Daniel Barile da Silveira
A democracia moderna está intimamente ligada a um procedimento de tomada de decisões, pelo qual a maioria decide assuntos públicos, que afetam toda uma comunidade de pessoas. Nesta abordagem, uma decisão para ser considerada democrática está atrelada a identificar quem está autorizado a tomar estas decisões e quais os procedimentos que essa deliberação deve seguir para ser chamada minimamente de justa aos seus participantes.
Neste contexto específico, a vinculação das decisões públicas adota um caráter mais procedimentalista em sua razão de existir: definir quais as pessoas e quais regras seguir, em um acordo prévio e consabido, garante a realização maior do valor democrático. Portanto, para compreender a democracia nestes moldes, deve-se ter em consideração que, quanto mais pessoas decidirem e, ainda, quanto mais simples, igualitárias e claras são as regras deliberativas, mais nos aproximamos deste ideal, realizando as promessas da soberania popular (entendida esta, como o poder soberano do povo para a tomada de decisões coletivas).
Como nos alerta com perspicácia Norberto Bobbio1, iluminado pelos clássicos gregos, a "onicracia", entendida como governo de todos, é, no mínimo, um ideal, em que um povo por completo exerceria diretamente, e sempre, o poder de deliberação. Especialmente falando, esse modelo "puro" jamais foi visto na história, encontrando-se mais facilmente arquétipos deliberatórios que estão próximos de um sufrágio universal, tal como conceitualmente se atribui, em que a maior parte da população decide seus destinos. A cada tempo que passa, a ideia de sufrágio universal atinge novos grupos, alargando o seu rol de cidadãos ativos, mas, e em contraposição, sempre algum grupo é excluído de fora desta categoria de votantes, posto ser um conceito socialmente e historicamente erigido.
Apenas para se ilustrar o acima dito em um caso, no Brasil, como regra, os menores de 16 anos hoje não votam, apesar de poderem decidir sobre muitos aspectos em sua vida privada. Seria esta uma violação ao princípio da participação popular destas pessoas? Haveria uma falácia no discurso da soberania popular entregue a todos os cidadãos de forma livre e igualitária? Uma resposta destas apenas pode ser dada em aspectos comparativos: certamente, há mais democracia, e mais sufrágio dito por universal, no modelo atual em que idosos, jovens, mulheres, não proprietários, analfabetos decidem, do que no da Constituição Imperial de 1824, em que o voto era censitário, para homens maiores2. Mas certamente este regime do Brasil dos oitocentos era mais aberto em relação a modelos em que as eleições eram exclusivamente indiretas, ou não existiam, para determinados casos, como no uso de nomeações "biônicas" da Constituição de 1937, pelo Estado Novo, ou mesmo da suspensão do voto direto constante das alterações da Constituição de 1967, durante o regime militar. Isto demonstra que, em termos de democracia, tempo não é sinônimo de progresso ou evolução dos valores democráticos, podendo haver intercursos e retrocessos.
Portanto, para se medir o grau do exercício direto de decisões por um povo, a quantidade de pessoas que decide importa, sendo o quantum de partícipes um elemento de medição de democracias consolidadas e em desenvolvimento. Mas talvez valha acrescentar neste índice que quantidade deve ser analisada não somente do ponto de vista da quantidade de pessoas decidindo (quanto?), mas também em quais locais estão decidindo (onde?). De fato, é observável que a expansão da democracia, em sociedades de sufrágio universal, acaba por estar ligada mais a quais espaços de decisão o povo decide do que a quantidade propriamente de decididores que participam do jogo.
Por outro lado, a preocupação com a qualidade da democracia também está afeta ao modelo de regras que se adota, consubstanciada no modus operandi de sua prática. Aqui a explicação parece ser mais simples, posto que a própria ideia de quantidade nos leva a crer que quanto mais pessoas decidem a favor de algo, mais essa visão torna aceita por todos. Eis a regra. Logo, a maioria decide sobre seus destinos, sendo taxada de antidemocrática, autoritária ou personalista aquela decisão que leva em consideração as preferências da minoria da vontade imposta de alguns ou de alguém mais influente no desenho social.
Isto não quer dizer que apenas a unanimidade deva ser considerada, como a realização da "máxima maioria" e, portanto, sinônima de "máxima democracia". Esta fórmula só é possível de se conceber apenas em caráter muito exclusivo, vez que muito raramente ela é conseguida, ainda que a regra do jogo seja desenhada para tal, como em modelos de júri em alguns países ("guilty or not guilty", nos EUA), ou ainda em decisões de aceitação ou veto em organismos internacionais (a exemplo do poder de veto no Conselho de Segurança da ONU). Nestas situações específicas, o que se percebe é que o modelo de decisão unânime apenas se aplica em dois casos muito exponenciais: ou no caso de direito de vetar uma decisão grave ou quando a decisão não expressa relevância, como no caso do consenso tácito3, pela qual, diante da simplicidade da questão discutida (um voto de aplauso, p. ex., em sessões colegiadas), a não manifestação unânime ganha expressividade. Entretanto, seu uso restringe-se a corporações, entidades e parlamentos, jamais aplicáveis a grandes massas de pessoas, em países continentais. Além de irrazoável, inútil, seria inegavelmente injusto. A regra, pois, para um exercício democrático direto do povo é que as decisões sejam tomadas por maioria, e que, após tomadas, vinculam todo o grupo.
Estas duas condições clássicas para o exercício direto pelo povo de decisões públicas, quais sejam, uma quantidade máxima de votantes, em espaços cada vez mais ampliados, e o procedimento de votação pela maioria, compõem aquilo que se denomina de visão procedimental das regras do jogo democrático.
Mas é de se julgar que, a par desta visão moderna, uma nova condição seja imposta, revestida de outros dois aspectos mais substanciais: primeiramente, embora quantidade de regras seja importante para o exercício democrático pelo povo, há de se conciliar estes elementos com a possibilidade efetiva de o povo poder participar das decisões. Isto é, para que possa efetivamente decidir, faz-se necessário que lhe seja dado condições prévias para deliberar, consistentes em alternativas reais de decisão (e não dentre elementos ficticiamente apresentados ao público, representantes de uma mesma ideia ou facção). Um plebiscito ou referendo em que as alternativas decisórias sejam "sim" ou "não" acerca de certo assunto não podem ser analisadas apenas do ponto de vista procedimental, mas devem guardar realidade conquanto à substância deliberativa: ambos representam lados opostos? Rejeitar algo seria apenas postergar o "sim" para um momento posterior? A escolha do "não" representa o "não" mesmo?
Não restam críticas, neste último aspecto, para o referendo sobre a possibilidade de comercialização de armas de fogo no Brasil, em 2005, em que havia intenção manifesta do Governo à época de proibir a venda, lançando a seguinte pergunta: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". Votar "sim", neste caso, em realidade significaria decidir pela proibição, de nítido código linguístico negativo ("não"), sendo o inverso verdadeiro. Por falta de informação, muitos decidiram por proibir a comercialização, quando queriam dizer "não às armas"4. Portanto, as condições reais da democracia estão também em seu conteúdo, merecendo seu destaque.
De outra banda, por fim, é necessário apoderar o povo à decisão. O direito ao exercício do sufrágio pelo povo não pode se mostrar como um direito isolado, mas deve estar ancorado em outros direitos antecedentes àquele, como que um pressuposto de sua realização: o direito à saúde como garantia de interesse mínimo para votar, à liberdade de expressão e opinião como veículos de externalização da consciência, o direito de transporte público até os locais de votação, o direito de reunião em locais públicos para a discussão das escolhas, a liberdade de imprensa, a liberdade de informação, enfim, elementos todos que possam garantir um "mínimo existencial e de cidadania", que permitam a todos decidir com um certo grau de autonomia decisória e dignidade de espírito.
Por isto dizer que as regras que a Constituição estabelece para o exercício direto do poder popular de decidir não estão apenas nos direitos políticos, mas se espraiam por todo o bloco de direitos fundamentais, em todo o seu texto. Normalmente, o colapso de um direito individual ou social acarreta o enfraquecimento da democracia deliberativa, ainda que inadvertidamente.
É por isto que o voto regular, o plebiscito e o referendo devem ser concretizados como elementos substanciais de decisão, com reais possibilidades deliberatórias para o exercício direto da soberania. De igual monta, a iniciativa popular de lei deve ser um elemento factível, talvez ainda muito distante das dificultosas possibilidades estabelecidas atualmente em nosso texto constitucional5. Por fim e não menos importante, cultivar-se um Judiciário efetivamente acessível à população, a qual queira fazer uso da ação popular ou de ações que questionem a regularidade do pleito, são princípios basilares para o atingimento de uma qualidade democrática cada vez maior em nosso país.
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1 O Futuro da Democracia:uma defesa das regras do jogo. 6.ed.São Paulo, Paz e Terra, 1986, p.19.
2 Vide art. 90 e ss. da Constituição Imperial.
3 O Futuro da Democracia:uma defesa das regras do jogo. 6.ed.São Paulo, Paz e Terra, 1986, p.20.
4 Como é sabido de muitos, ao final, fora proibida a comercialização das armas de fogo. Mas a confusão estava posta. Veja um excerto dos jornais à época: "A pergunta que se faz é confusa. Os que são contra as armas devem votar Sim (de maneira duplamente contra-intuitiva, Sim é o número 2 nas máquinas eletrônicas de votação), e os que são a favor delas, Não (número 1). O jornal "O Estado de S.Paulo" recentemente fez a pergunta a cem pessoas no centro de São Paulo: 29 delas entenderam errado (isto é, votaram contra a proibição quando eram a favor dela, e vice-versa)".
5 Assim se diz pela dificuldade de reunir 1% de eleitores no país, distribuídos em 5 Estados e que, em cada um deles, haja, pelo menos, 0,3% de eleitores. Vide dispositivo do art. 61, § 2º, CF/88.