Federalismo à brasileira

Federalismo e municípios - Parte 2

Federalismo e municípios - Parte 2.

20/6/2018

Jefferson Aparecido Dias

Como já mencionado na primeira parte do presente artigo, a partir da Constituição de 1988 o município passou a ocupar importante posição na Federação brasileira, uma vez que passou a ser considerado um ente federativo, ao lado dos Estados membros e do Distrito Federal, nos termos do art. 1º, do texto constitucional.

Além disso, essa inclusão do município na composição da Federação sequer é passível de alteração por emendas constitucionais, uma vez que o art. 60, §4º, foi expresso em estabelecer que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado".

A Constituição, inclusive o seu núcleo intangível, segundo o Oscar Vilhena Vieira, deve ser considerada uma reserva de Justiça.

Para demonstrar sua posição, o referido autor, citando Jon Elster, equipara o texto constitucional com a estratégia adotada por Ulisses, pois, da mesma forma que ele pediu para ser amarrado ao mastro da embarcação e, com isso, "passar ao largo dos rochedos, ouvir o canto das sereias, sem, no entanto, a ele sucumbir"1, as Constituições também teriam esse papel de proteger o homem das paixões do presente como forma de garantir o seu futuro. Em suas palavras: "neste mesmo sentido, as constituições democráticas atuariam como mecanismos de auto-limitação, ou precomprometimento, adotados pela soberania popular para se proteger de suas paixões e fraquezas (...) protegendo metas de longo prazo que são constantemente subavaliadas por maiorias ávidas por maximizar os seus interesses imediatos"2.

Essas restrições de reforma da Constituição e, ainda, a sua concepção como reserva de Justiça, contudo, não devem ser tidas como limites intransponíveis para a interpretação dos preceitos constitucionais de forma a torná-los mais adequados para serem aplicados na atualidade e no futuro.

Essa possibilidade de interpretação e adequação dos textos constitucionais para superar os desafios que o decurso do tempo apresenta, no caso da Constituição brasileira, somente foi possível pelo fato de ela possuir certa resiliência.

Nesse sentido, esclarece Oscar Vilhena Vieira: "Tomando livremente emprestado um conceito da física, entenda-se por resiliência a propriedade que possuem alguns materiais de acumular energia, quando exigidos ou submetidos a estresse, sem que ocorra ruptura ou modificação permanente. Perduram no tempo, retornando ao ponto de equilíbrio. Não são rígidos no sentido da intolerância a certas pressões. Tampouco são flexíveis no sentido de sua modificação radical em razão de certas pressões. "Acomodam" estímulos e pressões, preservando sua função e sua identidade em diferentes ambientes"3.

Ao se referir expressamente à Constituição de 1988, o mencionado autor defende que ela "se mostrou capaz de assimilar mudanças de rumo determinadas por consensos políticos consistentes, sem perder sua identidade. Viabiliza a sua reforma para a adaptação a novas situações, mas impede que elementos básicos do pacto constitucional sejam abandonados. Essa resiliência textual contribuiu para garantir a estabilidade do pacto político conciliador e a paulatina realização das promessas constitucionais de longo prazo"4.

A partir dessas lições, que, por um lado, concebem a Constituição e seu núcleo intangível como reserva de Justiça, e, por outro, reconhecem que o texto constitucional possui uma resiliência que permite a sua interpretação para melhor aplicação na atualidade e nos desafios que estão por vir, o presente texto propõe uma releitura dos preceitos que, supostamente, restringem a atuação do município nas relações internacionais, em defesa da plena eficácia do princípio federativo.

Neste sentido, é certo que o art. 21, da Constituição, estabelece como competência exclusiva da União "I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais"; e, o seu art. 84, prevê que "Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional".

Tais preceitos constitucionais, contudo, precisam ser analisados à luz do princípio federativo que concebe os municípios como entes federados e, neste sentido, não pode ser interpretado de forma a restringir completamente a atuação dos municípios, em especial diante de uma nova realidade global, na qual as possibilidades de atuação de agentes subnacionais crescem de forma acelerada.

Ao descrever a atual realidade internacional, George Rodrigo Bandeira Galindo reconhece que, "nos últimos anos, o sistema jurídico internacional vem sofrendo um processo chamado por muitos de fragmentação. Tal fragmentação se refere ao surgimento de novos regimes no direito internacional (como o direito econômico ou o direito ambiental) com lógicas, regras e atores próprios. ... O direito internacional não é mais apenas construído pelo Poder Executivo, nas chancelarias – um direito top-won -, mas também por atores não estatais – um direito bottom-up"5.

Assim, se novos atores estão surgindo no direito internacional, alguns deles até mesmo não-governamentais, maior razão para que os municípios brasileiros não sejam impedidos de participar dessa nova realidade, sendo-lhes permitido celebrar acordos internacionais que poderão garantir recursos e tecnologia para o desempenho de suas funções com maior eficiência, além de garantir "uma plena efetividade de nossa Constituição e do ordenamento jurídico em defesa da dignidade da pessoa humana"6.

Claro que tais acordos não poderão ter o formato de tratados, convenções e atos internacionais que dependam de referendo do Congresso Nacional, mas nada impede que os municípios brasileiros celebrem, por exemplo, acordos de cooperação que garantam o repasse de recursos e a transferência de tecnologias, tanto com entes governamentais quanto com entes não-governamentais de outros países, como institutos e universidades.

A título de exemplo, pode ser citado o Município de Uberlândia (MG) que criou a Câmara Técnica de Internacionalização e Atração de Investimentos do Conselho de Desenvolvimento de Uberlândia (CODEN) como forma de implementar projetos que tenham como horizonte a internacionalização do município em 2100 e já permitiu que ele celebrasse convênio com a Singularity University – instituição de pesquisa e educação sediada no Vale do Silício (EUA)7.

Assim, como se vê, a participação dos governos subnacionais, em especial dos municípios brasileiros, nas relações internacionais já é uma realidade, sendo incompreensível apenas a ausência de debates sobre o tema8.

Nesse cenário, imprescindível que a participação dos municípios brasileiros nas relações internacionais seja debatida para que eles possam, efetivamente, ocupar a posição de destaque na Federação brasileira, conforme imaginado pelo constituinte originário.

Afinal, como já mencionado, "ninguém vive na União ou no Estado; as pessoas vivem no município"9.

__________

1 VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição como reserva de justiça. Rev. Lua Nova. São Paulo (SP), v. 42, pp. 53-97, 1997. Acesso em: 19/6/2018.

2 VIEIRA, Oscar Vilhena. Oscar Vilhena. A constituição como reserva de justiça. Rev. Lua Nova. São Paulo (SP), v. 42, pp. 53-97, 1997. Acesso em: 19/6/2018.

3 VIEIRA, Oscar Vilhena. 2. Do compromisso maximizador ao constitucionalismo resiliente In. Dimitri DRIMOULIS, Dimitri et al. Resiliência constitucional : compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. São Paulo: Direito GV, 2013, p. 23-24. Acesso em: 19/6/2018.

4 VIEIRA, Oscar Vilhena. 2. Do compromisso maximizador ao constitucionalismo resiliente In. Dimitri DRIMOULIS, Dimitri et al. Resiliência constitucional : compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. São Paulo: Direito GV, 2013, p. 23-24. Acesso em: 19/6/2018.

5 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Art. 84, VII. In CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva/Almedina, 2013, p. 1241.

6 DIAS, Jefferson Aparecido. Aspectos constitucionais dos atores subnacionais nas relações internacionais. In VIANNA, Lídia M. SALA, José Blanes (orgs). Novos atores e relações internacionais. São Paulo : Cultura Acadêmica; Marília : Oficina Universitária, 2010, p. 253.

7 FERRA, Flávia. Internacionalização de Uberlândia é destaque em evento em BH. ASN – Agência Sebrae de Notícias. Data: 23/10/2017. Acesso em: 19/6/2018.

8 VIGEVANI, Tullo. Problemas para a atividade internacional das unidades subnacionais: estados e municípios brasileiros. Aspectos constitucionais dos atores subnacionais nas relações internacionais. In VIANNA, Lídia M. SALA, José Blanes (orgs). Novos atores e relações internacionais. São Paulo : Cultura Acadêmica; Marília : Oficina Universitária, 2010.

9 BARBOSA, Rubens. André Franco Montoro. O Globo, 08/08/2006, Opinião, p. 7. Acesso em: 19/6/2018.

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Daniel Barile da Silveira é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela CDH/IGC, da Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB. Professor do programa de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Marília (Unimar). Professor de Direito Constitucional do curso de Direito do UniToledo (Araçatuba/SP). É advogado e consultor jurídico em Direito Público. Foi pesquisador do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Recebeu Menção Honrosa do Supremo Tribunal Federal do pelo seu trabalho nos "200 anos do Judiciário Independente" (STF). Autor de várias obras jurídicas.

Emerson Ademir Borges de Oliveira é mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Vice-coordenador do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Professor em cursos de pós-graduação no Projuris e USP-Ribeirão Preto. Autor de várias obras e artigos jurídicos. Advogado e parecerista.

Jefferson Aparecido Dias possui doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha (2009). Atualmente é procurador da República do Ministério Público Federal em Marília. É professor permanente do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília.

Rafael de Lazari é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor da graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília - UNIMAR. Professor convidado de pós-graduação (LFG, Projuris Estudos Jurídicos, IED, dentre outros), da Escola Superior de Advocacia, e de cursos preparatórios para concursos e exame da Ordem dos Advogados do Brasil (LFG, IED, IOB Concursos, PCI Concursos, dentre outros). Autor, organizador e participante de inúmeras obras jurídicas, no Brasil e no exterior. Advogado e consultor jurídico.