Em fins de maio, o governo da chanceler Angela Merkel anunciou a aquisição de ações da maior empresa aérea do país, a Lufthansa, a fim de evitar a falência da companhia, profundamente afetada pela paralisação das atividades aéreas desde 11/3/2020, quando a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de Covid-19.
Esse fato é de extrema relevância, porque se trata do primeiro grande resgate de uma empresa, por meio de participação acionária, em decorrência do coronavírus.
O governo alemão, como outros congêneres, passou boa parte do século 20 se desfazendo de participações em empresas, só permanecendo acionista em antigos monopólios estatais, como os correios (Deutsche Post), a telefônica Deutsche Telekom e o Commerzbank, cujas ações foram adquiridas durante a crise financeira global de 2008. A própria Lufthansa, fundada em 1953, iniciou seu processo de desestatização nos anos 60 e foi totalmente privatizada em 1997.
Mas o impacto do coronavírus na tessitura social logo deixou claro ao governo da chanceler Angela Merkel que as empresas e os cidadãos não seriam capazes de sair das crises sanitária, social e econômica sem a ajuda do Estado.
Por essa razão, o primeiro grande conjunto de medidas de combate ao coronavírus, aprovado em março desse ano pelo Parlamento, previu um "pacote de proteção social" (Sozialschutzpaket) para auxílio emergencial às pessoas físicas e jurídicas mais duramente afetadas pela pandemia, bem como a criação de um fundo de estabilização econômica (Wirtschaftsstabilisierungsfond), de 100 bilhões de euros, destinado a ajudar na recuperação de grandes empresas.
E, dentre as medidas previstas, já constava, ao lado da concessão de garantias estatais, a participação acionária temporária do poder público como forma de ajudar grandes empresas a se recuperar do sintoma mais agudo do SARS-CoV-2: a crise econômica, que ameaça levar à ruína companhias dos mais diversos setores.
Dessa forma, a participação acionária do governo alemão na Lufthansa tem sido vista como a colocação em prática dessas medidas e como o cumprimento da promessa da chanceler de que o Estado não deixaria ninguém só.
O acordo de participação acionária é, em essência, um pacote de resgate ou salvamento (Rettungspaket) para a companhia, pois teve o claro objetivo de evitar a falência da empresa, duramente afetada pelas medidas de isolamento social, como, aliás, todas as companhias aéreas.
Apenas para se ter uma ideia da dimensão dos prejuízos econômicos amargados pela empresa, estima-se que a Lufthansa vem perdendo em torno de 1 milhão de euros por hora (!) desde o cancelamento em massa dos voos domésticos e internacionais.
Em abril último, a companhia transportou cerca de 3 mil passageiros, uma redução brutal em relação aos 350 mil no mesmo período do ano anterior. 95% da frota permanece parada em decorrência das proibições de viagens impostas em várias partes do mundo para conter a disseminação da doença.
Para completar o quadro clínico dramático, a empresa ainda terá que desembolsar aproximadamente 1,8 bilhões de euros a passageiros por estornos de voos1. E, com a flexibilização gradual das restrições, a previsão é de que apenas 160 das 760 aeronaves voltem a circular2.
Ciente da prolongada redução de suas atividades, mesmo após a suspensão das medidas de shutdown, a empresa negociou intensamente com o governo e representantes da Comissão Europeia a ajuda necessária para sobreviver ao período de vacas magras, que se avulta no horizonte.
Até que em 25.5.2020, as partes chegaram a consenso acerca dos pontos do acordo, que prevê a ajuda de 9 bilhões de euros do governo alemão para a companhia.
Mas o socorro teve inúmeras condições. E, em troca do auxílio financeiro, a empresa assumiu inúmeros compromissos, dentre os quais o de devolver o dinheiro aos contribuintes e assegurar os postos de trabalho para evitar demissões em massa3.
Trata-se do maior resgate corporativo realizado pelo governo alemão desde o início da crise do coronavírus.
O governo justificou o auxílio alegando que a Lufthansa representa uma parte importante da infraestrutura crítica do país e, por isso, é interesse nacional a intervenção do Estado para a estabilização da empresa, que antes da pandemia se encontrava operacionalmente saudável e rentável.
As bases do acordo
Com o acordo, o governo alemão, além de adquirir a participação de 20% das ações da empresa, ainda injetará 5,7 bilhões de euros em capital sem direito a voto, uma espécie de participação silenciosa na empresa, que poderá, entretanto, ser convertida em uma participação acionária adicional de 5%, com a qual terá poder de veto contra aquisições hostis.
Esse foi, aliás, um dos objetivos principais do governo, ou seja, evitar que a empresa, crucial para a infraestrutura da Alemanha, fosse vendida a investidores estrangeiros, que passariam a ter o controle sobre a companhia.
Isso reflete uma preocupação acentuada após a pandemia, quando o coronavírus provocou a queda dos mercados financeiros e o baixo preço das ações de diversas empresas listadas nas bolsas de valores.
De fato, as notícias dão conta que companhias e governos, cônscios de seu papel estabilizador das disrupções no mercado, estão preocupados com aquisições indesejadas de capital social de empresas estratégias por investidores estrangeiros, principalmente fundos de investimento, que, segundo consta, pretendem aproveitar o momento de crise e preço baixo das ações para ir às compras.
Especula-se que os fundos de investimento disponham de cerca de US$ 1 trilhão para gastar na aquisição de ações a fim de assumir de facto o controle de importantes companhias em diversos países4.
De forma simplista, pode-se dizer que a aquisição hostil ocorre quando uma companhia, listada na bolsa de valores, é adquirida por outra companhia ou por grande investidor sem o consentimento da diretoria da empresa adquirida, visando, em regra, assumir seu controle acionário.
E, em tempos atuais, tem surgido um componente explosivo a essa fórmula: a aquisição por motivações políticas, o que tem levado empresas e governos a criar mecanismos de defesa contra esse tipo de aquisição.
Na Espanha, um dos países mais castigados pela Covid-19, o governo impediu a compra por estrangeiros de mais de 10% do capital social de companhias estratégicas. Nos EUA, as próprias empresas já estão comprando nas bolsas suas ações a fim de impedir o avanço dos fundos de investimentos.
Esse é um problema que pode surgir no Brasil se o país entrar no radar dos investidores estrangeiros, famintos por oportunidades baratas em empresas de infraestrutura e telecomunicações. As companhias já estão com as antenas ligadas, mas resta saber se o governo vai seguir o exemplo europeu e proteger áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional.
No caso da Lufthansa, esse foi, como dito, um dos pontos cruciais no processo de negociação da participação acionária do Estado na companhia, pois o governo alemão queria ter poder de veto contra aquisições hostis, inclusive para proteger milhares de empregos.
Retornando aos termos do acordo celebrado com a Lufthansa, cabe mencionar ainda que o governo alemão ocupará assentos no Conselho de Administração e no Comitê de Auditoria da companhia. A ideia não é intervir no dia-a-dia da empresa, mas protegê-la contra aquisições hostis e controlar a aplicação dos recursos para que a operação não se transforme em um saco sem fundo.
Dentre as obrigações assumidas pela companhia, destaca-se a renovação da frota de forma mais benéfica aos consumidores, a renúncia a pagamentos futuros de dividendos e limites de pagamento a seus executivos5, medidas que, por sinal, têm sido sugeridas no mundo corporativo para combater os efeitos da Covid-19.
Por pressão da Comissão Europeia, a companhia deve ainda ceder direitos de pouso e decolagem, nos aeroportos de Munique e Frankfurt am Main, a empresas aéreas concorrentes. Trata-se do chamado slot, que indica a faixa de tempo e espaço que a companhia aérea utiliza para os procedimentos de decolagem e aterrisagem.
As medidas de estabilização da Lufthansa incluem, por fim, um empréstimo de três anos no valor de 3 bilhões de euros do banco estatal KfW (equivalente ao BNDES) e de instituições bancárias privadas.
A participação estatal na Lufthansa tem caráter temporário e se limitará ao período necessário para que a empresa se recupere do baque econômico sofrido com a pandemia. O momento exato ainda é incerto e vai depender do desenvolvimento da empresa, mas o governo estima vender sua participação social até o final de 2023, quando a companhia estiver rentável novamente.
Por isso, ao lado do pacote de medidas estabilizadoras, companhia e o governo pretendem planejar em breve a estratégia de saída (Exit-Strategie) do quadro de acionistas.
Mas o grande obstáculo tem sido a Comissão Europeia, que precisa aprovar ao acordo. De fato, Bruxelas tem feito exigências visando a proteção da concorrência no mercado interno europeu, como a controvertida cessão de direitos de pousos e decolagens a concorrentes nos principais aeroportos da Alemanha. O objetivo é evitar que os pacotes emergenciais de ajuda financeira dos estados provoquem distorções desproporcionais à concorrência.
O setor aéreo pede socorro
Seguindo o exemplo da Lufthansa, outras grandes companhias aéreas, como o consórcio Air France-KLM e as norte-americanas United e Delta Airlines, estão buscando ajuda junto a seus governos para superar os efeitos colaterais da pandemia6.
O mesmo deve acontecer por aqui, pois o caos financeiro do setor aéreo tem dimensão global.
Aliás, uma das peculiaridades dessa crise é que o vírus tem provocado disrupções e colapsos em diversos setores nos quatro cantos do planeta e não apenas de forma local. Ou seja: os problemas são os mesmos, ainda quando agravados por condicionantes locais.
A grande dúvida aqui parece ser se o Estado brasileiro - que tem defendido a bandeira da intervenção mínima na economia, como dá provas a Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019) - vai adotar medidas efetivas e protetoras de setores estratégicos para o país.
A realidade sempre se impõe e é fato inegável que o coronavírus tem exigido, em todo o mundo, a intervenção estabilizadora do Estado na economia. O Velho Continente tem dado bons exemplos de como concretizar o Estado social e democrático de Direito em tempos de pandemia, até porque lá o laissez-faire, laissez-passer é um capítulo superado da história.
Vale lembrar as palavras de Judith Martins Costa que, perguntada sobre a adequação da LLE à onda intervencionista imposta pelo coronavírus, afirmou que "a pandemia mostrou-nos agora o grande equívoco dos seus fundamentos axiológicos. É uma lei que anda na contramão da História e, no meu modo de ver, natimorta"7.
Por ironia do destino, o coronavírus mais parece, entre nós, uma revolta dos fatos contra a lei.
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1 Bundesregierung und Lufthansa einigen sich auf Staatshilfe-Paket. Süddeutsche Zeitung, 25/5/2020.
2 Lufthansa e governo alemão acertam pacote de resgate de 9 bilhões de euros. Deutsche Welle Brasil, 26/5/2020.
3 Bundesregierung und Lufthansa einigen sich auf Rettungspaket. Der Spiegel, 25/5/2020.
4 Empresas se protegem de tentativas de tomar controle. O Globo, 20/4/2020.
5 Corona-Hilfspaket für Lufthansa steht: Droht nun ein Konflikt mit der EU? Legal Tribune Online, 26/5/2020.
6 Lufthansa e governo alemão chegam a acordo para ajuda de € 9 bilhões. Forbes Brasil. Acesso: 8/6/2020.
7 Entrevista à coluna German Report. Migalhas, 2/6/2020.