Federalismo à brasileira

Federalismo e precatórios

Federalismo e precatórios.

8/5/2019

Rafael de Lazari

Boa parte da crise federativa pela qual passa o Estado brasileiro atualmente concentra-se sobre a quitação de precatórios (a forma como é feita, dificuldades orçamentárias, descontrole no planejamento financeiro do ente federativo etc.). Por "precatório", há se entender a ordem de pagamento determinada pelo Poder Judiciário e dirigida às Fazendas Públicas Federal, estaduais, distrital e municipais, em virtude de sentença condenatória transitada em julgado que impôs a estas obrigação de pagar. O sistema de precatórios é determinado fundamentalmente no art. 100, da Constituição da República, sem prejuízo de consagrações constantes via emenda constitucional no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (EC 62/2009, EC 94/2016, EC 99/2017). Como se não bastasse, muitas regras foram dadas pelo Supremo Tribunal Federal, notadamente em duas decisões prolatadas em ações diretas de inconstitucionalidade em torno da EC 62/2009 (nas quais houve modulação temporal de efeitos).

Neste singelo comentário, dois enfoques especiais serão dados: primeiro, quanto à atuação do Conselho Nacional de Justiça na questão; segundo, quanto às duas decisões do STF em torno da EC 62/2009 (mencionadas no parágrafo anterior), que mexeram sensivelmente na questão e ensejaram, inclusive, novas emendas constitucionais.

Pois bem. Em primeiro aspecto, para tentar dirimir conflitos e padronizar procedimentos, há uma política do Poder Judiciário, atualmente, de atribuir papel protagonista ao Conselho Nacional de Justiça nas questões envolvendo o pagamento de títulos executivos consubstanciados contra os Poderes Públicos e que não mais comportem recurso. Quer-se que o Conselho capitaneie este processo, por reunir as informações necessárias à feitura de um diagnóstico consolidado e o mais próximo possível da realidade. O Conselho vem lutando para elaborar um manual de racionalização de procedimentos a fim de que os entes federativos consigam cumprir com a obrigação de quitar seus títulos decorrentes de decisão passada em julgado. Como exemplo, se pode mencionar a resolução 115/2010, que dispõe sobre o Sistema de Gestão de Precatórios, gerido pelo CNJ, e que contará, dentre outras coisas, com informações sobre o tribunal, unidade judicial e processo que ensejou o pagamento de precatório; o nome do beneficiário e a respectiva inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro de Pessoas Jurídicas; a data do trânsito em julgado da decisão condenatória ao pagamento; o valor do precatório e a natureza do crédito; o valor total dos precatórios expedidos pelo tribunal até o dia 1º de julho de cada ano; o orçamento anual da entidade pública sob a jurisdição do tribunal destinado ao pagamento dos valores etc. No mais, são sugestões de uniformização de regras processuais e procedimentais, como suporte aos Tribunais de Justiça para consulta, de modo a auxiliar seus presidentes e auxiliares na justa e disciplinada prestação jurisdicional nas execuções em desfavor da Fazenda Pública (auxiliam neste processo, ainda, o sistema REESPREC - Reestruturação de Precatórios, bem como o FONAPREC - Fórum Nacional de Precatórios).

Por um segundo enfoque, duas ações diretas de inconstitucionalidade foram ajuizadas em torno da emenda constitucional 62/2009 (a qual ficou conhecida como "Emenda do Calote"), a saber, a ADI 4.357 (Supremo Tribunal Federal, Pleno. Rel.: Min. Ayres Britto. DJ. 14/3/2013) e a ADI 4.425 (Supremo Tribunal Federal, Pleno. Rel.: Min. Ayres Britto. DJ. 14/3/2013). Parte da EC nº 62 acabou sendo declarada inconstitucional: o art. 100, §2º, CF, na expressão "na data da expedição do precatório" (o que já foi modificado pela EC 94/2016); os §§ 9º e 10 do art. 100; o §12 do art. 100, na parte que estabeleceu o índice da caderneta de poupança como taxa de correção monetária dos precatórios; bem como o art. 97, do ADCT. Na época da decisão (2013), ficou pendente a modulação dos seus efeitos. O Supremo Tribunal Federal, por maioria e nos termos do voto, ora reajustado, do ministro Luiz Fux (novo Relator para acórdão da questão de ordem), resolveu a questão de ordem nos seguintes termos, modulando sua decisão no final de março de 2015: "2. In casu, modulam-se os efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas nas ADIs 4.357 e 4.425 para manter a vigência do regime especial de pagamento de precatórios instituído pela Emenda Constitucional 62/2009 por 5 (cinco) exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016. 3. Confere-se eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade dos seguintes aspectos da ADI, fixando como marco inicial a data de conclusão do julgamento da presente questão de ordem (25.03.2015) e mantendo-se válidos os precatórios expedidos ou pagos até esta data, a saber: (i) fica mantida a aplicação do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança (TR), nos termos da Emenda Constitucional nº 62/2009, até 25.03.2015, data após a qual (a) os créditos em precatórios deverão ser corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) e (b) os precatórios tributários deverão observar os mesmos critérios pelos quais a Fazenda Pública corrige seus créditos tributários; e (ii) ficam resguardados os precatórios expedidos, no âmbito da administração pública federal, com base nos arts. 27 das Leis nº 12.919/13 e nº 13.080/15, que fixam o IPCA-E como índice de correção monetária. 4. Quanto às formas alternativas de pagamento previstas no regime especial: (i) consideram-se válidas as compensações, os leilões e os pagamentos à vista por ordem crescente de crédito previstos na Emenda Constitucional nº 62/2009, desde que realizados até 25.03.2015, data a partir da qual não será possível a quitação de precatórios por tais modalidades; (ii) fica mantida a possibilidade de realização de acordos diretos, observada a ordem de preferência dos credores e de acordo com lei própria da entidade devedora, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado. 5. Durante o período fixado no item 2 acima, ficam mantidas (i) a vinculação de percentuais mínimos da receita corrente líquida ao pagamento dos precatórios (art. 97, §10, do ADCT) e (ii) as sanções para o caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados ao pagamento de precatórios (art. 97, §10, do ADCT). 6. Delega-se competência ao Conselho Nacional de Justiça para que considere a apresentação de proposta normativa que discipline (i) a utilização compulsória de 50% dos recursos da conta de depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios e (ii) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25.03.2015, por opção do credor do precatório. 7. Atribui-se competência ao Conselho Nacional de Justiça para que monitore e supervisione o pagamento dos precatórios pelos entes públicos na forma da presente decisão" (Supremo Tribunal Federal, Pleno. ADI nº 4.425 QO/DF. Rel.: Min. Luiz Fux. DJ. 25/3/2015).

A emenda constitucional 94/2016 corrigiu inconstitucionalidade declarada pelo STF do art. 100, §2º, CF. Sem prejuízo, acresceu quatro parágrafos ao art. 100, CF: "§17. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aferirão mensalmente, em base anual, o comprometimento de suas respectivas receitas correntes líquidas com o pagamento de precatórios e obrigações de pequeno valor. §18. Entende-se como receita corrente líquida, para os fins de que trata o §17, o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e de serviços, de transferências correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do §1º do art. 20 da Constituição Federal, verificado no período compreendido pelo segundo mês imediatamente anterior ao de referência e os 11 (onze) meses precedentes, excluídas as duplicidades, e deduzidas: I - na União, as parcelas entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios por determinação constitucional; II - nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional; III - na União, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, a contribuição dos servidores para custeio de seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira referida no §9º do art. 201 da Constituição Federal. §19. Caso o montante total de débitos decorrentes de condenações judiciais em precatórios e obrigações de pequeno valor, em período de 12 (doze) meses, ultrapasse a média do comprometimento percentual da receita corrente líquida nos 5 (cinco) anos imediatamente anteriores, a parcela que exceder esse percentual poderá ser financiada, excetuada dos limites de endividamento de que tratam os incisos VI e VII do art. 52 da Constituição Federal e de quaisquer outros limites de endividamento previstos, não se aplicando a esse financiamento a vedação de vinculação de receita prevista no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal. §20. Caso haja precatório com valor superior a 15% (quinze por cento) do montante dos precatórios apresentados nos termos do §5º deste artigo, 15% (quinze por cento) do valor deste precatório serão pagos até o final do exercício seguinte e o restante em parcelas iguais nos cinco exercícios subsequentes, acrescidas de juros de mora e correção monetária, ou mediante acordos diretos, perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Precatórios, com redução máxima de 40% (quarenta por cento) do valor do crédito atualizado, desde que em relação ao crédito não penda recurso ou defesa judicial e que sejam observados os requisitos definidos na regulamentação editada pelo ente federado”. Ademais, o ADCT ganhou os arts. 101 a 105, que além de criar novo regime especial (muito por conta da declaração de inconstitucionalidade em torno do art. 97, ADCT), fez readequações em boa parte atendendo à modulação temporal de efeitos em sede de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF nas mencionadas ações diretas de inconstitucionalidade 4.357 e 4.425.

Mais recentemente, por fim, a EC 99/2017 promoveu alterações e complementos naquilo que havia sido trazido pela EC nº 94/2016 (notadamente a ampliação do prazo para pagamento de precatórios e o índice de atualização monetária no novo regime especial trazido no art. 101, ADCT).

A excessiva modificação na sistemática, veja-se, é decorrência de absoluta insegurança jurídica e econômica que paira sobre a questão. O problema é que, além de decorrência, a excessiva modificação acaba por ser, também, consequência para insegurança jurídica e econômica (a solução que resolve problemas anteriores cria, por si, novos problemas). Nos últimos dez anos são três emendas, duas decisões paradigmáticas, sem prejuízo de outras decisões pontuais prolatadas pelo guardião da Constituição, o que reflete, independentemente de qualquer coisa, a dificuldade que o assunto "precatórios" representa para o Estado brasileiro.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Daniel Barile da Silveira é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela CDH/IGC, da Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB. Professor do programa de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Marília (Unimar). Professor de Direito Constitucional do curso de Direito do UniToledo (Araçatuba/SP). É advogado e consultor jurídico em Direito Público. Foi pesquisador do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Recebeu Menção Honrosa do Supremo Tribunal Federal do pelo seu trabalho nos "200 anos do Judiciário Independente" (STF). Autor de várias obras jurídicas.

Emerson Ademir Borges de Oliveira é mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Vice-coordenador do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Professor em cursos de pós-graduação no Projuris e USP-Ribeirão Preto. Autor de várias obras e artigos jurídicos. Advogado e parecerista.

Jefferson Aparecido Dias possui doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha (2009). Atualmente é procurador da República do Ministério Público Federal em Marília. É professor permanente do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília.

Rafael de Lazari é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor da graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília - UNIMAR. Professor convidado de pós-graduação (LFG, Projuris Estudos Jurídicos, IED, dentre outros), da Escola Superior de Advocacia, e de cursos preparatórios para concursos e exame da Ordem dos Advogados do Brasil (LFG, IED, IOB Concursos, PCI Concursos, dentre outros). Autor, organizador e participante de inúmeras obras jurídicas, no Brasil e no exterior. Advogado e consultor jurídico.