A questão do intergênero tem recebido pouca atenção. As pessoas não-binárias, que biologicamente não se deixam enquadrar nem no gênero masculino, nem no feminino, continuam ignoradas e invisíveis, tanto pela sociedade, como pelo direito.
Estigmatizadas desde os primórdios como hermafroditas, embora o hermafroditismo seja apenas uma das inúmeras variações biológicas que compõem o amplo espectro do intergênero, os não-binários passaram a ganhar reconhecimento positivo há pouco tempo.
No exterior, vários países do continente europeu, como Grécia, Holanda e Dinamarca, mas também Nepal e Malta (pioneiro no tema) já reconhecem que, tal como entre o preto e o branco existe o cinza, entre homem e mulher existe um terceiro gênero (intergênero), permitindo que essas pessoas possam se registrar sob o gênero "diverso", uma categoria guarda-chuva que abrange inúmeras variações.
Na Alemanha, o Tribunal Constitucional teve papel relevantíssimo no reconhecimento da identidade – e, consequentemente, da dignidade – dessas pessoas ao admitir pioneiramente, em 2017, a existência de uma terceira categoria de gênero entre o masculino e feminino, quebrando, dessa forma, o milenar sistema binário heteronormativo do ordenamento jurídico alemão.
No processo BVerfG 1 BvR 2019/16, julgado em 10/10/2017 e comentado no Migalhas de Peso (clique aqui), a Corte deu prazo ao Parlamento (Bundestag) para regular a questão1 e, por isso, em 18/12/2018 foi promulgada lei que dispõe sobre a inscrição e retificação do gênero nos registros de nascimento: Gesetz zur Änderung der in das Geburtenregister einzutragenden Angaben.
Essa lei alterou a redação do § 22 III e acrescentou o § 45b à lei do registro pessoal, a Personenstandsgesetz (PStG).
De acordo com a atual redação do § 22 III PStG, se a criança ao nascer não puder ser classificada como pertencente ao gênero masculino ou feminino, poderá o oficial registrá-la sem indicação de gênero ou com a indicação do gênero "diverso".
Se a criança já foi identificada como pertencente a outro gênero, o pedido de retificação pode ser feito pelos pais ou representante legal. Para menores entre 14 e 18 anos é necessária a declaração de vontade do adolescente e a concordância do representante legal, a qual, contudo, pode ser suprida judicialmente quando atender ao melhor interesse do menor, nos termos do § 45b II da PStG.
Pessoas maiores podem requerer diretamente no cartório, nos termos do § 45b I da PStG, a modificação do gênero para diverso, devendo o requerimento ser acompanhado de parecer médico atestando a variação sexual. Mas a lei admite exceções quando a pessoa não possuir mais atestado comprobatório do tratamento médico realizado ou for impossível a constatação da variação de desenvolvimento sexual em razão de tratamento já realizado ou, ainda, essa constatação só possível sob condições irrazoáveis (§ 45b III da PStG).
A lei provocou, evidentemente, profunda mudança de paradigma em relação ao intergênero. E isso se reflete na decisão da justiça de Frankfurt a.M. que reconheceu o direito de uma pessoa não-binária ser tratada com uma linguagem neutra.
O caso
Uma pessoa não-binária sentiu-se discriminada e agredida em seu direito geral de personalidade durante a compra de um bilhete de trem pela internet, porque o site não oferecia outra forma de tratamento além do tradicional "Senhor" (Herr) ou "Senhora" (Frau) no formulário de cadastro.
Com efeito, a indicação da forma de tratamento pela qual o consumidor desejava ser tratado era requisito essencial para o registro e a realização da compra online, pois impossível a finalização da operação sem essa informação.
Assim, o comprador não tinha a possibilidade de deixar em branco aquele campo, nem o formulário online oferecia forma de tratamento mais neutra, diversa da forma binária tradicional, sendo impossível uma alteração posterior dos dados registrados.
Dessa forma, toda a comunicação posterior com o consumidor era feita com base no gênero indicado. E, por isso, a pessoa não-binária, adquirente do bilhete, foi identificada na fatura emitida pela empresa como pertencente ao gênero masculino e tratada como "Senhor".
Ela moveu, então, ação contra a empresa que oferece produtos e serviços online (anonimizada na sentença disponibilizada) alegando ter sido discriminada em razão de sua identidade de gênero e pleiteando a correção dos dados com a indicação do gênero correto (intergênero), o uso de um tratamento neutro condizente com sua identidade não-binária, além de indenização por dano moral por violação ao direito de personalidade, nos termos do § 21, inc. 1 e 2 da Lei Antidiscriminação2, a ser fixada pelo juiz, observando o valor mínimo de 5 mil euros.
Em sede de contestação, a empresa alegou ter utilizado a forma de tratamento condizente com o gênero constante nos documentos de identificação do autor, que não alterou sua identidade de gênero em seus registros.
Alegou ainda inexistir consenso sobre uma linguagem de gênero neutra, razão pela qual utiliza as formas de tratamento comuns no comércio jurídico, na sociedade e no Estado, pois até a Chanceler Angela Merkel se dirige em suas falas aos cidadãos e cidadãs.
Logo, utilizar Senhor/Senhora como formas de tratamento não viola o direito geral de personalidade das pessoas não-binárias, nem configura discriminação.
A decisão do LG Frankfurt am Main
A ação foi julgada parcialmente procedente pelo Landgericht (LG) Frankfurt am Main, em decisão de 3/12/2020 prolatada no processo LG Frankfurt a.M. Az. 2-12 O 131/20.
Segundo a sentença, uma pessoa não-binária, que não se identifica nem como homem, nem como mulher, não pode ser obrigada a escolher ser tratada como Senhor/Senhora, devendo, ao contrário, ser tratada com uma linguagem de gênero neutra durante a aquisição de um bilhete de trem. Diz a ementa:
"Se para a conclusão de um contrato de prestação de serviço em negócios massificados, oferecido na internet, existir a obrigatoriedade, não justificável pelo fim do contrato, de escolher entre as formas de tratamento "Senhor" ou "Senhora", há aí uma restrição do direito geral de personalidade de pessoas com identidade não-binária de gênero.
No mero tratamento em desconformidade com a identidade de gênero não há, porém, por si só, uma discriminação na conclusão, execução ou extinção de relações obrigacionais de natureza civil, no sentido do § 19, inc. 1, n. 1 da AGG, de forma que não surge uma pretensão à compensação de dano imaterial, nos termos do § 21 da AGG."
A indicação obrigatória como Herr ou Frau viola o direito geral de personalidade da pessoa intergênero, que tutela, dentre outros elementos da personalidade, a identidade de gênero, como afirmou o Tribunal Constitucional alemão no julgado aqui mencionado.
O direito geral de personalidade tutela a identidade de gênero, que é normalmente um aspecto constitutivo da personalidade individual, disse o magistrado.
Ele acentuou que a forma de tratamento tem importância crucial para a pessoa, pois reflete e realiza uma imputação de gênero e isso, por sua vez, influencia consideravelmente a autopercepção da pessoa e a forma como ela é percebida pelos outros.
Na medida em que a ré compele a autora (pessoa não-binária) a escolher entre as formas de tratamento heteronormativas a fim de poder usufruir de produtos e serviços, ela obriga a pessoa intergênero a se enquadrar em um gênero que não corresponde à sua identidade, muito embora a indicação do gênero seja absolutamente irrelevante para a aquisição do produto e/ou serviço ofertado.
Segundo a sentença, a empresa poderia permitir aos interessados se registrar com pertencentes ao gênero “diverso”, bem como utilizar outras formas de saudação em suas correspondências (ex: "bom dia") ou linguagem que exprimisse uma neutralidade de gênero. Outra alternativa seria simplesmente dispensar a indicação do gênero, requisito dispensável para a oferta de seus produtos e/ou serviços.
O LG Frankfurt a.M. afirmou ainda que o livre desenvolvimento da personalidade, que exige o reconhecimento do direito à identidade de gênero, não está condicionado a alterações do gênero e/ou nome nos registros pessoais.
Ao contrário, o Bundesverfassungsgericht entende que a forma de tratamento seja determinada de acordo com a autopercepção da pessoa em relação ao gênero, disse o magistrado.
Logo, a proteção do direito geral de personalidade – tutelado pela pequena cláusula geral aquiliana do § 823 I do BGB, base legal da responsabilidade extracontratual – não começa apenas com a modificação efetiva no estado pessoal da pessoa intergênero.
A tutela da identidade de gênero das pessoas não-binárias também não deve depender, em princípio, de questões econômicas, ou seja, dos custos que a empresa irá incorrer para adaptar seu sistema online de vendas a uma linguagem mais neutra para esse público específico.
Por certo, essas medidas precisam ser avaliadas segundo um critério de razoabilidade, mas as empresas precisam contar com certo aumento de despesas para a concretização de direitos da personalidade. Cabe à empresa o ônus de expor e demonstrar a desproporcionalidade das medidas, do qual, porém, não se desincumbiu a ré, anotou o magistrado.
Por fim, o Landgericht Frankfurt a.M. negou o pedido de indenização do dano moral pleiteado pela autora, pessoa intergênero. Segundo o magistrado, não há dúvidas de que o tratamento da pessoa não-binária em desconformidade com sua identidade de gênero violou seu direito geral de personalidade.
Porém, nem toda violação do direito geral da personalidade dá ensejo a uma pretensão ressarcitória. Segundo a jurisprudência do Bundesgerichtshof, a Corte infraconstitucional alemã, só cabe, em regra, compensação do dano moral quando se tratar de grave violação e a lesão não puder ser compensada de outra forma, disse o LG Frankfurt a.M.
Essa análise só pode ser feita individualmente, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, considerando, principalmente, a gravidade e extensão da violação, a duração e continuidade da lesão, o ensejo e motivo do ato ilícito, o grau de culpa, etc.
Considerando esses aspectos, o magistrado concluiu que a violação do direito geral da personalidade no caso concreto não fora grave o suficiente para justificar uma compensação em dinheiro.
Ele observou que a violação consubstanciou-se em mera fatura na qual a pessoa intergênero fora tratada como pertencente ao gênero masculino e isso não caiu em domínio público, causando-lhe maiores constrangimentos. Ademais, a lesão sofrida poderia ser perfeitamente reparada por formas diversas da pecuniária.
Também não houve dolo, mas mera culpa por parte da empresa, vez que o tratamento dispensado à consumidora (pessoa intergênero) era simples reflexo da realização em massa de contratos padronizados. Além disso, a empresa informou estar estudando medidas para utilizar linguagem diferenciada para pessoas com identidade não-binária de gênero.
Dessa forma, o LG Frankfurt a.M. reconheceu a violação do direito à identidade de gênero no caso concreto, mas negou o pleito do dano moral. Da decisão ainda cabe recurso ao Oberlandesgericht (OLG) Frankfurt a.M.
Questões para reflexão
A decisão de primeira instância de Frankfurt am Main causou certa polêmica por considerar ilícita – i.e., violadora do direito à identidade de gênero – a forma de tratamento utilizada com pessoa não-binária que, porém, não havia alterado o gênero e/ou prenome em seus documentos.
E a questão que surge é se e até que ponto pode ser considerado ilícito o tratamento de alguém de forma condizente com o gênero registral, pois, como a pessoa não-binária pode mudar seu gênero para "diverso", ao não fazê-lo encontra-se vinculada ao gênero indicado no registro.
Além disso, o julgado, embora sem tocar no ponto, reascende a discussão em torno da necessidade (ou não) de atualmente, face ao reconhecimento de um terceiro gênero autônomo, utilizar-se uma linguagem de gênero neutra ao invés do masculino genérico (generisches Maskulinum), usado há séculos em diversos idiomas para se referir a pessoas do sexo masculino e feminino.
Nesse sentido, interessante notar a linguagem neutra utilizada na decisão, na qual os tradicionais termos autor(a) ou Kläger(in) e ré(u) ou Beklagter(in) foram substituídos pelo magistrado por "pessoa reclamante" (die klagende Person) e "pessoa reclamada" (die beklagte Person).
De qualquer forma, muita água ainda vai rolar embaixo da ponte até que a sociedade conclua pela (des)necessidade de alteração da linguagem a fim de evitar discriminações das pessoas intergênero. Sem desmerecer a questão linguística, há de se lutar por medidas de proteção mais urgentes, principalmente no plano legislativo e de políticas públicas.
Ainda há muito o que se avançar em questões de gênero, seja de identidade, reconhecendo a autonomia da pessoa de ter um gênero diferente do registral ou de pertencer a um intergênero, quebrando o sistema normativo binário, ou de igualdade de gênero, conceito que define a busca pela igualdade entre os – tradicionais – gêneros humanos: homens e mulheres.
A igualdade de gênero – considerado um direito humano pela ONU e direito fundamental, nos termos do art. 5º I da CF/88 – também é um tema sensível, pois, apesar de todos os esforços e de todas as conquistas, as mulheres continuam sofrendo com o tratamento desigual perante os homens nas mais diversas esferas.
Não por acaso a Organização das Nações Unidas escolheu como tema de trabalho desse ano: "Mulheres em posições de liderança: para um futuro mais igualitário em um mundo de Covid-19". A campanha visa fomentar, por diversas medidas, o aumento da participação feminina em posições centrais na política e na economia, sobretudo nas empresas.
E a razão é simples: a pandemia de Covid-19 aprofundou as desigualdades existente entre homens e mulheres, que sofreram mais intensamente os impactos dramáticos do vírus, como crise no mercado de trabalho, desemprego e sobrecarga de trabalho diante do acúmulo de afazeres domésticos, sem falar no aumento do índice de violência doméstica e feminicídio.
No meio jurídico, a realidade não é muito diferente e demonstra a arraigada discriminação profissional das mulheres. Na academia, as vozes masculinas são os protagonistas do saber e dizem o que é o direito, embora algumas mulheres se destaquem, em diversos ramos, como juristas consagradas.
Até no corpo discente as sutis discriminações se revelam quando alunas não são ouvidas em salas de aula ou suas colocações ficam sem repercussão, como revelou estudo realizado, em 2019, na maior universidade do país: "Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto"3.
Na advocacia, embora dados da OAB indiquem haver mais mulheres que homens no mercado, poucas chegam ao posto de sócia ou de chefia, ocupando na peleja a base da carreira. Ano passado, tivemos uma conquista histórica quando Viviane Girardi foi eleita, por unanimidade, a primeira mulher a presidir a renomada AASP – Associação dos Advogados de São Paulo.
Na magistratura, a situação também é desanimadora. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, de 2019, mostra que embora 35,9% dos magistrados sejam mulheres, essas só conseguem ocupar 16% dos postos nos tribunais superiores.
Dos 33 ministros do STJ, apenas 6 são mulheres: Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Maria Thereza Moura, Isabel Gallotti, Assusete Magalhaes e Regina Costa. No STF, dentre os 11 ministros encontram-se apenas duas mulheres: Cármen Lúcia Antunes e Rosa Weber, o que dá uma média em torno de 20% de participação feminina nas Cortes superiores.
Na Alemanha, a situação não é muito diferente. Mas o país fez história ano passado quando o Tribunal Constitucional passou a ter maioria feminina: são 9 juízas, contra 7 juízes constitucionais. A composição feminina do BVerfG é formada por Sibylle Kessal-Wulf, Susanne Baer, Gabriele Britz, Yvonne Ott, Doris König, Monika Hermanns, Christine Langenfeld, Astrid Wallrabenstein e Ines Härtel.
Tudo isso mostra que ainda há uma longa e árdua luta pela frente em torno da igualdade e da identidade de gênero, que, no fundo, tem a ver com respeito à individualidade, personalidade, autodeterminação e liberdade do outro. Feliz Dia Internacional da Mulher a todas!
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1 A decisão do Tribunal está traduzida na íntegra para o português e publicada na revista Civilistica.com n. 2, 2017. Confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Tribunal Constitucional Alemão admite a existência de um terceiro gênero (comentário e tradução).
2 Trata-se da Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz (AGG), de 14/8/2006, com última alteracao em 14/8/2013, que proibe discriminacoes com base em critérios como origem ética, gênero, religião, idade, identidade sexual, etc.
3 Confira-se: Sentimento de exclusão feminina no direito é transformado em dados. Jornal da USP, 10/4/2019. Disponivel aqui. Acesso: 5/3/2021.