"Vivemos no mundo das informações. Cultura é
diferente. A cultura também é composta de
informações, porém aquelas que moldam a nossa civilização."
Diante desse momento ímpar de crise pandêmica que atravessamos no limiar do século 21, nada melhor que buscar alento e sabedoria na literatura. Por isso, a coluna German Report tem o prazer de ouvir José Roberto de Castro Neves, professor, advogado, literato e apreciador de Shakespeare.
Além da atividade acadêmica, Castro Neves atua na advocacia e na arbitragem, razão pela qual é frequentemente apontado, por autorizadas publicações, como um dos advogados mais admirados do país nas áreas cível e arbitral. Essa área ele conhece muito bem, pois integrou, por orientação do Senado Federal, a comissão de juristas que elaborou a Lei de Mediação e fez a revisão da Lei de Arbitragem.
Advogado atuante, é membro de diversas comissões, dentre as quais a Comissão de Direito Civil do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) e a Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB Federal. Atualmente, é presidente da Editora OAB-Federal, responsável pela Revista da OAB.
Sua produção acadêmica é vastíssima, com livros e artigos nas mais diversas áreas do direito, principalmente obrigações, contratos e arbitragem. Dentre as mais renomadas, destacam-se: Uma Introdução ao Direito Civil - Parte Geral, Direito das Obrigações e Contratos, todas publicadas pela editora GZ.
Mas, além de brilhante jurista, Castro Neves ainda é um grande humanista, o que fica evidente em sua larga produção literária: Medida por Medida – O Direito em Shakespeare, A Invenção do Direito, Como os Advogados Salvaram o Mundo e O Espelho Infiel, além das coletâneas O que os grandes livros ensinam sobre justiça e O mundo pós-pandemia, por ele recentemente organizadas.
Nessa entrevista, Castro Neves mostra como a literatura é imprescindível ao ser humano, pois é um "guia fundamental de valores éticos" que nos ajuda a compreender a natureza humana e serve como "filtro valorativo" para o excesso de informação da sociedade contemporânea. Além disso, ele salienta quão importante a literatura é para o direito e para seus operadores, que precisam permanentemente se expressar, interpretar, mas também se sensibilizar com o sofrimento do outro. "A alma se alimenta da sabedoria", diz. É verdade; confira:
Além de jurista brilhante, você é um profundo conhecedor da literatura universal. Como e em que medida a literatura é importante para o direito e como ler na correria do dia a dia, em um mundo em que cada vez mais as informações são passadas por meio de imagens e poucos caracteres?
JRCN: O questionamento da importância da literatura para o estudo e aperfeiçoamento do Direito começa com a seguinte indagação: por que o advogado deve ler? Aliás, não apenas o advogado, mas também o juiz, o procurador, o promotor, o legislador devem ler. Há boas razões para isso. Em primeiro lugar, a leitura é fonte de prazer. Na leitura, conversa-se consigo mesmo. É uma descoberta interna. A alma se alimenta de sabedoria. O prazer passa pela certeza de que, pela leitura, nós nos transformamos positivamente.
Além disso, o advogado, o juiz, o homem que de alguma forma trabalha com Direito precisa comunicar-se bem. Ele tem que dominar a língua, pois apenas assim poderá expressar precisamente suas ideias. Só se comunica bem quem lê. Com a leitura, aumenta-se o vocabulário e aprende-se as inúmeras formas de se manifestar. Advogado é aquele que fala pelo outro. Essa é a própria origem da palavra: ad vocare. Fundamental, portanto, que ele saiba se expressar. Na verdade, todos nós devemos, constantemente, aprimorar a forma de melhor expor nossas ideias e como interpretar o que nos dizem, de modo direto ou indireto.
A literatura é a mais poderosa escola da comunicação. "Nascemos sem saber falar e morremos sem ter sabido dizer... e em torno disto, como uma abelha em torno de onde não há flores, paira ignóbil um inútil destino", disse um amargo Fernando Pessoa. Comumente, ouvimos alguém dizer, quando se instaura uma confusão, que tudo não passou de um mal-entendido. É comum escutar a desculpa de que o autor de alguma afirmação se expressou mal. Nós mesmos, quantas vezes, lamentamos a forma como nos manifestamos. Comunicar-se bem é uma grande vantagem, enquanto a comunicação mal feita pode ser desastrosa.
A comunicação, como se sabe, pode dar-se de diversas formas. Muitas vezes, um olhar tem mais poder de expressar o que acontece do que um livro inteiro de palavras. Uma imagem ou mesmo um singelo sinal com os dedos também podem transmitir com veemência a mensagem. Entretanto, como regra, a palavra, escrita ou falada, se revela como o meio mais preciso para transmitir uma ideia. Dominar a palavra – a palavra correta e adequada – é a primeira chave para se comunicar. Portanto, um profissional de Direito, não importa a área que atue, precisa, além de conhecer a técnica e dogmática jurídica, deve saber se expressar e interpretar – o que se desenvolve com a leitura.
Um terceiro motivo para ler encontra-se na habilidade de interpretar. No Direito, tudo passa pela interpretação, pela arte de extrair o sentido das coisas. A boa literatura vai demandar precisamente esse exercício de interpretação, ferramenta essencial ao aplicador do Direito.
Por fim, a leitura nos permite compreender melhor o ser humano. Independentemente do ponto em discussão, o Direito sempre estará tratando, em última análise (e por vezes indiretamente), do ser humano. As virtudes e os defeitos do ser humano são desnudados na literatura, permitindo ao leitor refletir sobre a natureza do homem. Vaidade, humildade, gratidão, ciúme, ganância, desprendimento, despeito, honra e tantos outros sentimentos inerentes à nossa condição ali são dissecados. Na literatura, nós nos aproximamos do que nos é comum e somos dados a conhecer melhor o que não nos é tão comum assim.
Sem ler, o legislador não compreenderá o alcance das regras que edita; o juiz não se sensibilizará para o efetivo problema que reclama a sua decisão; e o advogado não conseguirá expor suas verdades. Sem ler, a nossa humanidade perde e se apequena. Sempre imaginei que o melhor médico não seria aquele que apenas dominasse o funcionamento dos órgãos do nosso corpo ou que soubesse os remédios apropriados para cada moléstia.
O melhor médico será aquele que conhece a humanidade, pois as nossas angústias são, comumente, as causas de nossas desgraças físicas. O mesmo se pode dizer do arquiteto. Como ele pode imaginar uma casa se não tiver uma boa ideia de como as pessoas se sentem – e como se sentirão mais confortáveis?
Com os advogados e os profissionais do Direito de uma forma geral não é diferente. Não basta conhecer todas as leis e a doutrina dos renomados jurisconsultos para se tornar um bom profissional nesse ramo. Se isso fosse suficiente, teríamos que admitir que um bom computador poderia, com muitas vantagens, substituir a atividade humana nesse setor. A atuação desse profissional requer o desenvolvimento de habilidades que se chega por meio da leitura.
Além disso, o profissional de Direito irá cumprir melhor sua função tornando-se um ser humano melhor. Nisso ele não difere de qualquer outra ocupação. Num mundo marcado pelo excesso de informação – que nos chega pelas mais variadas formas –, temos que desenvolver ferramentas a fim de filtrar o que nos chega. Um filtro valorativo, fundamental para, de início, separar o joio do trigo, distinguindo o relevante do supérfluo. A literatura serve também de guia fundamental de valores éticos.
Em Otelo, Shakespeare diz que "quem surrupia meu bom nome, tira-me o que não o enriquece e torna-me completamente pobre". A meu ver, a mais bela definição de dano moral. Como pode um homem comum, nascido há 500 anos no interior da Inglaterra, sintetizar em uma frase um conceito jurídico tão complexo?
JRCN: Shakespeare viveu num período de razoável liberdade de expressão. Ele pode expressar sua genialidade com peças que eram adoradas pelo público, como são até hoje, na medida em que abordam temas universais. Há muito tempo, estudo a obra de Shakespeare e já publiquei textos sobre o tema, especialmente Medida por Medida – O Direito em Shakespeare, no qual cuido das muitas questões jurídicas que se encontram na obra do Bardo. Nem todos sabem que Shakespeare, um dramaturgo inglês que viveu na virada do século XVII, escrevia suas peças também pensando nos advogados e estudantes de direito. Isso porque grande parte de seu público era formado precisamente por profissionais do Direito.
Comumente, as companhias teatrais exibiam-se nas guildas de advocacia de Londres, chamadas "Inns of Court", locais onde residiam e se formavam os estudantes de advocacia. Há registros de que as peças A Comédia de Erros, Noite de Reis e Troilo e Créssida tiveram suas estreias apresentadas nesses Inns. Em tais ocasiões, a plateia era praticamente constituída de advogados, professores e de estudantes de Direito. Os homens ligados ao mundo jurídico eram um público certo das peças. Natural, portanto, que Shakespeare discutisse com eles, versados em matéria legal, os temas que viriam a ser tratados. Esse fato também explica o motivo de haver nas peças shakespearianas tantos julgamentos. Veja-se que dois terços das peças de Shakespeare (ou seja, mais de vinte delas) têm cenas de julgamento – uma média consideravelmente maior do que vista em outros dramaturgos contemporâneos do Bardo de Stratford.
Na Inglaterra de Shakespeare, os julgamentos legais, tanto de natureza penal quanto civil, atraiam enorme público. Os temas submetidos aos Tribunais eram debatidos pelo povo, que, nas ruas, praças, bares e teatros, emitiam as suas opiniões. Shakespeare repercutia essas discussões em suas peças. O texto mencionado acerca de dano moral é precioso, mas ele se torna ainda mais interessante porque Shakespeare o coloca na boca de Iago, o vilão da tragédia. Embora as palavras sejam belas, a intenção de quem as fala é a pior possível. Isso nos faz refletir ainda mais – e ainda aguça nosso espírito crítico.
Em Tito Andrônico, Shakespeare se ocupa do julgamento e, em determinada passagem da peça, Tito suplica ser ouvido pelo tribunal, sem receber qualquer resposta dos julgadores. Recentemente, as cenas da audiência do processo de Mariana Ferrer chocaram a sociedade ao vê-la implorar por respeito ao julgador. Independente do mérito do caso, somos tomados por um sentimento de injustiça nessas situações. O Bardo já se preocupava naquela época com a garantia do devido processo legal?
JRCN: Já se disse que os julgamentos injustos nunca acabam. Eis porque, até hoje, discutimos, com emoção, os julgamentos de Sócrates e Jesus. Em Tito Andrônico, o leitor ou o espectador ficam agredidos quando o tribunal passa por cima de Tito, no momento em que este suplica desesperado, atirando-se ao chão, para que lhe seja dada atenção. É o sentimento de injustiça que se agita, reclamando o direito de ser ouvido.
Em O mercador de Veneza, Shylock empresta dinheiro ao comerciante Antônio e, como esse, por infortúnio, não lhe paga o débito, pretende executar a garantia: uma libra de carne do devedor. O caso vai a julgamento e, embora Bassânio ofereça o dobro do valor devido, Shylock exige o cumprimento do contrato em seus estritos termos. Nessa obra, vimos através de Shylock a ideia mais límpida clássica visão do contrato, cuja forca obrigatória exigia seu cumprimento mesmo diante da ruína do devedor. O que a estória ensina ao jurista do século 21?
JRCN: Na Inglaterra de Shakespeare, os julgamentos legais, tanto de natureza penal quanto civil, atraiam enorme público. Os temas submetidos aos Tribunais eram debatidos pelo povo, que, nas ruas, praças, bares e teatros, emitiam as suas opiniões. Shakespeare repercutia essas discussões em suas peças.
Em 1590, um médico judeu, nascido em Portugal, chamado Roderigo Lopez, se enrodilhou numa intriga e acabou acusado – ao que parece injustamente ? de tentar envenenar a Rainha. Tratava-se de um dos poucos judeus que viviam em Londres naquela época (pois os hebreus foram expulsos da Inglaterra dois séculos antes). O processo de julgamento, ocorrido em 1594, foi um simulacro. Estava tudo arranjado para culpar o judeu, que acabou condenado e esquartejado em público. O seu corpo ficou exibido dependurado, todo retalhado. Shakespeare possivelmente assistiu a essa cena macabra. O antissemitismo voltou à pauta com o episódio. Esse fato seguramente influenciou o dramaturgo quando escreveu O Mercador de Veneza.
Shakespeare, como um homem inteligente, não se rendeu aos estereótipos. Ele cria, no judeu Shylock, personagem de O Mercador de Veneza, uma figura complexa e não um papel maniqueísta. Shylock manifesta sentimentos elevados. Sofre a dor da rejeição da filha, sente sua discriminação. Também o judeu de O Mercador de Veneza revela-se capaz de atos desprezíveis, como o desejo de vingança abusiva. Shylock é um ser humano e não uma personagem. Somos forçados a desenvolver uma análise complexa da situação, abandonando os pensamentos simplistas. O preconceito é ridicularizado de uma forma sutil, porém poderosa.
Esse tipo de raciocínio traz enormes vantagens ao advogado, intérprete dos fatos, pois nos afasta do cacoete de enxergar a situação de forma tosca, rude, como se as pessoas fossem apenas boas ou más, e os casos se limitassem aqueles nos quais alguém está completamente certo ou errado. A vida, afinal, é mais complexa.
Na peça, Pórcia, a grande heroína e vilã da estória, faz uma interpretação literal do contrato para salvar Antônio, dizendo que Shylock pode lhe tirar a carne, mas nenhuma gota de sangue. O que Shakespeare nos ensina com essa passagem?
JRCN: Na época de Shakespeare, as mulheres não podiam representar. Para os papéis femininos eram indicados jovens atores, ainda imberbes, que se maquiavam e afinavam suas vozes. O papel de Pórcia, portanto, foi desempenhado originalmente por um homem vestido de mulher. Na cena do julgamento em O Mercador de Veneza, Pórcia se fantasia de homem, de jovem jurista, para auxiliar no resultado do caso. Era, portanto, um homem vestindo-se de mulher, fazendo-se, novamente, de homem. Essa era a justiça... Para piorar, Pórcia, no julgamento, estava completamente parcial, pois queria ajudar Antônio, amigo de seu marido Bassânio. O judeu Shylock, nesse ponto, foi absolutamente prejudicado.
A astuta Pórcia, claro, oferece uma bela decisão, citando bons argumentos para evitar o uso abusivo do direito. Por outro lado, fornece uma decisão a partir viciada pela parcialidade. Shakespeare era um autor muito generoso com o leitor. A interpretação de sua obra é extrínseca. Cabe a nós desvendar o ocorrido.
Em Henrique IV, há um momento em que o filho, Henrique V, já rei, encontra-se com o Lord Juiz que o enviou para a prisão ainda jovem por desrespeitar as leis do reino. No diálogo entre os dois, o monarca reconhece que o Juiz aplicara corretamente a lei, levantando a questão de que a lei deve ser igual para todos e aplicada indistintamente. Dessa forma, o Bardo tematiza um tema ainda crucial na sociedade contemporânea, concorda?
JRCN: Shakespeare escreveu dez peças históricas, tratando da história de reis da Inglaterra. Os ingleses da época adoravam as históricas da Guerra das Rosas, período no qual duas das mais nobres casas inglesas lutaram pelo poder. Essas obras se encontram aglutinadas em duas tetralogias e duas peças isoladas – a rigor, Vida e Morte do Rei João se aproxima das demais, tanto no tema quanto na época em que foi elaborada.
A primeira tetralogia, do ponto de vista do momento em que foi produzida, é composta pelas três partes de Henrique VI, que culminam em Ricardo III. Foram escritas entre 1591 e 1593. São peças de uma primeira fase do dramaturgo.
A segunda tetralogia abrange Ricardo II, de 1595, as duas partes de Henrique IV e, finalmente, Henrique V, de 1598. Esta tetralogia narra um momento histórico anterior àqueles relatados na primeira tetralogia. De fato, com a morte de Henrique V (que encerra a segunda tetralogia) ascende ao trono seu filho Henrique VI (monarca cuja peça inaugura a primeira tetralogia).
Do ponto de vista histórico, há uma sequência de reinados que inicia com Ricardo II e vai até Ricardo III, passando por Henrique IV, Henrique V e Henrique VI. As duas tetralogias em conjunto iniciam com o destronamento de Ricardo II e vão até o final da Guerra das Rosas, com a queda de Ricardo III e o início da dinastia Tudor.
O grande tema das peças histórica era político. Como deveria atuar o rei? Nas peças shakespearianas, a tirania, a falta de medida e a arrogância do líder resultavam invariavelmente em desgraça. São lições válidas para todos os governantes, naquela época e ainda hoje.
Uma das primeiras peças históricas de Shakespeare foi Vida e Morte do Rei João, o lendário João Sem-Terra, que em 1215, firmou a Carta Magna com os nobres ingleses. Como o Bardo aborda a questão da limitação do poder real?
JRCN: Shakespeare nada fala da Magna Carta em Vida e Morte do Rei João. O tema era sensível para a Rainha Elisabeth I. Mas o limite do poder real foi um tema constante, em diversas de suas peças. Tome-se, por exemplo, o que ocorre em Ricardo II. Essa peça reflete uma discussão jurídica que pairava sobre a Inglaterra de então (mas que segue atual). Em 1558, morre a católica Maria I e abre-se uma nova discussão acerca da sucessão do trono inglês.
Numa interpretação estrita das regras legais de sucessão, Elisabeth I não deveria suceder sua irmã por parte de pai, Maria I (durante o reinado de Maria I, Elisabeth chegou a ser aprisionada por dois meses na torre de Londres, acusada de conspirar contra a irmã, e depois ficou confinada num castelo denominado Woodstock). A apreciação gelada das leis aplicáveis ao tema apontava a prima de Elisabeth I, Maria Stuart, a Maria "Rainha dos Escoceses", como a legítima herdeira ao trono da Inglaterra.
Maria Stuart era neta de Margareth, irmã de Henrique VIII e vinha de uma linhagem inequivocamente nobre (muito diferente da Elisabeth, filha de Ana Bolena, que não tinha sangue azul). A avó de Maria Stuart se casou com James IV da Escócia, o que a tornava herdeira do trono escocês. Entretanto, a Maria Stuart era católica, enquanto Elisabeth I havia abraçado a religião anglicana, criada por seu pai ao romper com o Vaticano. Os nobres, que, na sua maioria, também aderiram à Igreja Anglicana, não viam com bons olhos ter que responder a um monarca católico. Havia, portanto, uma tensão política no ar consistente em identificar como se deveria dar a sucessão real.
Essa análise reclamava noções jurídicas. Elizabeth I acabou sucedendo sua irmã Maria I como rainha – até porque essa foi a vontade desta última. O tema da correta sucessão foi uma constante ao longo de todo do reinado de Elisabeth I, que durou extraordinários 45 anos. Há registro de um parlamentar que ficou anos preso na Torre de Londres apenas porque escreveu um artigo sobre a questão.
No começo do reinado, discutia-se, portanto, a legitimidade. Maria Stuart foi aprisionada por quase 20 anos e, depois de participar de diversas conspirações contra a rainha, foi finalmente executada em 1587. Do meio e até o final do reinado de Elizabeth I, a dúvida passou a ser de quem a sucederia, pois a rainha jamais se casou e, oficialmente, não procriou.
Eis porque o tema era sensível: Ricardo II, o monarca retratado na peça do mesmo nome, não era um rei competente. Era, entretanto, o rei por direito. As qualidades particulares e subjetivas do monarca, a rigor, não justificavam, naquele momento histórico, seu cargo de rei. O rei mantinha a sua posição exclusivamente por motivos hereditários, pelo respeito às regras de sucessão, numa explicação teórica que passava pela invocação de um direito divino. Havia, entretanto, o primo do rei, Bolingbroke, o querido do povo e dos nobres, talhado para liderar. Bolingbroke tinha a competência para ser rei, mas faltava-lhe legitimidade.
Tanto no momento histórico no qual Shakespeare escreveu a peça, como na particular situação de Ricardo II, a questão era a mesma: um rei, mesmo ruim para o Estado, deveria ser protegido e mantido no trono? O que era melhor: respeitar a regra da hereditariedade, ou proteger o Estado, admitindo que a pessoa mais capacitada governe? O que vale mais: a incompetência legítima ou a competência ilegítima? Esse tema foi bastante discutido no Brasil, quando do processo de impeachment da ex-Presidente Dilma. O assunto encontra-se vivo.
Hamlet, Príncipe da Dinamarca, conta a estória de um personagem atormentado pela dúvida sobre se o tio, agora rei e casado com sua mãe, matou seu pai. É dele a frase: “ser ou não ser, eis a questão.” O que Hamlet ensina ao Direito?
JRCN: Há um sem-fim de ensinamentos em Hamlet, inclusive de natureza filosófica e ética. O espectador de Shakespeare era convidado a essa reflexão, de conteúdo valorativo e de contornos jurídicos. Mas esse tema e a sua relevância não ficaram restritos ao século XVI. Muito ao contrário, seguem presentes e constantes.
Em 1597, deu-se o rumoroso caso de uma jovem, Katherine Hamlett (atente-se ao nome da moça!), que se afogou numa parte rasa do rio Avon, em Tiddington. Discutiu-se, na ocasião, se houve suicídio, o que impediria a jovem de receber um enterro cristão. Naquela época, entendia-se que os suicidas não poderiam ser enterrados em solo sagrado. Depois de um julgamento que ganhou a atenção do povo, acabou-se por entender que a jovem Hamlett (com dois ‘tt’) morrera por acidente. Com isso, ela poderia ser enterrada ao lado da igreja, como era costume de então.
Shakespeare reproduz essa discussão em Hamlet. Nessa peça, Hamlet tem uma história de amor inacabada com Ofélia. Embora exista um sentimento entre eles, as circunstâncias abortam o romance. Polônio, pai de Ofélia, é morto acidentalmente por Hamlet. O príncipe aparenta loucura e rejeita Ofélia. Esta, com a perda do pai e a aparente loucura de Hamlet, suicida-se – pelo menos, é o que aparenta, pois fora encontrada afogada nas margens de um arroio.
Dessa situação funesta surge um tema jurídico. Isso porque, como acabou de se explicar, de acordo com a lei canônica, aplicada à época de Shakespeare para as questões relativas a enterros, não se poderia enterrar os suicidas nos cemitérios, em regra relacionados à Igreja.
Na peça, os coveiros cuidam de uma controvérsia jurídica, que demanda a apreciação de um fato: Ofélia suicidou-se? A conversa segue um raciocínio incrivelmente lógico e jurídico, servindo de lição para o conceito de causalidade. Se houve um suicídio, Ofélia não poderia, de acordo com a lei aplicável, ser sepultada no campo santo. Essa era a norma em toda a Inglaterra de então. Diante disso, o tema em debate consistia em saber se Ofélia estava ou não sã, isto é, se ela tinha ou não consciência do que fazia. Se ela estava fora de seu juízo, não se poderia considerar um suicídio e, logo, ela poderia ser enterrada dignamente.
Como explica o coveiro, cabia ao "comissário" indicar a natureza da morte e se o falecido tinha consciência de seu ato. O Bardo não perde a ocasião para registrar que sendo a "Lei baseada na informação do comissário", haveria como a norma ser aplicada de forma diferente aos "grandes". Mas essa é apenas de muitas outras questões legais discutidas em Hamlet.
Dentre várias pérolas, Hamlet diz: “A concisão é a alma da sabedoria”. Um difícil ensinamento aos juristas, que tendem a ser prolixos. Qual o segredo da arte de ser sucinto sem perder em profundidade?
JRCN: No Prólogo de Romeu e Juliet, em outras linhas, toda a tragédia é dita de forma resumida. O espectador toma ciência, logo nos primeiros segundos da peça, de tudo o que vai acontecer. Um grande spoiler ou um convite a saber como tudo ocorreu? Alia-se o poder de concisão com o lirismo, tudo no seu limite:
"Duas famílias, iguais em dignidade,
Na linda Verona, onde se passa esta cena,
Levadas por antigos rancores, desencadeiam novos distúrbios,
Nos quais o sangue civil tinge mãos cidadãs.
Da entranha fatal desses dois inimigos, ganharam vida,
Sob adversa estrela, dois amantes,
Cuja desventura e lastimoso fim enterraram,
Com a morte, a constante sanha de seus pais."
Veja-se que tudo é dito: fala-se que um jovem e nobre casal de Verona se apaixona, porém a antiga rixa de seus pais faz com que o amor termine em tragédia. Apenas dessa forma, os pais refletem sobre a insensatez de sua rivalidade. Está tudo dito, mas isso afasta o espectador ou leitor. Ao contrário, ele fica interessado de compreender como tudo ocorreu. Eis mais uma útil lição shakespeariana: a capacidade de concisão.
Num mundo no qual as pessoas têm tanta informação e são tão ocupadas, conta mais a objetividade. Ainda mais se ela servir para captar a atenção do leitor, como ocorre no prólogo acima transcrito. O prazer de ler Shakespeare também passa por descobrir os muitos aspectos jurídicos que permeiam suas peças. As singulares inteligência e sensibilidade do Bardo tornam riquíssimas as discussões jurídicas abordadas na sua obra, tanto pela forma como pelo conteúdo. Os profissionais do Direito agradecem.
Vivemos no mundo das informações. Jamais a humanidade foi tão bem informada. Sabe-se imediatamente de um trem descarrilhado em Bombaim, na Índia, e do nascimento de um urso Panda em algum rincão isolado da China. Mas isso é informação. Amanhã, essas informações têm pouca utilidade.
Cultura é diferente. A cultura também é composta de informações, porém aquelas que moldam a nossa civilização. Na cultura se encontram os alicerces morais. Por que entendemos que algo é certo ou errado? Por que concordamos que algo é belo ou feio, bom ou mau? O motivo está em que todos temos arraigados valores que nos foram entregues por aqueles que vieram antes de nós, que, por sua vez, receberam da geração anterior e assim sucessivamente. Essa tradição, a entrega de geração a geração, é construída pela cultura. A Bíblia é cultura. A Ilíada e a Odisseia são cultura. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes também. O Tao Te Ching é cultura. Dante, Shakespeare, Cervantes, Dostoievsky, Machado de Assis. Cultura. Apenas munidos dos valores contidos na boa literatura seremos capazes de transferir adiante o legado da nossa civilização.
A conclusão é a de que não basta ao profissional do Direito conhecer as leis, a orientação da doutrina e da jurisprudência. É preciso que pense sobre o que conhece, a fim de aprimorar o sistema e, por consequência, a sociedade. Apesar de todo avanço tecnológico, a literatura segue como a mais poderosa ferramenta para essa fundamental reflexão.
Podemos tirar uma mensagem positiva para a sociedade nesse momento de crise mundial provocada pela pandemia?
JRCN: O século XIX foi otimista; acreditava-se que o desenvolvimento da ciência traria benefícios à humanidade, erradicando a pobreza e as doenças. O fim do absolutismo, sob a bandeira da liberdade, servia como farol, iluminando dias melhores. Já o século XX teve outro aspecto, algo sinistro. Duas grandes guerras, que, não apenas devastaram fisicamente a Europa, mas, pior, destruíram a crença na própria civilização, já que esta foi capaz de produzir o holocausto. O avanço tecnológico, que seria uma aproximação com o divino, fabricou bombas com o poder de matar milhões – e, por duas vezes, foram lançadas contra seres humanos, que pereceram indefesos, como insetos submetidos a um pesticida.
E o século XXI? Talvez seja o tempo da indiferença, das relações fluidas, passageiras e inconsistentes, da distância digital. Talvez, ao revés, estejamos vivendo aquela onda que varre a civilização, de tempos em tempos, decorrente de um fastio da materialidade, em busca de um sentido mais espiritualizado para a nossa passagem. Talvez. Por fim, falando da crise causada pela Covid, vale trazer, mais uma vez, Romeu e Julieta. No final dessa célebre tragédia, os amantes, como se sabe, morrem. O amor, entretanto, não morre. É dessa forma que a humanidade cruza seus percalços.