Como noticiado na semana passada, em primeira mão, aqui no Migalhas, o Parlamento alemão aprovou no prazo recorde de um dia, em 25/3/2020, um conjunto de medidas propostas pelo governo da chanceler Angela Merkel para amenização dos efeitos do coronavírus SARS-CoV-2 no país.
De início, chama atenção já o título do pacote, que não tem a pretensão de aplacar ou controlar os efeitos da pandemia, mas tão só de amenizar e isso revela uma profunda consciência do momento extraordinário que o mundo está vivendo.
E a Alemanha, que já esteve no fundo do poço da história e experimentou crises econômicas sem precedentes, mostrou que sabe bem do que está falando.
O pacote contém várias medidas executivas e legislativas que, no geral, alteram a legislação vigente, em caráter excepcional e temporário, por conta da pandemia do coronavírus. Não se tratam, portanto, de medidas gerais para qualquer epidemia, mas tão só para essa em especial.
Resumidamente, dentre as principais medidas políticas aprovadas destacam-se as seguintes:
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Ajuda financeira a hospitais, clínicas e profissionais envolvidos no combate à pandemia do covid-19
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Concessão de “indenização” aos pais que precisam ficar em casa para cuidar dos filhos em razão do fechamento das escolas e creches, todas praticamente públicas
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Liberação de cerca de 51 bilhões de euros como ajuda imediata a pequenas empresas e profissionais liberais atingidos pelas restrições ao exercício da atividade econômica
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Criação de fundo de estabilização econômica para ajudar na recuperação da liquidez de grandes empresas
A essas medidas somam-se várias leis temporárias nos campos do direito civil, falimentar, societário e processual penal.
A lei – denominada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia do COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht) – foi publicada no Diário Oficial (Bundesgesetzblatt) em 27/3/2020.
No que diz respeito às alterações no direito civil, destacam-se: (a) moratória em contratos de longa duração, de caráter essencial, para consumidores e pequenas empresas em geral, que, na Alemanha, não são consideradas consumidores, embora sejam adequadamente tutelas; (b) moratória em contratos de mútuo celebrados pelas pessoas anteriormente indicadas e (c) suspensão do direito de requerer o despejo e denunciar a locação por falta do pagamento dos alugueis.
Dentre essas medidas, hoje abordar-se-á a quem tem gerado mais polêmica desde a aprovação da lei, qual seja, as alterações no direito de locação.
Alterações no direito de locação
Com a nova lei, o legislador interveio para se antecipar às milhares de ações de despejo e denúncia por falta de pagamento dos alugueis no período da chamada Coronakrise e tentar reequilibrar o mercado locatício, redistribuindo os riscos inerentes aos contratos de locação.
Na justificativa do projeto de lei enviado ao Parlamento, o governo explica que para conter o avanço da pandemia provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi necessário ordenar, em março de 2020, o recolhimento das pessoas em suas residências e determinar o fechamento de inúmeros estabelecimentos, como escolas e creches públicas, restaurantes, bares, cinemas, teatros, escritórios e demais estabelecimentos comerciais e profissionais a fim de evitar a propagação da doença por meio do contato entre as pessoas.
Essas medidas, porém, deram causa à perda considerável de renda por parte de muitas pessoas, que retiram seu sustento – e o de suas famílias – dessas atividades.
Para os inquilinos de imóveis residenciais e comerciais, a perda ou redução considerável da renda coloca-os em situação de extrema vulnerabilidade, pois a legislação vigente permite que o locador promova a ação de despejo após dois meses de atraso, total ou parcial, do aluguel, denunciando a locação, nos termos do § 543, inc. 1 do BGB.
Por isso, é de se esperar que, em decorrência da crise epidêmica, haja um atraso em massa no pagamento dos alugueis e encargos locatícios em função da perda ou redução da renda pelas pessoas físicas e jurídicas.
E, diz o Projeto, apenas uma parte das pessoas afetadas poderá receber as ajudas sociais do Estado como seguro-desemprego e ajuda moradia, de acordo com os requisitos exigidos e a urgência que a situação requer. O mesmo vale para as empresas, que dependerão de ajuda financeira estatal para sobreviver à crise.
Para tentar contornar a situação, a lei proíbe o locador de imóveis residenciais e comerciais de promover o despejo do locatário por eventual falta de pagamento dos alugueis vencidos entre 1.4.2010 a 30.6.2020, período estimado, em princípio, para durar as restrições nas atividades econômicas e a proibição de circulação das pessoas.
Os principais pontos da lei temporária de locação são:
a) Restrição do direito de denunciar a locação
Durante o mencionado período, o aluguel é devido, mas o locador não pode exigir o pagamento e nem denunciar o contrato por esse motivo.
Pressuposto inafastável é que a inadimplência decorra das dificuldades financeiras enfrentadas pelo locatário por conta das medidas excepcionais de combate à pandemia do coronavírus.
Isso significa que os locatários que se virem forçados a deixar de pagar o aluguel, por não possuírem meios suficientes para fazê-lo sem pôr em risco sua subsistência, não sofrerão consequências jurídicas imediatas.
Atente-se que apenas fica suspenso o direito de denunciar o contrato por falta de pagamento das parcelas devidas entre abril e junho de 2020.
Dessa forma, o locador pode promover a denúncia por outros motivos previstos na lei geral, como o uso do imóvel de forma contrária ao acordado ou a necessidade própria efetivamente demonstrada.
b) Caráter supletivo da regra
Em respeito à autonomia privada, essa adaptação contratual prevista na lei tem caráter supletivo, podendo as partes, de comum acordo, negociar e acordar solução diversa, como, por exemplo, a redução do valor do aluguel, com a continuidade regular de seu pagamento.
Entretanto, o art. 5 § 4 (2) da lei ressalva que o acordo não pode prejudicar o inquilino.
Essas regras se aplicam tanto para os contratos de locação (residencial e comercial), quanto para os contratos de arrendamento, nos termos do art. 5 § 4 (3) da lei em comento.
c) Período de inadimplência
Em princípio, o locador só não pode despejar o inquilino em mora por falta do pagamento dos alugueis vencidos no período de abril a junho de 2020 (período de crise).
Entretanto, se esse período não for suficiente para controlar a propagação adequada da pandemia e houver necessidade de que as pessoas permaneçam confinadas e os estabelecimentos fechados, o art. 5 § 4 (1) 2 da lei permite que o governo prorrogue esse prazo, por decreto, até 30/9/2020.
E a justificativa é evidente: ninguém consegue dizer, nesse momento, com segurança, até quando as medidas restritivas da circulação e do comércio serão necessárias para evitar a proliferação desenfreada do novo coronavírus.
d) Período de suspensão do despejo
O locatário que não pagar na data aprazada o aluguel, incorrerá em mora e ficará obrigado a pagar todos os encargos moratórios.
Mas ele não precisará quitar tudo de uma só vez a partir de 1/7/2020, pois isso, à toda evidência, sobrecarregaria enormemente os inquilinos, que durante esses noventa dias antecedentes tiveram suas fontes de renda comprometidas.
Por isso, o art. 5 § 2 (4) da lei concede o prazo de 02 (dois) anos para que os locatários inadimplentes – em relação ao período indicado, i.e., abril a junho de 2020 – quitem suas dívidas junto aos locadores, seja de uma só vez ou de forma parcelada.
Com isso, os inquilinos têm até 30.6.2022 para saldar os débitos surgidos no período de restrição da circulação e do comércio para conter o avanço da pandemia do covid-19.
Isso significa, na prática, que o direito de promover o despejo e a denúncia da locação por falta desses pagamentos só poderá ser exercido pelo locador a partir de julho de 2022.
e) Relação de causalidade
Diante da impossibilidade de quitar o aluguel, cabe ao locatário – nos termos do art. 5 § 2 (1) da lei – demonstrar a verossimilhança de suas alegações, mostrando a relação de causa e efeito entre a pandemia do covid-19 e a ausência da prestação.
A lei fala expressamente em fazer crível essa conexão (Zusammenhang glaubhaft zu machen), o que é algo mais brando do que fazer a prova do nexo causal.
Repise-se que essa regra especial só vale para os pagamentos em aberto no período de crise de três meses indicado.
Dessa forma, se o locatário já estiver em mora ou faltar com o aluguel após a suspensão das medidas restritivas da liberdade econômica e de ir e vir, o locador poderá manusear a ação de despejo normalmente.
f) Beneficiados
Em princípio, todos os inquilinos poderão ser beneficiados pela lei, pois a norma se refere genericamente a locatários.
Na justificativa do Projeto de Lei, o governo fala em pessoas físicas e empresas, sem especificar quais empresas (pequenas, médias ou grandes) estariam contempladas com a possibilidade de, diante de grave dificuldade econômica, suspender temporariamente o pagamento dos alugueis.
Diante da generalização legal, conclui-se que qualquer locatário poderá ser contemplado desde que demonstre a impossibilidade de pagar os alugueis em razão das circunstâncias de combate à pandemia.
Primeiras críticas à lei
As primeiras críticas à lei do coronavírus já começaram a surgir.
Parte delas foi desencadeada quando grandes empresas – como Adidas, Puma e a sueca H&M, que faziam lucros enormes até então – anunciaram a suspensão do pagamento dos alugueis por estarem sem entradas em decorrência do fechamento de suas lojas físicas.
In continenti, a Ministra da Justiça, Christine Lambert, representando o governo, classificou de imoral e inaceitável as declarações dos conglomerados, frisando que a lei visa ajudar apenas as empresas que realmente não tenham condições de pagar o aluguel e não aquelas que só estão preocupadas com a redução dos lucros.
Isso ainda mais se justifica diante do crescimento exponencial das vendas onlines e, principalmente, porque a lei do coronavírus não fornece base legal para o comportamento abusivo dessas empresas, antecipou a Ministra da Justiça.
Todos precisam fazer sacrifícios, principalmente aqueles que possuem gordura suficiente para enfrentar a crise, disse1.
Diante da chuvarada de críticas à postura egoísta e antisolidária, a Adidas voltou atrás e afirmou que não irá suspender o pagamento aos locadores pessoas físicas, mas apenas os alugueis devidos a imóveis pertencentes a grandes fundos imobiliários e seguradoras.
O episódio, contudo, mostrou uma fragilidade da lei de emergência: a falta de critérios mais rígidos para a suspensão do pagamento dos alugueis pelas empresas.
Sem isso, corre-se o risco que grandes empresas tentem abusar do permissivo legal por razões meramente oportunistas.
Outro ponto criticado é que a lei jogaria o problema da crise nos ombros dos locadores.
Na visão do governo, porém, não há transferência de ônus aos locadores, vez que os locatários terão que pagar os alugueis atrasados com os encargos moratórios.
Trata-se apenas de impedir temporariamente que milhares de locadores sejam despejados num momento em que eles têm suas fontes de rendas comprometidas pelas medidas de combate ao coronavírus.
O que se pretende, em última análise, é impedir que a crise do coronavírus provoque uma crise de moradia, que atinja mutatis mutandis as empresas, dificultando ainda mais a recuperação econômica do país.
Para o governo, a pandemia do coronavírus colocou à sociedade alemã o grande desafio de ser solidária, pois, no fundo, trata-se de concretizar o mandamento da solidariedade, dividindo entre as partes os riscos da crise epidêmica.
Parece evidente que o mesmo pode-se dizer para a sociedade brasileira. A questão é: somos de facto uma sociedade solidária?
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1 Confira-se a matéria: Adidas will zumindest privaten Vermietern die Miete zahlen, publicada no jornal Die Welt, em 29/3/2020 Acesso: 29/3/2020.