Rafael de Lazari
Representa o poder constituinte a expressão da vontade de um povo. Trata-se do poder de criar normas constitucionais (Federal ou estaduais), e de reformá-las. Emmanuel Joseph Sieyès - abade de Chartres -, em sua obra "O que é o Terceiro Estado?" ("Qu’est-ce que le tiers état?"), é considerado o precursor da matéria.
A obra de Sieyès foi publicada às vésperas da Revolução Francesa, com grande influência de Locke e Rousseau. O "Terceiro Estado" eram as pessoas que não faziam parte nem do clero ("Primeiro Estado") nem da nobreza ("Segundo Estado"). Logo, o "Terceiro Estado" era o povo/nação (na época, a burguesia, representada por camponeses, artesãos, comerciantes, dentre outros), representativo de cerca de noventa por cento das pessoas. Para Sieyès, esta parcela de pessoas teria um direito inato, a saber, o direito de ser representado, afinal, muito embora representassem uma maioria quantitativa, estavam os componentes do Terceiro Estado completamente alijados das decisões políticas fundamentais que os influenciavam.
São duas as espécies de poder constituinte, a saber, o poder constituinte originário (ou genuíno) (ou "de 1º Grau") (ou primogênito) (ou fundacional) e o poder constituinte derivado (ou secundário) (ou instituído) (ou "de 2º Grau") (ou constituído), sendo que esta última espécie se subdivide em poder constituinte reformador e poder constituinte decorrente. Sem prejuízo, é comum que se aponte também como manifestação de poder constituinte derivado o poder constituinte revisor, responsável por analisar aspectos constitucionais após lapso temporal determinado como medida adequadora da Constituição Federal (art. 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
Desde já ressaltando a volumosa temática do poder constituinte, faz-se um pequeno recorte metodológico para tratar do encaixe da questão nos entes federativos que não a União e os Estados. Isto porquê, muito embora sejam também os Municípios e o Distrito Federal entes federativos, somente se fala de uma Constituição Federal e de Constituições Estaduais.
Por posicionamento tradicional, os municípios e o Distrito Federal não possuem poder constituinte. Estes dois entes da Federação se regulam por Lei Orgânica, e não por Constituições. É o que se infere da leitura dos arts. 29, caput (municípios) e 32, caput (Distrito Federal), da Constituição pátria. É errado, pois, falar que um município tenha uma "Constituição municipal", ou que o Distrito Federal tenha uma "Constituição distrital". Desta maneira, o poder constituinte se estende, no máximo, até os Estados. Não se pode falar que os municípios e o Distrito Federal exerçam poder constituinte, ainda que decorrente, ou mesmo "de terceiro grau".
Em primeira abordagem, convém lembrar o entendimento de parcela doutrinária atualmente considerável que acena pela existência de poder constituinte derivado decorrente no âmbito do Distrito Federal. Como dito alhures, o art. 32, caput, CF preceitua que o Distrito Federal reger-se-á por Lei Orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição da República. Como argumentos em prol de tal entendimento, o fato de que é indubitável que se trata o Distrito Federal de ente diferenciado, por se assemelhar tanto a Estados como Municípios. Ademais, diferentemente dos Municípios, que se encontram indiretamente vinculados à União (a vinculação direta é, antes, aos Estados), o Distrito Federal, sim, possui vinculação direta à União (a mesma vinculação que os Estados têm com a União). Como se não bastasse, o art. 30, da lei 9.868/1999, que autoriza o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios a realizar controle de constitucionalidade com base na Lei Orgânica do Distrito Federal (o que, como regra, só é possível com a Constituição Federal e as Constituições Estaduais).
No mais, em abordagem complementar, apesar de ainda ser dominante o entendimento segundo o qual não ocorre poder constituinte decorrente em se tratando de Leis Orgânicas municipais, divergências também ocorrem nesta seara federativa. De maneira geral, os entendimentos que pendem pela natureza constitucional das Leis Orgânicas municipais (e também da Lei Orgânica distrital) o fazem com base na necessidade de se instituir, efetivamente, um modelo federativo de Estado em que as autonomias sejam consagradas em Leis Fundamentais embasadoras das premissas que regem os entes federativos, e que estas Leis Fundamentais se traduzam em verdadeiras Constituições Federal, Estaduais, Distrital e Municipais. Diz-se, comumente, que se o que se quer é um modelo federativo que efetivamente funcione, o princípio de tudo é reconhecer um modelo de documentos prioritários de cada ente cuja possibilidade de alteração seja mais dificultoso, tal como ocorre com as Constituições Federal e Estaduais. A contra argumentação a esta raciocínio parte da premissa que meras questões de nomenclatura não devem ser suficientes para retirar do Distrito Federal e dos Municípios a autonomia inerente a todos os entes federativos, devendo se dar o processo de alteração de suas leis com a mesma parcimônia que se o faz para o poder constituinte propriamente dito, nada obstante o procedimento simplificado.
Qualquer que seja o posicionamento adotado, urge que sejam pensadas as Leis Orgânicas como representações de uma Federação substancial (e não apenas formal) que envolve também Municípios e Distrito Federal. O fato de não serem denominadas, propriamente, Constituições, não tornam as Leis Orgânicas textos normativos de segunda classe; muito pelo contrário, representam a identidade oficial de entes federativos que necessitam de absoluta consolidação pós-Constituição Federal de 1988 (notadamente pensando no caso dos municípios). O senso de respeito, portanto, deve ser rigorosamente o mesmo.