Dando seguimento à análise da chamada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia de COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), na coluna de hoje analisa-se mais uma importante medida, de relevante cunho social, introduzida pela lei emergencial alemã: as alterações nos contratos de longa duração.
Como dito em outra oportunidade, a lei da covid-19, aprovada em 27.3.2020, faz parte de um pacote de medidas elaborado pelo governo alemão, que abrange alterações pontuais e temporárias nos campos do direito civil, falimentar, societário e processual penal.
Na semana passada, analisaram-se as novas regras vigentes para os contratos de locação residencial e comercial.
Em suma, elas suspendem o direito do locador de promover ação de despejo ou de denunciar o contrato por falta de pagamento dos alugueis vencidos durante no período de abril a junho de 2020, desde que a inadimplência do devedor tenha sido causada pelas medidas proibitivas de circulação ou de restrição à atividade econômica, impostas para o combate da proliferação da covid-19 (clique aqui).
Além dessa medida, de evidente cunho social, outra sensível alteração no direito civil, mais especificamente no direito contratual, foi a introdução do direito temporário do devedor de recusar o cumprimento da prestação de contratos de longa duração.
O art. 5 § 1 (1) da lei fala expressamente em Leistungsverweigerungsrecht, i.e, em direito de recusar [o cumprimento] a prestação, de caráter temporário e excepcional.
Trata-se, em suma, de uma moratória e o mencionado § 1 do art. 5 da lei usa a expressão Moratorium, atípica na língua alemã, que encontra em Stundung seu correspondente.
Essa moratória não se aplica a qualquer contrato, mas apenas aos de longa duração e, dentre esses, apenas àquelas relações contratuais essenciais à manutenção da existência das pessoas ou à adequada continuidade das empresas de pequeno porte (ex: energia, gás, água, telefone e internet, etc.).
Pressuposto fundamental, portanto, para a concessão da moratória é a essencialidade da prestação para as pessoas físicas e os pequenos empresários.
Além disso, o devedor deve demonstrar, num juízo de razoabilidade, que a impossibilidade temporária de cumprimento da obrigação decorreu diretamente das medidas governamentais de combate à pandemia de covid-19.
Não se trata de um dever absoluto de prova de toda a cadeia causal, mas de demonstrar a verossimilhança das alegações.
Assim, presume-se a causalidade quando o devedor mostra ter dificuldades ou estar impedido de exercer sua atividade profissional ou que houve queda significativa em sua renda ou receita, de modo que o adimplemento colocaria efetivamente em risco sua sobrevivência econômico-financeira. Da mesma forma, a comprovação de que a falta de pessoal ou de materiais, decorrente da proibição de circulação, o impede de realizar a prestação.
Obviamente, problemas outros, não decorrentes da crise pandêmica, mas a essa eventualmente até anteriores, não autorizam o devedor a pleitear a moratória.
A moratória só se aplica a contratos celebrados antes de 8.3.2020, termo inicial em que os agentes de saúde pública na Alemanha começaram a determinar o confinamento obrigatório da população e o fechamento de diversos estabelecimentos comerciais no país.
Note-se que, como noticiado em outro canal, o recolhimento da população não tem na Alemanha caráter meramente exortativo, mas obrigatório, estando sua transgressão sujeita a pena de multa ou prisão1.
Como se trata de lei emergencial temporária, o prazo da moratória inicia-se em 1.4.2020, data da entrada em vigor das novas regras sobre contratos de longa duração2, e finda em 30.6.2020, nos termos do já mencionado art. 5 § 1 (1) da apelidada Corona-Gesetz.
Ou seja, o devedor tem um prazo de três meses para respirar diante da dificuldade financeira provocada pela pandemia do novo coronavírus.
A lei permite ao governo, porém, prorrogar por decreto a moratória até 30.9.2020 se a vida social, a atividade econômica de várias empresas ou a atividade profissional de muitas pessoas continuar a sofrer consideráveis restrições através da pandemia de covid-19, nos termos do art. 5 § 4 (1) 2 da mencionada lei.
O art. 5 § 1 (3) da Corona-Gesetz prevê, contudo, que a moratória não será permitida quando pôr em risco – efetivamente – a sobrevivência do credor, só restando ao devedor, nesse caso, optar pelo desfazimento do contrato.
Em respeito à autonomia privada, o art. 5 § 1 (5) da lei permite que as partes contratantes negociem uma solução diversa paga o cumprimento desses contratos, desde que isso não implique em desvantagens para o devedor.
Isso significa dizer que a moratória legal de três meses tem caráter subsidiário.
Dessa forma, em síntese, a moratória legal incide sob os seguintes pressupostos: (a) em contratos de longa duração essenciais para consumidores e pequenas empresas, (b) celebrados antes de 8.3.2020, (c) desde que as medidas de combate à covid-19 dificultem o cumprimento da prestação, (d) colocando em risco a subsistência do devedor e (e) o credor tenha condições financeiras de suportar a moratória, e, por fim, (f) desde que as partes não tenham acordado solução diversa.
Disso se conclui que não se trata da institucionalização de um "direito ao calote", mas tão somente de garantir ao devedor prejudicado o direito de adiar o cumprimento de importantes prestações em face da crise econômica provocada pela pandemia de covid-19.
E isso apenas para aqueles contratos mais fundamentais para a sobrevivência econômica dos consumidores e das pequenas empresas, assim definidas em lei.
Essa medida se justifica pela evidente dificuldade financeira que as pessoas físicas e jurídicas estão passando em decorrência das medidas governamentais adotadas para a contenção e o combate da propagação da pandemia de covid-19.
Essas medidas deram causa imediata à paralização ou restrição do exercício das atividades profissionais por milhares de pessoas e das atividades econômicas das empresas, afetando em cheio as empresas de pequeno porte, que não possuem gordura financeira suficiente para suportar sequer o período de três meses de confinamento da população e restrição da atividade comercial.
A lei emergencial tem, portanto, nítido caráter social e solidário, exigindo o sacrifício de ambos os contratantes com o fim exclusivo de postergar – não de exonerar – o cumprimento das obrigações.
A situação no Brasil
No Brasil, o Senado Federal aprovou na sexta-feira passada, dia 3.4.2020, o PL 1.179/2020, elaborado por uma comissão de juristas sob a coordenação do i. Min. Antônio Carlos Ferreira (STJ) e do Prof. Dr. Otávio Luiz Rodrigues Junior (USP), atendendo a iniciativa do e. Min. Dias Toffoli (STF).
O Projeto de Lei dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus.
O Projeto será agora analisado na Câmara dos Deputados e, se aprovado, fará alterações legislativas pontuais, mas importantes, no âmbito do direito civil, consumidor, societário e concorrencial, algo similar – pelo menos, em sua estrutura – ao que foi feito pela lei alemã do coronavírus.
No campo contratual, que aqui interessa, o Projeto foi aprovado amputado de importante alteração inicialmente prevista para os contratos de locação: a suspensão do pagamento dos alugueis até 30.10.2020, data em que – presume-se – estariam afastadas as restrições à liberdade de locomoção e ao exercício da atividade econômica, impostas pelo combate à pandemia.
Fora os contratos locatícios, o PL 1.179/2020 regulou os contratos de consumo para decretar a suspensão do direito de devolução – consagrado no art. 59 do Código de Defesa do Consumidor – de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, adquiridos para entrega domiciliar (delivery), como consta de seu art. 8o.
Algumas emendas apresentadas ao Projeto de Lei visaram proteger os consumidores de contratos essenciais de longa duração.
Assim, por exemplo, a Emenda 31, da Senadora Zenaide Maia, propôs a inclusão de dispositivos proibindo a suspensão – até 30.10.2020 – do fornecimento de água, energia elétrica, gás e serviços de telefonia e internet.
A proposta foi, contudo, rejeitada pelo Senado ao argumento de que os contratos de serviços essenciais inserem-se no campo do direito administrativo, escapando ao escopo da proposição, que se limitaria a matérias específicas de direito privado3.
Os arts. 6, inc. X e 22 do Código de Defesa do Consumidor, entretanto, tratam da prestação de serviços públicos em geral, atraindo essas relações contratuais para o âmbito de incidência da lei consumerista, de caráter preponderantemente privado.
Talvez por isso a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não vacile em aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de serviços essenciais.
Pela mesma razão, Alemanha (art. 5 § 1 (1) da lei do coronavírus) e Espanha (art. 29 do Real Decreto-ley 11/2020) trataram de regular esses contratos essenciais de longa duração em suas leis que disciplinam, em caráter temporário e emergencial, certas relações jurídicas de direito privado.
O art. 5 § 1 (1) da lei alemã tem em vista regular justamente tais contratos, os quais são essenciais para a preservação da existência digna das pessoas e para o funcionamento básico das empresas.
A Exposição de Motivos (Begründung) da lei é expressa ao dizer que a moratória de três meses visa evitar que consumidores e pequenas empresas, os mais duramente afetados pela crise do coronavírus, sejam privados da prestação de serviços essenciais como energia, gás, telecomunicações em geral e água4, sendo certo que se trata de conceito jurídico indeterminado apto a abranger, no caso concreto, outros situações contratuais.
Dessa forma, é de lamentar que o Senado tenha perdido a oportunidade de inserir disposições específicas sobre o tema no PL 1.179/2020, principalmente diante do consenso mundial de que a crise pandêmica provocou a crise econômica que já se inicia, impedindo muitos consumidores, bem como micros e pequenas empresas, de continuar a honrar seus compromissos durante esse período virulento.
Essa é uma realidade inegável, que afeta o mundo inteiro.
Em briefing à imprensa, a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, afirmou semana passada que a pandemia de covid-19 criou uma crise financeira "como nenhuma outra" e que o mundo já entrou em recessão5.
Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do FMI e ex-presidente do Banco Central da India, comentando as ações coordenadas de bancos centrais no exterior de cortar as taxas de juros, disse ser necessária uma interferência estatal em favor das pessoas nesse momento, porque elas não têm dinheiro guardado e nem podem sair para trabalhar6.
A Exposição de Motivos do Real Decreto-ley 11, promulgado na Espanha em 31.3.2020, afirma expressamente que a crise sanitária está tendo um impacto direto na economia e na sociedade, na cadeia produtiva e no dia-a-dia dos cidadãos, bem como nos mercados financeiros.
Além do impacto sobre a economia global, a Exposición de Motivos reconhece um fato aparentemente incontestável: que as medidas governamentais de contenção da pandemia implicam a redução da atividade econômica e social, de forma temporária, para o tecido produtivo e social, restringindo a mobilidade e paralisando as atividades de numerosos setores7.
Diante disso, não surpreenderá se a Câmara dos Deputados ao menos reinserir no PL 1.179/2020, ainda que com alterações, a necessária regulação dos contratos de locação, permitindo a suspensão do pagamento dos alugueis se o locador tiver condições financeiras de suportar a moratória, a exemplo do que vem sendo feito na Europa.
__________2 As diversas alterações legislativas, previstas na lei geral do covid-19, entram em vigor em datas diferenciadas, nos termos de seu art. 6.
3 Confira-se o parecer final apresentado pela Senadora Simone Tebet, p. 21.
4 No original: "Damit wird für Verbraucher und Kleinstunternehmen gewährleistet, dass sie insbesondere von Leistungen der Grundversorgung (Strom, Gas, Telekomunikation, soweit zivilrechtlich geregelt auch Wasser) nicht abgeschnitten werden, weil sie ihren Zahlungspflichten nicht nachkommen können".
5 Reportagem no jornal Valor Econômico, de 4.4.2020.
6 Entrevista a Robinson Borges, Valor Econômico, 3.4.2020.
7 Real Decreto-ley 11, de 31.3.2020, publicado no diário oficial espanhol em 1.4.2020, Sec. I, p. 27885.