O Bundesgerichtshof proferiu recentemente importante decisão acerca da responsabilidade médica em casos de doação de órgãos. A mais alta Corte infraconstitucional da Alemanha apreciou dois processos que envolviam pedido de indenização por danos materiais e morais de doadores de rim que alegaram não terem sido adequadamente esclarecidos sobre os riscos de dano à sua própria saúde, decorrente da retirada do órgão.
A legislação alemã sobre doação de órgãos
A Alemanha possui, desde 1997, uma lei especial que regulamenta a doação, retirada e transplantação de órgãos e tecidos – a chamada Transplantationsgesetz (TPG) ou Lei do Transplante. Promulgada em 5/11/1997, a lei sofreu sua última alteração recentemente, em 22/3/2019.
A Transplantationsgesetz regula em detalhes o processo de doação de órgãos e tecidos por pessoas vivas e falecidas, estabelecendo um rígido procedimento para a obtenção do consentimento livre e informado do doador, no qual são impostos uma série de deveres aos médicos e instituições envolvidas no procedimento e instituídas sanções penais para determinadas condutas.
Segundo o § 8, inc. 1 TPG, a retirada de rim, parte do fígado ou outro órgão não regenerável só pode ser feita para fins de transplantação em pessoas próximas ao doador, como familiares até segundo grau, cônjuge ou companheiro, noivos ou outra pessoa com clara vinculação pessoal.
O § 8, inc. 2 TPG impõe uma série de rígidos deveres aos médicos, dentre os quais o dever de informar detalhadamente, de forma clara e compreensível, o doador sobre o tipo de intervenção a ser realizada, sua finalidade e as consequências, atuais e futuras, ainda que indiretas, da planejada retirada do órgão para a saúde do próprio doador.
O médico tem que esclarecer o doador ainda sobre os riscos e consequências do transplante para o receptor, as chances de êxito esperadas, bem como sobre quaisquer circunstâncias que reconhecidamente possam ter importância para o mesmo.
Ou seja: tratam-se de rígidos e complexos deveres de informação e, mais que isso, esclarecimento.
Todas as conversas e consultas realizadas entre o médico e o doador e/ou receptor devem ser detalhadamente documentadas e acompanhadas por um médico neutro, que não participará do processo de retirada ou implantação do órgão ou tecido, nos termos do § 5, inc. 2 TPG.
Este, ao final, precisa assinar toda a documentação. Fim da norma evitar que apenas médicos interessados no transplante participem do processo, evitando-se conflitos de interesse, já que o médico interessado na realização da doação poderia forçar o consentimento do doador.
O primeiro caso: doação de rim da filha para o pai
No primeiro processo, proveniente da Comarca de Essen, a autora doou, em 2009, um rim ao pai, que sofria de grave deficiência renal, mas este veio a falecer em 2014 em decorrência da transplantação.
Alegando estar sofrendo da síndrome de fadiga crônica (chronisches Fatigue-Syndrom) e insuficiência renal desde o transplante, a autora processou os médicos e a clínica universitária, onde o procedimento fora realizado.
Ela pediu indenização por danos materiais e morais, bem como o reconhecimento do dever de indenizar danos futuros que possam ainda lhe acometer em decorrência do transplante.
A autora alegou não ter sido suficientemente informada acerca dos riscos à sua própria saúde em decorrência da retirada do rim, nem acerca do alto risco de fracasso do transplante no pai em decorrência da doença base dele.
Isso configuraria, em sua visão, clara violação aos deveres de informação e esclarecimento previstos no § 8, inc. 2, alíneas 3 e 5 da Lei de Transplante. Desse modo, o consentimento emitido apresentava-se apenas formalmente em consonância com o § 8, inc. 2 da Lei de Transplante, mas materialmente desinformado.
Além disso, houve a inobservância do procedimento imposto na Lei de Transplante, que exige, dentre outras coisas, a participação e assinatura de médico neutro no procedimento pré-cirúrgico.
A ação foi julgada improcedente em primeira instância, em sentença de 2.11.2015, tendo sido confirmada pelo Tribunal de Justiça de Hamm, em acórdão de 7.9.2016. Trata-se do processo OLG Hamm I-3 U 6/16, transformado no processo BGH IV ZR 495/16.
Segundo o OLG Hamm, embora tenha havido falha procedimental, pois não houve a presença de médico neutro (o médico indicado tinha ligação com a clínica universitária) durante as consultas pré-cirúrgicas e não tenha sido feito um esclarecimento adequado acerca dos riscos para a doadora e receptor, isso não conduz automaticamente à ineficácia do consentimento da doadora.
Houve, no caso, para o Tribunal a quo um “consentimento hipotético” (hypothetische Einwilligung) da doadora, pois ela não demonstrou de forma plausível que teria desistido da doação se tivesse sido adequadamente informada.
O segundo caso: marido fez doação de rim à esposa
No segundo processo analisado, proveniente do mesmo juízo (BGH VI ZR 318/17), o marido fez a doação de rim à esposa, que sofria de insuficiência renal e fazia semanalmente hemodiálise.
A alegação foi praticamente igual à do caso anterior, ou seja, de ter havido esclarecimento insuficiente acerca dos riscos do transplante e que, desde a retirada do órgão, o autor passara a sofrer da fadiga crônica, que o impedia de levar uma vida normal.
Ele perdeu em primeira e segunda instância pelos mesmos fundamentos: embora tenha havido falha no procedimento pré-cirúrgico, poder-se-ia presumir o consentimento hipotético, vez que ele teria provavelmente realizado a doação do órgão mesmo tendo o médico cumprido seu dever de informar.
A decisão do BGH
O 6o. Senado Civil do Bundesgerichtshof, competente para as questões de direito médico, deu, contudo, provimento a ambos os recursos (Revision) interpostos pelos doadores e ordenou a devolução dos autos ao Tribunal de origem para a fixação do valor da indenização.
Segundo a Corte, o pleito dos doadores não prospera pela simples falha procedimental constatada na fase pré-cirúrgica, ou seja, em decorrência da falta de médico neutro durante as consultas e das assinaturas dos participantes obrigatórios nos protocolos das consultas (§ 8, inc. 1 c/c § 5, inc. 2 TPG).
Embora visem evitar conflitos de interesse entre médico e doador, protegendo esse último contra um consentimento precipitado e garantido a autonomia de sua decisão, essas regras têm caráter eminentemente formal e procedimental, e acompanham, por assim dizer, o dever do médico na preparação do consentimento informado, isto é, na “autodeterminação esclarecida” (informationelle Selbstbestimmung) do doador.
Mas sua inobservância não gera, per se, a invalidade e antijuridicidade (contrariedade ao direito) do consentimento do doador para a retirada do órgão.
Ela pode, entretanto, ser um forte indício de que o paciente não foi devidamente informado e esclarecido pelo médico, o que deve ser avaliado no momento da valoração das provas.
A pretensão dos doadores retira, a rigor, sua legitimidade da falha informativa, disse o BGH.
Apesar de doador e receptor terem assinado um documento onde declaravam ter sidos suficientemente esclarecidos e não terem mais dúvidas sobre todo o procedimento, o documento era apenas um check list sobre determinados esclarecimentos e exames realizados.
Faltava quaisquer referências aos riscos concretos e a circunstâncias especiais dos envolvidos, acerca dos quais os médicos envolvidos teriam efetivamente esclarecido os doadores.
Dessa forma, o BGH conclui que do conteúdo do documento não emanava o esclarecimento necessário àquele caso concreto, apresentando-se apenas formalmente em consonância com os requisitos exigidos pelo § 8, inc. 2 da Lei de Transplante.
Segundo comprovado na instância probatória, a doadora já se encontrava no período pré-operatório com os próprios valores da função renal no limite, não tendo sido corretamente esclarecida acerca dos possíveis e sérios efeitos futuros da retirada do órgão para sua saúde.
Da mesma forma, não fora adequadamente esclarecida acerca do alto risco de fracasso do transplante em seu pai, em decorrência da doença preexistente.
Dessa forma, conclui o BGH, seu consentimento ao procedimento restou maculado pela invalidade e a intervenção em seu corpo, antijurídica.
O argumento dos réus, sufragado nas instâncias inferiores, de que teria havido em ambos os casos um “consentimento hipotético” dos doadores, não encontra aplicação aos casos de transplante de órgãos, disse o BGH.
É bem verdade que doutrina e jurisprudência alemãs admitem a figura do consentimento hipotético na seara do direito médico, de forma que, podendo-se presumir que o paciente teria dado seu consentimento de qualquer forma, ainda quando alertado e esclarecido dos riscos envolvidos, afastada resta a responsabilidade do médico.
Mas a Corte entendeu que a figura não encontra guarida nos casos de transplante, para os quais o legislador teve a preocupação de criar um regime legal especial, de onde não se consegue deduzir a figura do consentimento hipotético.
Assim, não se pode simplesmente querer transportar a figura, desenvolvida no direito da responsabilidade médica, para os casos regidos na Lei de Transplante, acentuou o BGH.
Segundo o Tribunal, a alegação de consentimento hipotético não se deixa justificar na ideia do chamado "legítimo comportamento alternativo" – ou "comportamento alternativo conforme ao direito" (rechtsmäßiges Alternativverhalten) – do direito dos danos, porque a admissão do consentimento hipotético contraria claramente o fim de proteção que se busca alcançar com o elevado nível de esclarecimento exigido nas doações em vida de órgãos, nos termos do § 8, inc. 2, frases 1 e 2 da Transplantationsgesetz.
As rígidas diretrizes de informação e esclarecimento do doador, formuladas conscientemente pelo legislador e sancionadas penalmente no § 19, inc. 1, n. 1 da TPG, têm o claro objetivo de proteger o doador de órgão, evitando que ele cause grave dano a si mesmo.
Elas objetivam, em outras palavras, a "proteção do doador contra si próprio" (Schutz des Spenders vor sich selbst), como formulou precisamente a Corte de Karlsruhe.
E isso tem importância principalmente nas hipóteses de doação de órgãos não regeneráveis.
Como essa só é admitida em casos de pessoas especialmente próximas (§ 8, inc. 1, frase 2 da TPG), o doador se encontra em uma situação de conflito qualificada, pois, na maioria das vezes, sente-se moralmente obrigado a fazer a doação em razão da proximidade com o receptor.
Por isso, qualquer informação sobre os riscos do procedimento pode adquirir extrema relevância para o doador.
Outra não é a razão pela qual a livre vontade do doador deve ser verificada previamente por uma comissão, nos termos do § 8, inc. 3 TPG.
Se fosse possível afastar a responsabilidade com a simples alegação de que o doador teria doado mesmo tendo sido esclarecido dos graves riscos, como base na teoria do legítimo comportamento alternativo ou causalidade hipotética, toda retirada antijurídica de órgãos acabaria sem sanção e os rígidos requisitos exigidos para o esclarecimento do doador restariam esvaziados, o que ainda abalaria a confiança necessária dos potenciais doadores na medicina de transplante.
Dessa forma, a observância dos procedimentos e requisitos de esclarecimento, detalhados na Lei de Transplante, são pressupostos irrenunciáveis quando se quer fomentar, de forma permanente, a disposição das pessoas de doar órgãos em benefício da vida de outrem.
A importância da decisão
A decisão do BGB fortalece consideravelmente os direitos dos doadores vivos de órgãos ao agravar o dever de indenizar ao médico que não esclarece adequadamente o doador sobre os riscos e consequências da retirada do órgão para sua saúde e para a saúde do receptor, em especial sobre a chance de êxito do procedimento, considerando a doença do paciente.
Ela também chama atenção para o dever do médico de documentar detalhadamente as consultas, bem como à participação de médico neutro no procedimento, embora, no caso concreto, isso possa ser relativizado.
Ao afastar o critério do comportamento alternativo legítimo (causalidade hipotética), amplamente utilizado em casos de responsabilidade civil contratual e extracontratual, o BGH reforçou a responsabilidade médica em casos de transplantes de órgãos não regeneráveis feitos por pessoas vivas, as quais se encontram em uma situação de conflito qualificada, pois geralmente se sentem obrigadas a fazer a doação, devido aos laços de afetos com o receptor.
O Brasil tem desde 1997 uma Lei de Transplante (lei 9.434/1997). O Capítulo 3 da lei regula as hipóteses de doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano vivo, estabelecendo no art. 9º que a doação só pode ser feita para fins terapêuticos ou para transplante em cônjuge (e companheiro, agora) ou parentes consanguíneos até quarto grau. A doação para qualquer outra pessoa depende de autorização judicial.
Nossa lei, contudo, não detalha o procedimento pré-cirúrgico e os importantíssimos deveres de informação, esclarecimento e documentação do médico e do hospital, como faz a lei alemã.
Nada obstante, eventuais lacunas relacionadas aos deveres médicos podem – e devem – ser preenchidas com base no princípio da boa-fé objetiva, que vem positivada no art. 422 do Código Civil exatamente em sua função criadora de deveres ético-jurídicos de conduta, os quais devem ser observados antes, durante e depois do procedimento.
Para tanto, crucial se apresenta um lançar de olhos na experiência estrangeira, que tem sido fonte de bons exemplos da aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva e de seus deveres de consideração (Rücksichtspflichten), nova terminologia pela qual a doutrina alemã contemporânea vem denominando os deveres laterais da boa-fé.