German Report

Auxílio social recebido durante a pandemia é impenhorável

Auxílio social recebido durante a pandemia é impenhorável.

12/5/2020

As medidas governamentais de combate à pandemia de Covid-19, principalmente o isolamento social e a paralização de atividades econômicas não essenciais, têm provocado impactos das mais diversas ordens na vida das pessoas e na sociedade como um todo.

Há poucos dias, o Prof. Dr. Christoph Schönberger, da Universidade de Konstanz (Alemanha), em Editorial da revista Juristische Arbeitsblätter, alertava para os efeitos maléficos da pandemia sobre a democracia, em decorrência das restrições às liberdades fundamentais, as mais profundas já implementadas desde o período do pós-guerra.

Diz ele que o simples fato das pessoas não poderem mais se reunir, seja para fazer manifestações, seja para entrar juntas em comunhão com Deus ou simplesmente para bater papo nos bares subtrai um pouco da base social da democracia, ancorada na interação diária dos cidadãos1.

O mesmo se diga em relação às sessões (presenciais) parlamentares, suspensas por conta do alto risco de contágio. É no Parlamento onde os cidadãos, fisicamente ausentes, se fazem representar pelos parlamentares para discutir e decidir medidas importantes para o país.

Por essa razão, o Parlamento representa, segundo Schönberger, o coração da organização estatal democrática, sendo sua conservação imprescindível para a vitalidade da democracia2.

Essa discussão serve para mostrar que os impactos da pandemia de Covid-19 são muito profundos e multifários, não se restringindo, em absoluto, às repercussões sociais, econômicas ou jurídicas, apenas as mais evidentes no auge da crise.

Sob o aspecto econômico, é certo que todos estão a sofrer, em maior ou menor medida, os impactos das medidas de combate à pandemia. Mas inegável que são os profissionais liberais e as pequenas empresas os mais duramente afetados pelas determinações governamentais.

Não por acaso, estados de diversos países estão elaborando planos de ajuda e recuperação, bem como concedendo subsídios a essas pessoas a fim de garantir que elas tenham um mínimo para sobreviver durante o período agudo de crise.

Nesse sentido, na Alemanha, o Parlamento aprovou lei concedendo auxílio social a profissionais liberais e pequenas empresas, cujos valores variam de 9 mil a 15 mil euros3 e no Brasil, a lei 13.982/2020 criou auxílio emergencial mensal no valor de R$ 600,00, pelo período de três meses, para trabalhadores informais, microempreendedores individuais, contribuintes individuais da Previdência Social e desempregados.

Foi exatamente esse auxilio governamental que um consultor tributário pretendeu penhorar para quitar dívida resultante de serviços de consultoria prestados e não pagos. O caso ocorreu em Colônia.

O empresário possuía débito em aberto com o consultor referentes a honorários por serviços prestados nos anos de 2014-2015.

Tão logo a ajuda social foi depositada na conta bancária do devedor, em 2.4.2020, o consultor requereu a penhora de parte dos 9 mil euros.

O empresário alegou, em defesa, que está com suas atividades paralisadas desde o início das medidas de contenção da pandemia e que aquela quantia era indispensável à própria subsistência e de sua família.

O consultor manifestou-se novamente nos autos alegando que o empresário não merecia proteção, pois possuía um automóvel de razoável valor, podendo muito bem quitar suas dívidas.

O juiz da Comarca de Bergisch Gladbach deu razão ao devedor, razão pela qual os autos subiram ao Landgericht de Colônia.

Trata-se do processo LG Köln Az. 39 T 57/20, julgado em 23.4.2020.

Segundo a decisão, a ajuda emergencial do governo tem por fim primordial garantir a existência econômica mínima das pessoas e ajudar as pequenas empresas a superar os gargalos de liquidez enfrentados durante o período agudo de crise, evitando a falência.

Essa destinação constava expressamente do ofício no qual o Município liberava o valor, no qual lia-se – preventivamente – expressa proibição ao banco, no qual o numerário seria depositado, de realizar qualquer compensação de dívidas.

No documento constava que "a ajuda imediata outorgada tem que ser utilizada, em sua totalidade, para a compensação das dificuldades econômicas diretamente provocadas pela pandemia do coronavírus. A V. Sa., enquanto receptor(a), cabe a decisão de avaliar quais as dívidas de alta relevância para assegurar sua existência (ex: débitos de aluguel, de fornecedores) e, dessa forma, utilizar prioritariamente essa subvenção".

E, reforçando o fim visado pelo legislador emergencial, o ofício da autoridade outorgante afirmava: "A ajuda imediata se dará com o pagamento único por três meses, exclusivamente para amenização da situação financeira emergencial da empresa ou do profissional autônomo afetado em conexão com a pandemia de Covid-19. A ajuda imediata serve principalmente para superar os gargalos de liquidez, surgidos desde 1 de março de 2020, conexos à pandemia de Covid-19. Não compreendem as dificuldades financeiras ou de fornecimento anteriores a 1 de março de 2020".

Por isso, a sentença de primeiro concluiu pela vinculação do auxílio à finalidade prevista na lei, negando consequentemente o pedido de penhora feito pelo credor.

O Landgericht Köln, em sua decisão, sublinhou que a vinculação do crédito a um fim específico não precisa, contudo, ser deduzida diretamente da lei, como ocorre comumente em normas outorgantes de subsídios estatais.

"Ela [vinculação ao fim] pode resultar da natureza da relação jurídica e, em casos de prestações públicas, das disposições administrativas que estabelecem as normas ou que as interpretam... Segundo esse critério, a ajuda imediata do corona, como o juízo de primeiro grau corretamente reconheceu, deve ser entendida, sem mais, como vinculada à finalidade, pois ela serve comprovadamente ao fim mencionado de garantir a existência econômica do favorecido e para superar os gargalos atuais de liquidez, decorrentes da pandemia de corona", disse a Corte.

Dessa forma, o LG Köln reconheceu que o consultor não estaria protegido, enquanto credor, pela vinculação específica do auxílio emergencial e que esse auxílio não se presta à satisfação de dívidas anteriores do beneficiário, mas sim, em princípio, a fazer frente aos atuais custos operacionais da empresa ou às necessidades elementares dos profissionais liberais.

Isso, por si só, exclui e afasta quaisquer medidas executivas dos credores, enquanto essas forem inconciliáveis com a finalidade do auxílio emergencial. O LG Köln deixou em aberto se caberia penhora por dívidas atuais oriundas de contratos de locação, leasing ou fornecimento.

De qualquer forma, a penhora do auxílio estatal por dívidas não relacionadas à pandemia de Covid-19 contrariaria o fim da norma, a vontade do legislador e seria extremamente injusta, concluiu o Landgericht Köln.

Da decisão ainda cabe recurso, mas ela se ampara em argumentos bem estruturados, que levam em conta a situação de dificuldade financeira de pessoas físicas e jurídicas em decorrência da pandemia de Covid-19, bem como a finalidade de proteção da lei e do auxilio emergencial, qual seja, garantir o mínimo existencial àqueles mais afetados pela crise financeira, decorrente da crise pandêmica.

Nesse sentido, ela serve de reflexão entre nós para quando o Judiciário brasileiro se deparar com pedidos de execução e penhora sobre valores recebidos a título de ajuda emergencial, os quais, infelizmente, ainda não estão chegando – por gargalos político-burocráticos – a seus destinatários.

A ressaltar, ainda, que a decisão não afastou tout court todas as medidas executórias, mas apenas aquelas incompatíveis com a finalidade última do auxilio emergencial, o que deixa margem para discussão acerca da penhora por débitos essenciais, como as dívidas alimentares.

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1 Die Demokratie in den Zeiten der Pandemie. JA Editorial 5/2020, p. 1.

2 SCHÖNBERGER, Christoph. Op. cit., p. 2. As palavras de Schonberger ecoam com mais intensidade por aqui diante das repetidas agressões às instituições, liberdades e valores democráticos que se está presenciando em tempos recentes no Brasil. O último ataque foi a agressão a jornalistas no dia 3.5.2020, quando se comemora o Dia da Liberdade de Imprensa, o que causou reação de repúdio por parte do STF e do Senado. Confira-se, dentre outras, a matéria: Toffoli: „Não há solução para a crise fora da democracia“. O Globo, 7.5.2020.

3 Confira-se a Lei alemã do coronavírus.

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15