O mundo está cansado da pandemia. Pensávamos que tudo iria acabar em poucos meses, mas assistimos perplexos o surgimento da segunda onda de Covid-19 na Europa. Reino Unido e França decretaram novamente o fechamento de alguns estabelecimentos comerciais e, na Alemanha, a Chanceler Angela Merkel fez enfático apelo à população para trabalhar de casa e reduzir o contato social, meio rápido e eficaz de propagação do coronavírus.
Mitidiero concluiu a graduação em 2002 e, em seguida, entrou para o curso de Mestrado, interrompendo-o para ingressar no Doutorado sob orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Doutorou-se em 2007 com a tese: Bases para construção de um processo civil cooperativo, que virou o livro: Colaboração no processo civil – do modelo ao princípio, publicado pela editora Revista dos Tribunais em 2009 e que já está na quarta edição.
Em 2013, fez pós-doutorado na Universitàa degli Studi di Pavia, na Itália, onde pesquisou sob a supervisão do famoso processualista Michele Taruffo. Mitidiero foi, na verdade, o último aluno de Taruffo e dos estudos nasceu a obra: Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente, publicada em 2017 também pela Revista dos Tribunais.
Discípulo de Taruffo, Álvaro de Oliveira, Ovídio Baptista, Pontes de Miranda, Humberto Ávila e Luiz Guilherme Marinoni, de quem é sócio no escritório, Mitidiero tem vasta e profunda produção científica, com obras agraciadas com o Prêmio Jaboti: o primeiro, em 2009, recebido com o livro Código de Processo Civil Comentado, escrito em co-autoria com Marinoni e o segundo, em 2017, com o novo Código de Processo Civil Comentado, coleção elaborada com Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart.
Sua obra Antecipação da Tutela - da Tutela Cautelar à Técnica Antecipatória, publicada em 2013 e já na quarta edição, foi traduzida para o espanhol e publicada na Espanha pela editora Marcial Pons, em 2013, e também para o italiano, com publicação da prestigiosa editora Giappichelli de 2016.
Mitidiero é membro da International Association of Procedural Law (IAPL), do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Exerce advocacia contenciosa em Porto Alegre, Curitiba e Brasília, atuando no contencioso nas Cortes supremas. Ao German Report ele concedeu essa entrevista, refletindo sobre os problemas atuais que enfrentamos. Confira:
GR: Estamos vivendo com a pandemia de Covid-19 um momento único na história recente da humanidade, em que as pessoas precisaram se isolar e paralisar suas atividades econômicas para conter a propagação do vírus. A Europa vive agora o temor real da segunda onda do coronavírus e aquilo que era para ser passageiro, ainda não há previsão de acabar. Como você está vivenciando esse momento?
DM: Verdade, momento histórico, Karina. Não dá para dizer que é um Cisne Negro, porque o pessoal da ciência médica já previa algo assim há tempo, mas sem dúvida é algo que pega a grande maioria das pessoas desprevenida. Estou vivenciado bem. O primeiro semestre foi mais parado – a UFRGS, minha Universidade, suspendeu as aulas em março e só retomou em agosto, e a advocacia também andou em um primeiro momento de maneira mais lenta, mas agora as coisas já retomaram em alguma medida o seu curso. Aproveitei para ler, ver séries, estudar e escrever um pouco. Isso olhando aqui para dentro de casa. Olhando para fora, fiquei e ainda fico preocupado em uma tríplice perspectiva: a uma, com a falta de um enfrentamento cientificamente orientado do problema por parte do Governo Federal; a duas, com certa insensibilidade que por vezes percebo em alguns setores em relação às consequências econômicas da crise em todos os níveis – desde em relação às atividades empresariais até a situação dos mais vulneráveis, que obviamente a vivenciam de uma maneira ainda mais visceral; e, a três, com a adesão social em menor escala às medidas de isolamento. A crise é muito ampla – e o cobertor, curto.
GR: Um dos problemas mais dramáticos decorrentes da pandemia é o risco de despejo por falta de pagamento. Países como a Argentina proibiram o despejo por falta de pagamento durante o lockdown e a denúncia do contrato, bem como suspenderam temporariamente o pagamento dos alugueis a fim de evitar que a crise de saúde pública se transformasse em uma crise social. No Brasil, os inquilinos ficaram desprotegidos durante boa parte do isolamento social, porque o Presidente vetou a proibição de concessão de liminares em ações de despejo, veto que só foi derrubado pelo Congresso em 20.08.2020. E a proibição já expira no fim de outubro, quando ainda estamos longe do fim da pandemia e assistimos uma segunda onda de contagio na Europa. Como você vê essa curta proteção?
DM: Essa é uma questão radical e toca o coração da atividade jurisdicional. Lembra do Discours Préliminaire do Portalis de 1801? Pois é, acho que é mais ou menos por aí: a caracterização do juiz como "ministre d’équité", como responsável por fornecer um "supplément de la législation", pode ajudar a perceber a necessidade de interpretar os contratos de aluguel e o direito à moradia em uma chave mais equilibrada à luz da razoabilidade – aqui entendida como razoabilidade, como equidade. Com isso, dá para tentar uma solução mais atenta ao caso concreto: quanto tempo as personagens envolvidas no contrato podem efetivamente aguentar? Em que medida podem fazer concessões? Em outras palavras, a razoabilidade ajuda a dosar o esforço de guerra que ainda será necessário de cada um. Situações excepcionais provocam soluções excepcionais. Do ponto de vista do processo, duas técnicas podem ser empregadas: a tutela provisória, claro, vedando despejo por um determinado período, e a convocação das partes para uma audiência – por videoconferência – para que possam pensar na cota-sacrifício que podem suportar, já com as devidas provas. Dá para adequar o processo para tanto com base no art. 139, CPC.
GR: Como pode funcionar a tutela provisória nesse contexto de proteção do direito à moradia?
DM: A tutela provisória é um modo de distribuir o peso que o tempo representa na vida dos litigantes de forma isonômica em função de dois critérios: urgência ou evidência (art. 294, 300 e 311, CPC). O locatário pode se antecipar ao locador: pode propor uma ação visando à tutela inibitória a fim de impedir o despejo com base em falta de pagamento em função da pandemia (art. 497, parágrafo único, CPC). Nesse caso, pode pedir tutela provisória com base na urgência. É claro que a procedência ou não do pedido vai depender de alegação e prova da razoabilidade do sacrifício exigido de ambas as partes da relação contratual. A técnica processual apropriada, contudo, é essa. No âmbito de uma ação de despejo promovida pelo locador, pode o locatário apresentar reconvenção e pedir tutela provisória com base na mesma argumentação que pode ser deduzida na ação que visa à tutela inibitória. Note-se que aí a reconvenção não implica indevida complicação do processo: a rigor, cumpre ao juiz examinar apenas a razoabilidade do sacrifício concretamente imposto a ambas as partes diante da situação pandêmica.
GR: E como funciona a convocação de uma audiência inicial para tratamento emergencial do caso?
DM: Uma das marcas do Código é a colaboração – que foi adotada tanto como modelo como princípio (art. 6º, CPC). E uma das ferramentas essenciais da colaboração é o diálogo. Se juntarmos colaboração, diálogo e adaptação (outro instrumento importante colocado à disposição do juiz e das partes), veremos que é plenamente possível para o juiz convocar uma audiência preliminar para tratar sumariamente da causa e procurar um equilíbrio entre o direito à moradia e o direito ao cumprimento do contrato (que pode representar para o locador, aliás, parte substancial da renda com que provê o seu próprio sustento – só o caso concreto pode revelar essas coisas). Dá para fazer isso com base no art. 139, CPC.
GR: Nesse caso, não posso deixar de perguntar: jogando tudo para o caso concreto, não corremos o risco de termos uma jurisprudência lotérica a respeito?
DM: Nem tudo está no caso: a razoabilidade como postulado está no CPC (art. 8º) e, mais fundamente, deriva do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, CRFB). De mais a mais, embora nenhum caso seja intrinsecamente idêntico a outro, podem ter semelhanças que determinem a adoção das mesmas razões empregadas para a solução de outros já julgados. E aqui o CPC também ajuda bastante: embora não tenha criado um sistema de precedentes, ajudou a delineá-lo (arts. 485, § 1º, incisos V e VI, 926 e 927). Pau que bate em Chico, tem que bater em Francisco.
GR: De que forma o coronavírus afetou negativa e/ou positivamente o processo e quais mudanças vieram para ficar?
Para quem tem acesso à tecnologia e tem um bom ambiente de trabalho em casa, a pandemia facilitou a vida. Dou o meu exemplo: normalmente ia a Brasília duas ou três vezes por mês para advogar. Confesso que estou com saudades, mas a vida ficou mais fácil. Hoje basta ligar o CiscoWebex, o Zoom ou o Google Meet e me teletransporto para Brasília. Uma versão acanhada dos Jetsons, claro, mas ainda assim um grande passo em relação ao estágio pré-pandemia.
Minha impressão é de que a produtividade da Justiça Civil aumentou. Vamos aguardar o Justiça em Números, mas é muito provável que de fato tenha aumentado. Afora a dimensão quantitativa da questão, porém, é preciso ver se esse aumento foi realizado sem um decréscimo de qualidade. Como é evidente, o aspecto qualitativo é fundamental. Como a avaliação do acerto ou desacerto das soluções relativas ao mérito da causa leva quase sempre a um impasse entre os diferentes setores envolvidos, é necessário aferir pelo menos a justiça processual da decisão – isto é, o fato de o caso ter sido enfrentado e de os fundamentos arguidos pelas partes terem sido efetivamente analisados. É mais difícil avaliar o aspecto qualitativo da produção da Justiça Civil. Sem esse diagnóstico, contudo, é ainda mais difícil avaliar se o aumento de produtividade é algo bom ou ruim para o consumidor de justiça.
Se eu tivesse que apostar, diria que a prática dos plenários e sessões virtuais é forte candidata à reeleição. Diria mais: sua pretensão é monárquica. O problema, portanto, está em construirmos um sistema que permita a avaliação da accountability e da transparência da Justiça Civil em relação à prática de atos processuais nesses ambientes virtuais. Sistemas que permitam o acompanhamento dos julgamentos por todos os seus interessados, efetiva participação dos advogados durante toda a sessão e – insisto – documentação de um diálogo sincero e completo entre as razões das partes e as razões judiciais nas decisões são medidas importantes para que as partes possam perceber a Justiça Civil como uma instituição confiável, responsiva e responsável.
GR: Muito se fala no uso de inteligência artificial no direito, mais especificamente no Judiciário, como meio de tornar mais célere a prestação jurisdicional. As decisões judiciais, porém, envolvem interpretação e juízos de valoração e ponderação. Quais os riscos para o jurisdicionado no uso dessas tecnologias e quais problemas de garantias processuais constitucionais isso pode colocar?
Karina, tua pergunta aqui não poderia aparecer em uma semana melhor. Parece que combinamos. Nos dias 22 e 23 de outubro, às 9h, o Supremo Tribunal Federal promoverá um webinar sobre "Cortes Supremas, Governança e Democracia – Contribuições da Sociedade Civil para o Aprimoramento da Governança do Supremo Tribunal Federal". Se você puder divulgar o evento aqui no German Report, aliás, agradeço muito. Especificamente em relação à questão, haverá o painel do dia 23, 10h10m, "Cortes Supremas, Governança e Agenda 2030", com a Professora Maria Tereza Sadek (USP), com a Conselheira do CNJ Maria Tereza Uille Gomes, comigo e com a moderação do Dierle Nunes (UFMG). Na sequência, às 11h20m, haverá o fechamento do evento com o Richard Susskind, com moderação do Ronaldo Lemos. O Susskind recentemente lançou um livro que aborda esse problema: Online Courts and the Future of Justice (Oxford University Press, 2019). Biscoito fino.
Um bom modelo de virtualização da Justiça Civil envolve tanto a transformação do ambiente judiciário (do físico para o virtual) como das ferramentas que auxiliam nos julgamentos (é aqui que entra a inteligência artificial). Vejo com bons olhos a introdução da inteligência artificial. Penso que é importante, porém, dar uma interpretação um pouco mais ampla aos embargos declaratórios, que pode se converter em um valioso instrumento de controle humano – por assim dizer – das decisões geradas pelas máquinas. Com atenção ao contraditório efetivo e a fundamentação analítica, aliada a um controle mediante embargos declaratórios com intervenção humana, pode ser uma boa saída pelo menos para a solução dos casos de massa. Se isso se presta à solução das grandes questões ético-jurídicas que especialmente o Supremo enfrenta? Bom, aí o discurso muda de figura. Como estratégia de gestão de casos mais simples, penso que pode ajudar muito.
GR: Você, além de brilhante jurista, é um amante da literatura. Qual a importância da literatura para o direito e como combinar ambos no cotidiano acelerado de nosso tempo?
DM: Essencial – e em vários níveis. A literatura reflete as grandes questões do nosso tempo. A Balada de Adam Henry, do McEwan, é um bom exemplo. No Brasil, Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, e O Tribunal de Quinta-Feira, do Michel Laub, são livros que enfrentam questões jurídicas com maestria. Além de uma certa ilustração dos problemas do nosso tempo, a literatura também ajuda muito em relação ao estilo. Um bom escritor é antes de qualquer coisa um bom leitor. Ler bons autores é o primeiro passo para escrever bem. Hábito. A chave para combinar está no hábito. Um tempo atrás, quando ainda tinha o Programa do Jô, tinha uma chamada fantástica: não vá para cama sem ele. É isso. Não lembro a última vez que fui para cama sem um livro. É um hábito que cultivo desde os 14, 15 anos de idade. Poucas páginas por dia dão vários livros por ano.