Federalismo à brasileira

O federalismo e os territórios

O federalismo e os territórios.

27/6/2018

Daniel Barile da Silveira

Territórios são porções de terra pertencentes à União, sem autonomia política (art. 18, §2º, CF/88). Por tal motivo, eles não são considerados entes políticos, bem como não são unidades federativas. Contudo, ocupam um interessante espaço na organização político-administrativa do Estado nacional, de existência marcante em nosso passado recente.

Na história constitucional brasileira sempre houve uma grande preocupação na criação de territórios. Desde a época da Constituinte de 1824, já havia a intenção manifesta do Império de instituir territórios Federais no Brasil. Isto porque seu uso embrionário esteve associado à necessidade de ocupação de espaços de terra pouco habitados, permitindo-se que o Governo Central pudesse estar mais próximo desses recônditos, e, de fato, gerenciar e controlar os anseios populares destas localidades. Uma segunda intenção mais velada seria a de permitir que as antigas capitanias hereditárias menos prósperas pudessem constituir-se paulatinamente em províncias, como que em um ensaio preparatório ou um estágio de passagem para o recebimento de sua autonomia política.    

Entretanto, mesmo diante dos debates constituintes passarem por essas intenções, nem a Constituição de 1824 e, tampouco, a Constituição de 1891 ocuparam-se do tema. Esta fórmula apenas foi explicitada na Constituição de 1934, quando, logo em sua abertura, assim declarava: "Art 1º - A Nação brasileira, constituída pela união perpétua e indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios em Estados Unidos do Brasil, mantém como forma de Governo, sob o regime representativo, a República federativa proclamada em 15 de novembro de 1889".

Sem embargo, nosso primeiro Território foi o do Acre, terminologia que simbolizava "rio de jacarés", na linguagem indígena nativa1. Após um longo período de tensões entre brasileiros e bolivianos, pelo Tratado de Petrópolis, assinado em 17/11/1903, o território do Acre fora incorporado à porção brasileira. Sob o ponto de vista jurídico, estava em vigor, até então, o Tratado de Ayacucho, de 1867, acordo em que o Brasil reconhecia o território do Acre como  pertencente à Bolívia. Conforme relatam  Amado Cervo e Clodoaldo Bueno2, com a assinatura do tratado, ficou o Brasil responsável por: i. pagar o valor de 2 milhões de libras esterlinas pela aquisição; ii.  pagar o valor de 110 mil libras esterlinas ao Bolivian Syndicate3 pela rescisão do contrato celebrado com o governo boliviano; iii. O Brasil cedeu, ainda, algumas terras brasileiras no Amazonas à Bolívia; iv. Comprometeu-se, ainda, a construir a Estrada de Ferrro Madeira-Marmoré para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas4. O território acreano permaneceu vinculado à União até o ano de 1962, quando o então Presidente João Goulart o transformou em Estado (lei 4.070/62).

Durante o Estado Novo de Vargas, outros territórios foram criados: pelo decreto-lei 4.102/42, Fernando de Noronha. Já pelo decreto-lei 5.812/43, foram criados: Amapá (Transformado em Estado em 88, pelo art. 15, ADCT, CF/88), Rio Branco (denominado na década de 60 de Território de Roraima (lei 4.182/62) e posteriormente alterado para Estado pelo art. 14, ADCT, na CF/88), Guaporé (ou Guaporá, transformado pela lei 2.731/56, em Rondônia, e depois, pela LC 41/81, em Estado da Federação), Ponta Porã (que, pelo art. 8º, ADCT da CF/46, foi incorporado ao Mato Grosso e, posteriormente, quando do desmembramento em 1977, ao Mato Grosso do Sul) e Iguaçu (que pelo art. 8º, ADCT, da CF/46, determinou o retorno aos Estados de onde foi desmembrado, Paraná e Santa Catarina)5.

Atualmente, não existem mais territórios brasileiros. Os últimos foram extintos pela Constituição de 1988, como foram os casos de Roraima, Amapá e Fernando de Noronha. Entretanto, nada impede que haja a necessidade popular da criação de novos territórios, desde que observados os requisitos constitucionais mínimos: mediante realização de plebiscito, com criação por lei complementar, a partir da subdivisão ou desmembramento dos Estados já existentes. Caso criados, estariam submissos à autonomia administrativa da União, de modo a que o Presidente da República, diretamente, pudesse organizar os serviços locais e responder pelas demandas surgidas. Apenas em situações excepcionais, como no caso de Território Federal com mais de 100 mil habitantes, poderia ser escolhido um Governador nomeado (art. 33, §3º, CF/88), mas jamais eleito pelo povo.

E qual seria sua utilidade atualmente? No sistema administrativo político brasileiro, a aparição de territórios atualmente demonstra-se quase como que uma desnaturação do sistema de repartição de competências mais equânime,  no contexto de um modelo de federalismo que busca por uma maior simetria. Na realidade, a criação de territórios teria a única função de ocupar espaços não controlados pelos Estados, o que verdadeiramente roubaria competência e território estadual para (novamente) reparti-los à União. Se a crítica maior dos especialistas é de que boa parte das crises federativas advém desse modelo assimétrico, em que grande parcela de poderes e competências restam concentrados no Governo Federal, a criação destas porções territoriais apenas reforçaria uma estrutura já essencialmente centralizada.

Mas será que queremos mais Territórios? Esta resposta é mais difícil de se confessar, pois o futuro ainda é incógnito, já que tal decisão deveria ser chancelada pelas urnas, via plebiscito. Sabe-se, no entanto, que em experiência recente (2011) quando da votação popular para a divisão do Estado do Pará, com vistas à criação de mais dois Estados, Carajás e Tapajós, o povo rejeitou as propostas (cerca de 66%). Muito embora os separatistas indicassem que novos Estados indicariam novo progresso, o argumento prevalecente indicou que a criação de mais Estados apenas fortaleceria a desigualdade regional, acentuaria a dependência desses perante a União em termos de recursos financeiros (e políticos), além, por fim, de onerar o Estado: mais servidores, mais estruturas, mais máquina administrativa, contrariamente a um discurso comum que luta para que  Estado seja mais enxuto e eficiente.

Seria provável que novamente essas e outras críticas viessem à tona, caso avançasse a discussão da criação de novos territórios. O que se sabe é que a busca por organizar o modelo federativo mais simétrico ainda se mostra como uma necessidade urgente.  O risco de tais escolhas é apostar em modelos cujo interesse de fundo pode representar unicamente a perpetuação de ideologias partidárias ou a sedimentação de poderes políticos localizados, mas que nunca, como na maior parte das vezes, está voltado ao pensamento mais altruísta em atender as necessidades da população. Um signo, quase atávico, de usurpação aos desígnios da soberania popular.

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1 Sobre o Acre.

2 CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB, 2008.

3 Companhia organizada em Londres, em 1901, para estabelecer a colonização boliviana no território do Alto Acre. Era associada a acionistas americanos, que praticamente detinham todos os direitos econômicos de exploração na área, de forma exclusiva. Como contrapartida, encarregava-se da compra de toda borracha produzida na localidade, bem como exerceria a polícia local, além de promover o estímulo à produção extrativa. Conforme se relata, a inclusão deste grupo de acionistas no tratado serviria para evitar um eventual atrito entre o governo brasileiro e os EUA, pelo qual o Brasil abriu concessão, indenizando-a.

4 É de se estimar que por volta de   5.000 e 6.000 foram as mortes de trabalhadores na ferrovia em razão de moléstias tropicais, investidas de índios, acidentes, desaparecimentos, bem como de animais que circulavam na mata amazônica. Registra-se, ainda, empregados de mais de 41 nacionalidades trabalhando nas terras brasileiras, na estrada cujo nome popular foi batizado de "Ferrovia do Diabo", ou simplesmente "Mad Maria". IN: SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Record, 2005.

5 Diz o art. 8º, ADCT, da CF/46: "Art 8º - Ficam extintos os atuais Territórios de Iguaçu e Ponta Porã, cujas áreas volverão aos Estados de onde foram desmembradas".

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Daniel Barile da Silveira é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela CDH/IGC, da Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB. Professor do programa de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Marília (Unimar). Professor de Direito Constitucional do curso de Direito do UniToledo (Araçatuba/SP). É advogado e consultor jurídico em Direito Público. Foi pesquisador do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Recebeu Menção Honrosa do Supremo Tribunal Federal do pelo seu trabalho nos "200 anos do Judiciário Independente" (STF). Autor de várias obras jurídicas.

Emerson Ademir Borges de Oliveira é mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Vice-coordenador do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Professor em cursos de pós-graduação no Projuris e USP-Ribeirão Preto. Autor de várias obras e artigos jurídicos. Advogado e parecerista.

Jefferson Aparecido Dias possui doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha (2009). Atualmente é procurador da República do Ministério Público Federal em Marília. É professor permanente do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília.

Rafael de Lazari é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor da graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília - UNIMAR. Professor convidado de pós-graduação (LFG, Projuris Estudos Jurídicos, IED, dentre outros), da Escola Superior de Advocacia, e de cursos preparatórios para concursos e exame da Ordem dos Advogados do Brasil (LFG, IED, IOB Concursos, PCI Concursos, dentre outros). Autor, organizador e participante de inúmeras obras jurídicas, no Brasil e no exterior. Advogado e consultor jurídico.