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Tribunal de Stuttgart nega guarda compartilhada de animal

Tribunal de Stuttgart nega guarda compartilhada de animal.

30/7/2019

O Tribunal de Justiça (Oberlandsgericht) de Stuttgart, na Alemanha, proferiu polêmica decisão ao negar o pedido de guarda compartilhada de uma cadelinha Labrador, de sete anos de idade, formulado pela ex-mulher após a separação do casal.

O caso

Antes do casamento, o casal resolveu pegar a cadela em um canil público, pagando por ela uma taxa de 450,00 euros. Como todos os animais de estimação na Alemanha precisam ser registrados em instituições cadastradas pelo Governo, o marido colocou seu nome nos documentos do animal, figurando como proprietário, com todos os direitos e obrigações.

Com o registro, todos os animais recebem um número de identificação (uma espécie de carteira de identidade), o qual deve ficar colocado permanentemente na coleira ou ser implantado em forma de chip a fim de que, em caso de perda, o animal – e seu dono – possam ser devidamente identificados.

Segundo a esposa, embora constasse o nome do marido nos documentos do animal, era ela quem cuidava diariamente de Lilly – nome fictício dado pela imprensa, diante do sigilo dos dados das partes. Ela a tratava praticamente como filha, mas quatro anos após o casamento, veio a separação e o marido ficou com a cadelinha na antiga residência do casal.

Nove meses depois, a ex-mulher requereu o direito de ficar com Lilly todo final de semana, das 9h da manhã de sábado até as 18h de domingo. O casal chegou a fazer um acordo fixando normas para a convivência da mulher com o animal, aos moldes do que é feito em relação aos filhos. Mas o "acordo de visitação" não durou muito tempo em razão de desentendimento entre as partes.

A disputa judicial

A ex-mulher, então, pediu judicialmente a guarda definitiva do animal, iniciando uma emotiva disputa judicial, tal como frequentemente ocorre em relação à prole.

Ela alegou que cuidou da cadelinha doente quando ela foi retirada do canil e que a pequena estaria sofrendo muito com a separação. Para ela, Lilly era importantíssima, ajudando, inclusive, em sua estabilidade emocional e psicológica. O ex-marido, ao contrário, não tinha condições de cuidar da "criança", pois era impaciente e intolerante, alegou a autora em juízo.

O pai de Lilly, por sua vez, alegou ser o proprietário exclusivo da cadelinha, com quem já morava desde a separação e que uma mudança de lar agora iria causar sensíveis transtornos ao animal.

A autora perdeu em primeira e segunda instância.

A decisão do OLG Stuttgart

Em grau de recurso, o OLG Stuttgart negou o pleito, reconhecendo o direito do marido de ficar com a cadelinha. Trata-se do processo OLG Stuttgart 18 UF 57/19, julgado em 23/4/2019.

Segundo o Tribunal, tendo transcorrido mais de três anos da separação, não seria adequado alterar o ambiente do animal, que vive com seu dono em uma casa com jardim, ambiente propício ao dia-a-dia do animal. Além disso, na visão do Oberlandsgericht, o ex-marido comprovou ser, de fato, o dono da cadelinha, detendo sobre ela propriedade exclusiva.

Segundo o Tribunal, é inegável que os animais não têm a natureza jurídica de coisa, o que, aliás, consta expressamente no § 90a do BGB desde 1990, quando a norma fora modificada para a atual redação, segundo a qual: "Animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. Sobre eles devem-se aplicar respectivamente as normas válidas para os bens, enquanto não se dispuser de outra forma"1.

Em assim sendo, prosseguiu a Corte, impõe-se reconhecer que o marido adquiriu – antes do casamento – a propriedade exclusiva sobre a cadelinha, titularidade que permaneceu inalterada após o surgimento do vínculo matrimonial.

Ele não só pagou por ela, constando no contrato como único proprietário e responsável, como também tem assumido o cuidado e as despesas com ela desde então. A autora – na visão do Tribunal – não comprovou ser coproprietária do animal.

Depõe, segundo a Corte, contra a alegada copropriedade o fato da ex-mulher só ter solicitado a devolução do animal nove meses após a separação e ter deixado o animal com o ex-marido ao abandonar o antigo lar da família.

O fundamento da decisão

Apesar do reconhecimento de que os animais não são coisas, os tribunais alemães solucionam as lides envolvendo a posse de animais de estimação, quando compatíveis, com base nas regras que disciplinam a divisão dos bens comuns ao casal, dentre as quais o § 1.568b do BGB.

O inciso 1 da norma permite a um dos cônjuges exigir que o outro abra mão, em prol dele e/ou dos filhos, dos "bens de uso domésticos", pertencentes ao casal, quando o requerente e/ou os filhos deles dependerem consideravelmente ou, ainda, por razões de equidade.

A rigor, o § 1.568b do BGB trata dos bens adquiridos na constância do casamento para a manutenção comum do lar. Esses, em regra, são partilhados como bens comuns, exceto na hipótese do inciso 1 do § 1.568b, acima mencionado ou quando sejam comprovadamente propriedade exclusiva de um dos cônjuges (inciso 2 do § 1.568b).

Por isso, a autora fundamentou sua pretensão de ficar com Lilly no § 1.568b, inc. 1 do BGB. Mas o problema é que o § 1.568b BGB pressupõe a copropriedade sobre o bem, não incidindo quando o bem for de titularidade exclusiva de um dos cônjuges.

E o Tribunal reconheceu a propriedade exclusiva do réu sobre a cadelinha labrador, afastando, consequentemente, a incidência da norma. Entender o contrário representaria forte intervenção na posição jurídica proprietária do titular, protegida constitucionalmente, o que desde o pós-Guerra não mais se justificativa – disse o OLG Stuttgart.

Não tendo demonstrado sua qualidade de coproprietária, a autora não tem qualquer pretensão de conviver com a cadelinha, pois para tanto falta-lhe uma base legal. Essa não se deixa deduzir, segundo a Corte, nem das normas que regem a situação jurídica dos bens, nem tampouco das normas que regulam o direito de guarda e convivência com os filhos, inaplicáveis à espécie por analogia.

Repercussões do caso

A decisão do OLG Stuttgart não deixou de causar polêmica, principalmente entre aqueles que conseguem amar animais não humanos. Essa relação de afeto, que independe de vínculo formal, precisa ser levada em conta pelo julgador mesmo diante da inafastável necessidade de se conferir estabilidade e segurança jurídica às situações da vida.

Talvez por isso, outros tribunais, embora aplicando as regras sobre a divisão do mobiliário doméstico aos animais de estimação, sublinham que a decisão sobre quem ficará com o animal precisa ser tomada com base na equidade, considerando o melhor interesse do animal.

Foi o que sublinhou o Tribunal de Justiça de Oldenburg no processo Az. 11 WF 141/18, julgado em 16/8/2018. O contexto fático assemelhava-se ao julgado acima, com a diferença, contudo, que o casal havia adquirido a cadelinha Dina na constância do casamento.

Contudo, como a mulher saiu de casa, deixando Dina com o ex-marido e só veio a pedir a guarda depois de dois anos, a Corte achou por bem deixar a cadelinha com o pai, pois esse era, de fato, a principal pessoa de referência para o animal.

No acordão, o Tribunal assinalou que, embora a posse dos animais de estimação seja determinada segundo as regras de partilha dos bens comuns ao casal, a decisão deve ser tomada levando em consideração de que se trata de um ser vivo, que constrói e mantém relações com as pessoas e que pode sofrer com a ausência de alguém.

Decisivo deve ser quem cuidou na maior parte do tempo do animal, tornando-se a principal referência para ele, que, no caso, foi o marido, com quem a cadelinha ficou desde o fim do relacionamento. A regra, portanto, seria a busca do melhor interesse do animal, o que – precisa-se assinalar – também foi ponderado pelo OLG Stuttgart no caso de Lilly.

A mesma Corte já tomou, em 2014, uma surpreendente decisão no famoso caso da cadelinha Babsi. Aqui, o casal havia adquirido a cadela conjuntamente, embora a esposa tenha contribuído com a maior parte do valor. Com o fim da relação, o marido simplesmente levou Babsi consigo ao sair de casa, impedindo qualquer contato da esposa com a cadela durante mais de um ano.

Ele recusou, inclusive, as tentativas de conciliação propostas pela Vara de Família, onde o feito tramitou, rejeitando uma espécie de "guarda compartilhada" – embora esse termo não tenha sido usado na decisão.

O juiz, então, deixou Babsi escolher com quem queria ficar: ela adentrou na sala de audiência e logo pulou, feliz da vida, no colo da mãe, onde permaneceu quietinha durante toda a sessão, levando o magistrado a concluir que a mulher permanecia sendo a referência para Babsi, mesmo após mais de um ano de separação forçada – decisão que acabou confirmada pelo OLG Stuttgart.

Tema atualíssimo: disputa pelos animais

A disputa em torno de animais não humanos tem ganhado cada vez mais espaço nos tribunais europeus, pois muitas são as famílias formadas por um casal e os peludos, onde se constrói entre as partes uma verdadeira uma relação filial. Aqui no Brasil a situação não é muito diferente e o problema se põe nas lides familiares com frequência.

A questão é complexa e envolve uma profunda mudança de paradigma de que animais não são coisas, mas seres sencientes, capazes de sentir prazer e dor, de pensar e se expressar e, sobretudo, de construir uma relação com os animais humanos.

Por enquanto, os animais ainda são tratados como bens semoventes (art. 82 CC2002). Mas no último dia 10/7/2019 a Comissão do Meio Ambiente do Senado Federal aprovou o Projeto de lei 27/18 que modifica o tratamento jurídico dado aos animais.

Segundo o Projeto, os animais são sujeitos de direitos despersonificados, que devem gozar de tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado seu tratamento como coisa. Eles têm natureza biológica e emocional, possuindo, portanto, uma natureza jurídica sui generis.

Segundo informa o Parecer 18/2019, de relatoria do Senador Randolfe Rodrigues, o Senado já aprovou e encaminhou à Câmara dos Deputados o PL 351/2015, do Senador Antônio Anastasia, que tem por objetivo alterar o Código Civil (lei 10.406, de 10.01.2002) para determinar que os animais não sejam considerados como coisas, embora possam ser classificados na categoria dos bens móveis para os efeitos legais, salvo o disposto em lei especial. Esse Projeto tramita na Câmara como o PL 3.670/2015.

Esse é, sem dúvida, um grande passo para uma nova visão sobre os animais não humanos e um estímulo a refletir sobre a ideia antropocêntrica de mundo, fundada na superioridade do animal humano sobre todos os demais. Muito ainda precisará ser discutido e refletido sobre o assunto. No entanto, uma coisa é certa: animais não são coisas. No máximo, coisa fofa!

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1 "§ 90a. Tiere sind keine Sachen. Sie werden durch besondere Gesetze geschützt. Auf sie sind die für Sachen geltenden Vorschriften entsprechend anzuwenden, soweit nicht etwas anderes bestimmt ist".

 

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15