German Report

Pandemia não pode impedir pai de visitar filho

Pandemia não pode impedir pai de visitar filho.

15/9/2020

Volta e meia ouvem-se discursos aversos ao diálogo comparado e à troca de experiência com outros ordenamentos jurídicos sob o pálido argumento de que o que ocorre lá fora não se aplica aqui, porque as leis, a sociedade e/ou os costumes são diferentes. 

Essa narrativa normalmente é utilizada quando se pretende afastar uma ideia da qual se discorda. Mas, à toda evidência, ela carece de qualquer cientificidade, principalmente quando o objeto de comparação é uma ordem jurídica continental europeia, base do direito romano-germânico, do qual o Brasil é herdeiro legítimo. 

E a pandemia de Covid-19 mostra a fragilidade dessa narrativa de forma muito evidente, pois ela tem provocado os mesmos problemas e desafios em diversas partes do mundo, ainda quando agravados por peculiaridades locais. 

No campo do direito, a situação não é diferente, como os casos trazidos nessa coluna desde o início da crise de saúde pública o comprovam. 

E isso acontece mesmo no direito de família, que é um dos ramos do direito que mais reflete os valores e as características culturais de cada povo. 

Dessa forma, tal como no Brasil, também na Alemanha tem-se discutido acerca dos impactos da pandemia sobre a guarda e visitação dos filhos, principalmente se a necessidade de isolamento social justificaria per se a suspensão da visita de pais a filhos. 

E, tal como aqui, também lá alguns genitores têm se aproveitado da pandemia para dificultar e/ou impedir o contato pessoal – leia-se: presencial – do outro com a prole, abarrotando o Judiciário de litígios. 

O último imbróglio foi o caso recentemente julgado pelo Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main em que a mãe suspendeu unilateralmente as visitas do pai ao filho menor. 

O caso

Os pais tinham a guarda compartilhada do filho de dez anos desde 2018, quando o juiz estabeleceu o regime de guarda e visitação. 

De acordo com a decisão, a criança moraria com a mãe, mas o pai poderia ficar com o menor nos fins de semana e durante parte das férias, sendo que qualquer violação culposa a essas regras poderia geral para o genitor infrator multa de até 25 mil euros. 

Logo no início de março deste ano, quando surgiram as primeiras medidas governamentais de combate à pandemia, começaram os desentendimentos entre as partes, pois a mãe passou a dificultar o contato entre o pai e a criança. 

No final de março, ela simplesmente cortou o contato presencial do pai com o filho ao argumento de que ela e seus pais, que moram no andar abaixo ao seu, faziam parte do grupo de risco do coronavírus. 

Na Alemanha é comum que uma mesma casa seja divida em dois apartamentos independentes, morando uma família no térreo e outra no andar de cima. No caso em comento, a mãe e a criança moravam na mesma casa que os avós maternos, mas em espaços distintos.

 Apesar disso, a justificativa para a interrupção do contato presencial entre pai e filho foi de que ela, devido a doença pré-existente, e seus pais (avós maternos do garoto) pertenciam ao grupo de risco do coronavírus. 

Dessa forma, seria necessário evitar o contato pessoal do genitor, que poderia, porém, telefonar com o filho ou falar com ele da calçada, quando a criança estivesse na sacada. 

O pai não concordou com a decisão da ex-mulher e, apesar de todas as tentativas de resolver o problema, as partes não chegaram a acordo. 

Por isso, ele denunciou ao juizado de família que a mãe estava desrespeitando a decisão judicial que fixara o direito de visita, requerendo a fixação de multa no valor de 300 euros. 

A decisão

A mãe foi condenada em primeira instância, em fins de maio, a pagar multa de 300 euros por violação culposa do direito de visitação, fixado judicialmente. 

Ela, então, recorreu ao Oberlandesgericht (OLG) de Frankfurt a.M., onde também não obteve êxito. Trata-se do processo OLG Frankfurt a.M. Az. 1 WF 102/20, julgado dia 8/7/2020. 

O Tribunal confirmou a decisão inferior, reconhecendo que a mãe desrespeitou – de modo a si imputável – as regras judiciais sobre a visitação ao proibir qualquer contato presencial entre pai e filho. 

A Corte não acolheu a alegação da genitora no sentido de que a visitação não poderia acontecer em razão das restrições de contato (distanciamento social) impostas pelo Poder Público e que havia o risco concreto de transmissão e contágio do vírus, vez que ela própria e seus pais faziam parte do grupo de risco. 

Para o OLG Frankfurt a.M., um genitor não está autorizado, sem o consentimento do outro, titular do direito de visita, a alterar as regras de visitação fixadas judicialmente. 

Dito em outras palavras: a mãe não poderia, sem a concordância do pai, ter imposto unilateralmente regras de visitação diferentes das estabelecidas pelo juiz. 

E ainda quando ela se sinta (erroneamente) legitimada para tanto em razão das medidas governamentais, isso não afasta sua culpa, disse o OLG Frankfurt a.M. 

Para o Tribunal, as restrições legais de contato social, impostas como medidas de contenção à pandemia de Covid-19, não têm, em princípio, eficácia sobre o direito de visitação e guarda dos filhos. 

Em outras palavras: o isolamento social não pode conduzir a que os pais percam o contato com seus filhos, afastando o direito de visitação por conta da pandemia. 

Esse não foi o sentido e o fim da norma, afirmou o Tribunal de Frankfurt a.M., até porque a exigência de se evitar o contato social não diz respeito ao núcleo familiar mais próximo, do qual fazem parte os genitores, ainda quando morando em casas separadas. 

"A visita entre o genitor que não detém a guarda e a criança pertence ao mínimo absolutamente necessário de contato interpressoal e se só se submete a um suporte fático de exceção”, disse a Corte, salientando a excepcionalidade da suspensão do contato presencial entre pais e filhos1.    

Dessa forma, a mãe não poderia ter decido sozinha submeter a criança à quarentena, mas precisaria ter decidido em conjunto com o pai, dentro dos limites do poder de guarda que ambos possuem, disse o OLG Frankfurt a.M. 

A situação no Brasil

Por aqui, há grande discussão na doutrina especializada sobre a possibilidade ou não do juiz suspender o direito de visitação em razão das medidas de isolamento social e essa discordância se reflete nas decisões judiciais, que vão em ambas a direções. 

Pelo menos no início da pandemia, muitas decisões suspenderam as visitas entre pais e filhos em razão do risco genérico de contágio. 

Em caso apreciado pela 6ª. Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a Corte fixou a residência dos menores com a mãe, estabeleceu as visitas do pai aos sábados, mas suspendeu a visitação até junho passado em virtude das medidas sanitárias a fim de evitar a exposição das crianças a risco de contaminação. Até lá, só caberia contato virtual2. 

Na mesma linha foi a decisão da Vara de Família e Sucessões de São José dos Pinhais, no Paraná, em que a magistrada suspendeu o contato pessoal (presencial) do pai com a filha enquanto perdurasse a pandemia. 

Segundo noticiado na mídia, a mãe pediu judicialmente a modificação do regime de visitação no período de aulas online alegando que a criança se mostrava "cansada e indisposta", vez que o genitor a estava visitando em dias consecutivos, como se a menina estivesse de férias. 

A juíza do caso afirmou que no período de alastramento do vírus não se poderia olvidar que as visitas presenciais deveriam ficar suspensas com vistas à preservação da saúde3. 

Esse posicionamento restritivo à visitação parece ter sido corroborado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que, em 25.03.2020, emitiu orientação geral para a proteção de crianças e adolescentes durante a pandemia de Covid-19 na qual recomendava que crianças e adolescentes em guarda compartilhada ou unilateral não tivessem sua saúde submetida a risco em decorrência do cumprimento de visitas, previstas em acordo ou definidas judicialmente. 

E com essa finalidade, o órgão recomendou que as visitas e os períodos de convivência fossem substituídos, preferencialmente, por comunicação telefônica ou online, garantindo a manutenção da convivência familiar. 

Interessante notar que as decisões acima mencionadas não apontaram – até onde se extrai do noticiado na imprensa – razões objetivas concretas de risco à saúde dos filhos e/ou do genitor detentor da guarda, como doenças pré-existentes ou falta de isolamento social, a fim de justificar a suspensão do contato pessoal e presencial entre pais e filhos, mas tão só o risco geral de contágio. 

Diferente do caso em que o juiz determina a suspensão das visitas pelo pai, porque as crianças integram o grupo de risco e o pai não estava mantendo o isolamento social por questões profissionais4 ou da situação em que a adolescente passa a morar com o pai enquanto a mãe estiver em quarenta ou enquanto não comprovar não ter sido infectada pelo coronavírus5. 

Nesses casos, há um risco real de contágio e dano ao menor a justificar a decisão. Na mesma linha, a decisão da 8ª. Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que suspendeu temporariamente, a requerimento do próprio pai, o regime de visitação da filha sob a justificativa que a medida visava proteger os avós paternos, já idosos e integrantes do grupo de risco, com quem o requerente residia6. 

Recentemente, porém, têm surgido decisões exigindo um motivo concreto a fundamentar a suspensão do direito de visitação, como a do juiz da 2ª. Vara de Família e Sucessões de Jacareí, em São Paulo, que negou pedido de suspensão de visitas entre pai e filho. 

Segundo o magistrado, a pandemia não pode ser invocada genericamente para impedir o direito constitucional e legal da criança e do adolescente ao convívio familiar, ainda que restrito aos genitores, titulares do poder familiar7 – decisão que vai na linha do julgado de Frankfurt a.M., ora comentado. 

Como visto, essa discussão ainda vai ocupar os tribunais, principalmente se surgir uma segunda onda de Covid-19, como ainda temem os europeus.

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1 Agradeço ao querido amigo Marcelo Bürger, Professor da UniCuritiba, pelas críticas e sugestões. No original: "Der Umgang zwischen dem nicht betreuenden Elternteil und dem Kind gehört zum absolut notwendigen Minimum zwischenmenschlicher Kontakte und unterfällt damit einem Ausnahmetatbestand". Presseinformation 63/2020 Frankfurt am Main, 20/8/2020.

2 Justiça suspende visitas presenciais de pai a filhos em razão do coronavírus. Jornal de Brasília, 24/4/2020. Disponível aqui. Acesso: 14/9/2020.

3 Juíza suspende visitas de pai à filha sob cuidados da mãe durante a pandemia. Jota, 08.05.2020. Disponível aqui. Acesso: 9/9/2020.

4 Covid-19: Justiça suspende temporariamente o contato presencial entre um pai e seus filhos devido à pandemia. Disponível aqui. Acesso: 14/9/2020.

5 Justiça decide que pai não possa visitar os filhos durante a pandemia. Disponível aqui. Acesso: 14/9/2020.

6 Justiça suspende visitas paternas temporariamente para evitar disseminação do coronavírus. Disponível aqui. Acesso: 11/9/2020.

7 Pandemia não pode ser invocada genericamente para suspender visitas entre pais e filhos. Disponível aqui. Acesso: 24/8/2020.

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15