedingungen erfolgt, sondern auch die Vertrags¬inhalte faireren Regelungen unterworfen werden.“ Drucksache 19/26915, p. 11.

3 No original: „Der Wechsel der Verbraucher zu einem anderen Anbieter wird beschränkt und damit der Wettbewerb gehemmt, wenn dem Verbraucher nur lange Vertragslaufzeiten angeboten werden. Die Klauseln zur Vertragsverlängerung werden von Verbrauchern übersehen oder vergessen. Lange Kündigungsfristen schränken die Wahlfreiheit der Verbraucher ebenfalls ein.“ Drucksache 19/26915, p. 12.

4 STJ, REsp. 1.362.084/RJ , T4, Rel. Min. Luis Felipe Salomao, j. 1/8/2017 e REsp. 1.445.560/MG, T1, Rel. Min. Napoleao Nunes Maia Filho, j. 16/6/2014;

5 Drucksache 19/26915, p. 1.

6 Bundestag beschließt Gesetz gegen lange Vertragslaufzeiten. Der Spiegel, 25/6/2021.

 

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15