Emerson Ademir Borges de Oliveira
Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga
A Constituição brasileira estabelece a obrigatoriedade do voto em seu artigo 14, §1º. Historicamente, a mesma opção constituinte fora idealizada pelas Constituições de 1967 (art. 142, §1º), de 1946 (art. 133), de 1937 (art. 117) e de 1934 (art. 109), embora com algumas distinções quanto à extensão do sufrágio, tendo como divisor de águas a Lei Constitucional 9 de 1945, que o universalizou.
Nota-se, assim, que, com exceção da Constituição de 1891, que atribuía a condição de eleitor apenas àqueles que optassem por se alistar, todas as demais Constituições republicanas mantiveram a condição estabelecida pelo Código Eleitoral de 1932, ao determinar que o brasileiro apto se aliste e exerça o voto.
Inegável, nesse tocante, que, tanto no Brasil quanto na América Latina, há uma longa tradição acerca da obrigatoriedade do voto1. Mas existe uma questão que reluta em face do valor liberdade, verdadeira égide constitucional quer permeia nosso círculo jurídico e, para parte da doutrina fundamental, possui uma carga valorativa superior prima facie, ao lado da igualdade, o que exige um maior esforço hermenêutico no seu combate quando houver conflito de princípios2.
Assim, em decorrência, vislumbra-se o embate entre o valor liberdade e a obrigatoriedade de voto e alistamento. Nos termos da nossa Constituição, consoante artigo 14, §1º, I, o voto é obrigatório para os maiores de dezoito anos e, conforme inciso II, é facultativo para os analfabetos, maiores de setenta anos e maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. E, como lembra Peña de Moraes, o alistamento também é obrigatório "no prazo de um ano da obtenção da nacionalidade brasileira"3.
Afinal, seria o sufrágio, enquanto exercício do voto, um direito ou um dever? Se visto sob o primeiro prisma, pareceria contraditório que fosse obrigatório. Analisado sob o segundo, haveria ofensa à liberdade, elemento base da democracia.
Num primeiro momento, é defensável que a situação se justificasse justamente por uma necessidade de maior inserção política da sociedade em uma democracia considerada recente como a nossa, sobrevinda de um regime excepcional. O valor da participação política não deveria, assim, apenas ser possibilitado pelo Estado, mas também incentivado. Logo, no pós-Constituição de 1988, a definição do voto como obrigatório seria salutar para o aperfeiçoamento da democracia brasileira, impedindo que, em um Estado Democrático, não fosse tal obrigatoriedade vista como uma afronta à própria democracia4.
Cumpre ressaltar que, no entanto, tais razões seriam diversas das que conduziram à obrigatoriedade nas Constituições anteriores, em especial nos momentos seguidos ao fim da República Velha, no auge do coronelismo e do voto de cabresto.
Pensamos, contudo, que, passados trinta anos, já houve tempo mais do que suficiente para o estímulo à participação política do brasileiro e à formação de uma consciência coletiva acerca da importância da inserção do cidadão no processo político democrático. Não é possível mais concluir que a obrigatoriedade conduza a tais diretrizes no momento atual. Hodiernamente, é a própria situação política que direciona à aproximação ou ao afastamento do eleitor das urnas.
A obrigação teria, neste ponto estressante, o único condão de tentar persuadir aquele que pretende, conscientemente, manter-se alheio ao processo político.
Manoel Gonçalves ressalta que nos Estados Unidos a maioria da população sequer se dá ao trabalho de votar – lembrando que o voto é facultativo -, muito menos acompanhar a evolução da política5.
Apenas em 2008, com a primeira eleição de Barack Obama, como noticiou, com assombro, a imprensa, é que se assistiu uma intensidade de participação tão alta nos Estados Unidos desde 1908. Cerca de 136 milhões de eleitores foram às urnas, representando um percentual de 64,1, ultrapassando até mesmo o embate entre John F. Kennedy e Richard Nixon em 19606.
Quando o momento político atrai o povo, ele naturalmente sentir-se-á convocado para participar das decisões acerca dos novos rumos do país, o que comprova que a vivência democrática tem o condão de se reprogramar para atrair o interesse da população, mormente em momentos de desconforto, como os últimos anos do governo de George W. Bush7.
Entre nós, as últimas eleições presidenciais tiveram uma taxa de comparecimento de 78,70% no 2º turno (21,3% de abstenção), praticamente mantendo a média histórica desvirtuada apenas nas eleições de 1994, quando 29,3% dos eleitores deixaram de comparecer às urnas8. Vê-se, claramente, que a obrigatoriedade não possui mais o condão de estimular a participação por meio do voto, se é que algum dia possa se afirmar que produzira, de forma substancial, este resultado.
Assim como a gana e a discussão generalizada políticas aproximam o eleitor, a desilusão com o universo político lhes afasta, mantendo um equilíbrio constante, incapaz de ser tocado por uma obrigatoriedade vazia e superficial, que sequer traz grandes implicações em caso de violação.
É chegado um momento de quebra de paradigma, na esteira das revoluções científicas, para assumir um novo modelo, um modelo de estímulo, de discussão, mas de opção. Opção para se alistar e opção para, mesmo se alistado, votar; uma homenagem aos pressupostos libertários e, sobretudo, às influências negativas que a obrigação pode trazer em vista do abuso do poder econômico.
Se já experimentamos a obrigatoriedade por tanto tempo, a ocasião aponta em sentido oposto. A experiência democrática requer mudanças. O voto opcional é uma delas.
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2 "A idéia de prioridade prima facie dos princípios da liberdade e da igualdade instituiu uma estruturação da argumentação segundo os princípios. Para que um princípio possa se sobrepor ao princípio da liberdade é necessária uma argumentação mais robusta do que aquela que se deve fazer para sustentá-lo". MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 1.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.68.
3 MORAES, Guilherme Peña. Curso de direito constitucional. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.620. Algumas situações podem conduzir à perda ou suspensão dos direitos políticos nos termos do artigo 15, da CF. p.621-622.
4 Há autores que acreditam que o voto optativo funcionaria como um termômetro para medir a apatia ou interesse pelas decisões políticas e, assim, poderiam orientar os programas e funcionamentos dos partidos e instituições no intuito de consolidar uma verdadeira democracia. FERNÁNDEZ, Mario; THOMPSON, José. El voto obrigatorio. In: NOHLEN, Dieter et alli (Org.). Tratado de derecho electoral comaprado de América Latina. 2.ed. México: FCE, Instituto Interamericano de Derechos Humanos, Universidad de Heidelberg, International IDEA, Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, Instituto Federal Electoral, 2007.
5 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p.30.
6 Disponível em: <_https3a_ eleicao-nos-eua-tem-maior-participacao-em-decadas-dizem-analistas-2282672.html="" 11="" 2008="" noticia="" rs="" zh.clicrbs.com.br="">. Acesso: 17 ago. 2014.
7 Até então, ressaltava Manoel Gonçalves: "Lembrem-se os principais. De modo geral, um terço do eleitorado não vota nas eleições presidenciais, dois terços apenas toma conhecimento das questões políticas pelo que vê ou ouve dos meios de comunicação de massa, jamais se dando a pena de recolher qualquer outra informação sobre os temas em debate, ou os candidatos em disputa. Nota-se dos que leem jornais, 47% não leem, quanto à política, mais que as manchetes". FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p.30-31.
8 Taxas de abstenção por ano de eleições presidenciais: 1998, 21,5%; 2002, 17,2%; 2006, 16,8%; 2010, 18,1%; 2014, 19,4%.