BVerfG libera familiares de honrar dívida de valor exorbitante
Um dos casos mais emblemáticos acerca da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado é o chamado caso da fiança ou Bürgerschaftsentscheidung, julgado pelo 1o Senado do Tribunal Constitucional Alemão em 19/10/1993.
Trata-se, a rigor, de dois processos: 1 BvR 567/89 e 1 BvR 1044/89, publicados no repertório BVerfGE 89, 214.
A questão central da queixa constitucional era saber até que ponto os tribunais civis podem ser obrigados pela Lei Fundamental (Grundgesetz) a submeter os contratos de fiança, celebrados com instituições financeiras, a um controle de seu conteúdo, quando familiares do tomador do crédito, embora desprovidos de patrimônio, assumiam como fiadores a garantia exorbitante de uma dívida.
Para entender o caso
Na Alemanha da década de 70, era comum que os bancos exigissem que familiares próximos do tomador de um crédito, como esposas e filhos, figurassem como fiadores dos contratos de empréstimos.
Isso geralmente ocorria em empréstimos concedidos a donos de empresas de pequeno e médio porte.
O objetivo não era apenas ampliar a massa patrimonial responsável pelo débito, pois muitos contratos de fiança eram celebrados sem verificação da situação patrimonial do fiador.
O objetivo principal era, na verdade, evitar transferência patrimonial e exercer pressão sobre o tomador do crédito para honrar a dívida, sob pena do chamamento dos familiares fiadores.
A prática era tão intensa que os tribunais civis se ocuparam por quase dez anos com casos de superendividamento de familiares, que não tinham desde o início condições nenhuma de garantir o débito.
As instâncias inferiores não hesitavam, em sua maioria, em fazer um controle judicial do conteúdo desses contratos de fiança.
Uma das linhas de argumentação desenvolvida apoiava-se na cláusula geral dos bons costumes, do § 138 I BGB: seriam nulos, por contrariedade aos bons costumes, os contratos de fiança celebrados com fiadores inexperientes, ligados ao devedor por laços familiares e que, em caso de inadimplência, teriam que suportar uma dívida exorbitante, capaz de aniquilar a própria existência.
A outra linha argumentativa amparava-se na cláusula geral da boa-fé objetiva, prevista no § 242 BGB: faltava nesses contratos informação e esclarecimento suficiente acerca da gravidade do risco assumido pelo fiador, de modo que o banco violava, no mínimo culposamente, os deveres pré-contratuais de informação e esclarecimento, incorrendo em responsabilidade pré-contratual por falhas informativas.
O Bundesgerichtshof, porém, rejeitava os argumentos favoráveis ao controle judicial do conteúdo dos contratos de fiança.
A principal justificativa era que uma pessoa maior sabe, mesmo sem maiores esclarecimentos, que a fiança é um negócio arriscado. Portanto, o banco poderia partir do princípio de que quem assume a garantia de um débito conhece a extensão de sua ação e sabe avaliar seus riscos com responsabilidade.
Esse posicionamento sofria duras críticas da doutrina1 e era desconsiderado em muitos casos nas instâncias inferiores, que não seguiam a tese da Corte infraconstitucional.
Por conta disso, o 11o. Senado do BGH começou a mudar sua jurisprudência na década de 90 para realizar o controle das cláusulas abusivas dos contratos de fiança, celebrados por familiares, desde que comprovado um exorbitante desequilíbrio estrutural no contrato2.
Na maioria dos casos, contudo, a Corte infraconstitucional decidia pela validade do negócio e pela responsabilidade do fiador. Isso fez com que muitos fiadores recorressem ao Tribunal Constitucional alegando ofensa à garantia fundamental da autonomia privada material.
O caso da fiança da filha do armador
O processo BVerfG 1 BvR 567/89 teve origem em primeira instância no Landgericht Stade e foi apreciado pelo Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) Hamburg e, na sequência, pelo BGH, em decisão de 16/3/1989, proferida no processo BGH IX ZR 171/88.
Nesse caso, o pai da autora da queixa constitucional, um construtor, dobrou junto ao banco seu limite de crédito, de 50 mil para 100 mil marcos alemães, colocando a filha, à época com 21 anos, como fiadora.
No contrato de fiança, assinado em 29/11/1982, dentre as inúmeras cláusulas pré-fixadas, constava a assunção de garantia por todas as dívidas existentes e futuras, bem como a renúncia ao benefício da ordem e à exceção de invalidade e prescrição, possível no direito alemão.
O aumento do crédito foi concedido apesar da fiadora não ter patrimônio suficiente para honrar a dívida. Ela não tinha formação definida e ganhava apenas 1.150 marcos por mês em uma fábrica de peixes.
Em outubro de 1984, o pai da fiadora mudou de ramo e virou armador, razão pela qual pegou um financiamento no banco de 1,3 milhões de marcos para a comprar um navio.
Como o empréstimo não foi pago, o banco cobrou 2,4 milhões de marcos da fiadora pelas dívidas do pai.
A filha, então, entrou com ação pedindo a nulidade da fiança. O banco contra-atacou com reconvenção cobrando o pagamento da dívida mais juros.
O banco obteve sucesso em primeira instância. Mas o Tribunal de Justiça de Hamburg reformou a decisão ao argumento de que o banco violara o dever pré-contratual de esclarecimento, incorrendo em responsabilidade pré-contratual por falha informacional.
Na visão do OLG Hamburg, em regra, o credor não precisa esclarecer o fiador acerca dos riscos gerais da fiança. Entretanto, ele responde quando, com seu comportamento, induz a erro o fiador, por exemplo, banalizando a extensão dos riscos e da responsabilidade assumida e, dessa forma, influencia decisivamente a decisão negocial do fiador.
Esse foi o caso dos autos, afirmou o Tribunal de Hamburg, pois o funcionário do banco conhecia a dimensão do risco que a jovem fiadora estava assumindo e, nada obstante, banalizou o negócio afirmando precisar de sua assinatura apenas por uma questão formal.
Em grau de recurso, o BGH suspendeu a decisão do Tribunal de Hamburg e julgou improcedente o recurso interposto pela fiadora.
Ela, então, moveu queixa constitucional alegando, em síntese, que o BGH havia violado seus direitos fundamentais consagrados nos arts. 1, inc. 1 e 2, inc. 1 da Grundgesetz (GG), bem como o princípio do Estado-Social.
Do princípio da dignidade humana, previsto no art. 1 I GG, resulta o dever do Estado de proteger o indivíduo contra necessidades materiais, pois quando o ser humano é obrigado a viver abaixo de condições mínimas de vida, violada resta sua dignidade.
Do art. 2 I GG resulta o dever do Estado de intervir para impedir que empresas dominantes do mercado adotem um comportamento antissocial e abusem de sua liberdade contratual, anulando na prática – e de forma indigna – a liberdade contratual do outro contratante.
Nesse caso, a dívida era tão alta que a fiadora, nesse meio tempo mãe solteira e vivendo de ajuda social do Estado, não tinha condições sequer de pagar os juros mensais do débito.
A decisão do BVerfG
Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 567/89.
De início, o Tribunal Constitucional observou que o caso sob análise tinha particularidades que os distinguia dos casos normais de garantia de crédito, pois desde o início era perceptível para o banco que a fiadora não tinha condições em vida de pagar a dívida, salvo se algum evento extraordinário alterasse sua situação patrimonial.
Ela se obrigou pelo risco da empresa do pai em uma extensão que em muito superava sua situação financeira, disse o Tribunal. Portanto, ela assumiu um risco extraordinariamente alto sem ter qualquer interesse financeiro no crédito assegurado.
Por isso, ela alegou em juízo que o banco violou os deveres pré-contratuais de consideração (vorvertragliche Rücksichtspflichten) e se aproveitou de sua inexperiência comercial em prol de seus próprios interesses.
Nada obstante, observou a Corte constitucional, o BGH não viu razão para realizar um controle do conteúdo contratual.
Com isso, deixou de verificar se – e em que medida – os contratantes realmente decidiram livremente acerca da conclusão e do conteúdo do contrato, o que mostra que o BGH desconsiderou a autonomia privada, garantida nos direitos fundamentais, afirmou o Tribunal Constitucional.
A Suprema Corte assinalou que, de acordo com sua mansa e pacífica jurisprudência, a formação das relações jurídicas pelos indivíduos, segundo suas vontades, constitui um componente da liberdade geral de ação (allgemeine Handlungsfreiheit).
O art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental garante a autonomia privada como a "autodeterminação do indivíduo na vida jurídica", disse o BVerfG.
A autonomia privada, contudo, é necessariamente limitada e precisa de uma moldagem jurídica.
O legislador infraconstitucional precisa moldar a ordem jurídica privada de forma a garantir à autodeterminação do individuo um espaço de atuação adequado na vida jurídica, sob pena dessa garantia jusfundamental (autonomia privada) ser esvaziada.
E ao moldar a autonomia privada, o legislador ordinário está vinculado às diretrizes objetivas emanadas dos direitos fundamentais.
Mas na organização da ordem jurídica privada o legislador enfrenta um problema de concordância prática, diz o BVerfG, pois no comércio jurídico participam titulares de direitos fundamentais de mesmo nível hierárquico, que possuem interesses diversos e perseguem frequentemente objetivos contrapostos.
Como todos os partícipes do comércio jurídico gozam da proteção do art. 2 I GG e podem se socorrer da garantia jusfundamental da autonomia privada, não pode valer apenas o direito dos mais fortes.
Essas posições jusfundamentais em colisão precisam ser analisadas em sua inter-relação e ser limitadas de forma que possuam o máximo de efetividade para todos.
Segundo a Corte Constitucional, no direito contratual, normalmente a compensação adequada dos interesses contrapostos resultada vontade das partes.
Mas se uma parte tem um peso tão considerável, que praticamente pode determinar unilateralmente o conteúdo do contrato, não se pode mais falar em autodeterminação, mas em heterodeterminação, pois o conteúdo do contrato é determinado pelo outro contratante.
O Tribunal ressalta, contudo, que a ordem jurídica não precisa adotar medidas para todas as situações nas quais o poder de negociação de uma das partes é em maior ou menor medida restringido pela outra.
Por razões de segurança jurídica, não pode um contrato ser questionado ou corrigido por qualquer perturbação no equilíbrio negocial.
No entanto, diz a Corte, quando há uma inferioridade estrutural de uma parte face à outra e os efeitos do negócio são extraordinariamente gravosos para a parte mais fraca, a ordem jurídica privada precisa reagir e disponibilizar meios de correção.
Isso decorre da garantia jusfundamental da autonomia privada (art. 2 I GG) e do princípio do Estado Social (art. 20 I, art. 28 I GG).
E, para o Bundesverfassungsgericht, o direito contratual alemão disponibiliza esses instrumentos corretivos, pois, apesar do legislador histórico do BGB/1900 ter partido de um modelo formal de igualdade das partes, o Tribunal Imperial (Reichsgericht), desde cedo, distanciou-se dessa ótica e adotou uma “ética material de responsabilidade social”, como sublinhou Franz Wieacker em seu famoso escrito: Industriegesellschaft und Privatrechtsordnung (1974), ou seja, “Sociedade industrial e ordem jurídico-privada”.
Atualmente, disse o BVerfG, "há amplo consenso de que a liberdade contratual só serve como um meio adequado de compensação de interesses quando existe uma relação de forças equilibradas das partes e que equilibrar a paridade contratual destruída é uma das principais tarefas do direito civil vigente".
Nesse contexto, continua a Corte, "as cláusulas gerais do Código Civil têm significado central. O texto do § 138, inc. 2 BGB exprime isso de forma especialmente clara. Lá são designadas típicas circunstâncias que conduzem necessariamente a uma inferioridade negocial de uma das partes contratuais, dentre as quais sua inexperiência. Se a parte prevalente tira proveito dessa fraqueza para impor seus interesses de forma evidente, isso conduz à nulidade do contrato. O § 138, inc. 1 BGB vincula, de modo geral, o efeito da nulidade à violação dos bons costumes".
E continua a Corte Constitucional: "Efeitos jurídicos diferentes resultam do § 242 BGB. A ciência jurídica do direito civil é, no resultado, unânime no sentido de que o principio da boa-fé objetiva representa um limite imanente ao poder de formação contratual e fundamenta a autorização para um controle judicial do conteúdo do contrato".
Ainda que exista discussão acerca dos pressupostos e da intensidade desse controle conteudístico, diz o Tribunal, para a avaliação constitucional do caso é suficiente saber que o direito vigente coloca instrumentos à disposição do juiz para reagir adequadamente ao desequilíbrio estrutural dos contratos.
Por isso, concluiu o BVerfG, os tribunais civis têm o dever de atentar, na interpretação e aplicação das mencionadas cláusulas gerais, para que os contratos não sirvam como meio de heterodeterminação.
Se os contratantes negociaram um regramento contratual juridicamente equilibrado, desnecessário o controle do conteúdo contratual.
Mas se esse conteúdo for excessivo para uma das partes e manifestamente desproporcional, enquanto equilíbrio de interesses, os tribunais não podem se contentar com a conclusão de que "contrato é contrato", afirmou o BVerfG criticando a justificativa do BGH.
Eles precisam, ao contrário, verificar se o regramento contratual é o resultado de forças estruturalmente desiguais durante as negociações e, eventualmente, intervir, corrigindo o pactuado, através das cláusulas gerais do direito civil.
Como isso será feito e a qual resultado se chegará, é uma questão do direito ordinário, ao qual a Constituição deixa amplo campo de atuação.
Contudo, ocorre a violação da garantia jusfundamental da autonomia privada quando o problema da disparidade contratual é ignorado pelos tribunais ou esses tentam corrigi-lo com meios inadequados.
A decisão atacada do Bundesgerichtshof, concluiu o Tribunal Constitucional, violava essa garantia jusfundamental, pois a fiança celebrada fora vista e valorada como um contrato normal, com interesses correspondentes e riscos perceptíveis e avaliáveis.
Todos os argumentos trazidos pela autora da queixa constitucional, com os quais ela queria comprovar sua fraqueza na fase das negociações, foram afastados pelo BGH ao argumento de que ela era maior de idade e deveria ter se certificados dos riscos por conta própria, disse o BVerfG.
Mas isso é insuficiente. O risco da responsabilidade assumida com a fiança, sem que a fiadora tivesse qualquer interesse pessoal no negócio, foi extremamente alto e extraordinariamente difícil de se avaliar, até para pessoas mais experientes, pois não estava indicado no contrato sequer a base de cálculo dos custos e juros do crédito, nem delimitado pelo quê a fiadora realmente responderia.
É irrealístico imaginar que uma jovem de vinte e um anos, sem qualquer qualificação profissional, identificasse esses riscos antes da contratação.
No caso de uma clara e aguda inferioridade do contratante, é imprescindível ver como o contrato se formou e como as partes, principalmente as estruturalmente superiores, se comportaram.
E, no entanto, o BGH afastou qualquer dever de esclarecimento e alerta da instituição financeira, disse o BVerfG.
Até mesmo a pressão exercida pelo funcionário do banco para que a fiadora assinasse o contrato e a banalização dos riscos foram desconsideradas pelo BGH, afirmou a Corte Constitucional.
Tudo isso não se coaduna com a tutela da autonomia privada, garantida pela Lei Fundamental, de modo a não se sustentar a decisão do BGH, concluiu o Tribunal Constitucional.
Por isso, a Corte proclamou que a decisão do Bundesgerichtshof de 16.03.1989 (BGH IX ZR 171/88) violava a autora da queixa constitucional em seu direito fundamental do art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental, reenviando o processo ao BGH para novo julgamento.
A relevância da decisão
O caso da fiança é considerado na Alemanha o leading case da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito contratual, pois nela o Tribunal Constitucional afastou a validade de um contrato de fiança por ofensa à garantia constitucional da autonomia privada.
Essa decisão teve profunda repercussão na Europa e, na sequência, no Brasil, onde a discussão em torno da eficácia horizontal – direta ou indireta – dos direitos fundamentais teve início após a Constituição de 1988.
No Brasil, a doutrina fornece frequentemente como exemplo de eficácia horizontal (direta) dos direitos fundamentais no direito contratual o bizarro caso do arremesso de anões, diversão que animava os frequentadores de alguns estabelecimentos franceses em pleno século 20.
Aqui, a violação à dignidade da pessoa humana é tão evidente que se dispensa maiores argumentações para justificar a nulidade dos contratos celebrados entre os estabelecimentos comerciais e os anões arremessados.
Bem mais complexos, no entanto, são os casos de fianças de familiares, nos quais as garantias são firmadas formalmente de modo incólume, mas materialmente maculadas pela disfunção da autonomia privada.
Nesses casos mais complexos é que se percebe a solidez argumentativa da teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais, que penetram no ordenamento jusprivado por meio da hermenêutica dos princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
Aqui o Judiciário precisa interpretar, ou melhor, concretizar as cláusulas gerais dos bons costumes e – principalmente – da boa-fé objetiva com seus deveres pré-contratuais de conduta de forma a materializar a autonomia privada, garantida constitucionalmente.
Disso decorre o dever do juiz de efetivar o controle do conteúdo dos contratos marcados por um grave desequilíbrio estrutural entre as partes, como em casos semelhantes ao aqui analisado.
Um excelente precedente a ser estudado aqui no Brasil, com a profundidade que o tema requer.
__________
1 Dentre outros: TIEDTKE. ZIP 1990, p. 413; GRÜN. NJW 1991, p. 925 e REINICKE/TIEDTKE. ZIP 1989, p. 613.
2 Confira-se a decisão BGH NJW 1991, p. 923.