Jefferson Aparecido Dias
Segundo Franco Montoro, "ninguém vive na União ou no Estado; as pessoas vivem no município"1.
A partir dessa afirmação, é possível concluir que os municípios deveriam ocupar posição de destaque em nossa Federação, situação que ocorreu, no Brasil, apenas a partir da Constituição de 1988, que incluiu o município como um dos entes federados, ao lado dos Estados membros e do Distrito Federal, conforme preceitua o art. 1º , da Constituição da República, o qual estabelece que a "República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito".
Complementando tal preceito constitucional, o art. 18 estabelece que: "A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição".
Nesse novo cenário, no qual os municípios passam a ostentar autonomia igual à dos Estados, o Brasil passa a ser uma federação "de três níveis territoriais – diferentemente da maioria das outras federações que são segmentadas em apenas dois – em que os limites de autonomia de cada ente são determinados no próprio texto constitucional, tão somente nele"2.
Como somente o texto constitucional é apto a estabelecer os limites da autonomia de cada um dos entes da federação, o grande desafio passa a ser delimitar onde começa e onde termina a competência de municípios, Estados e da própria União.
Assim, se por um lado a Constituição elevou o município à categoria de ente federado, dando-lhe "autoria, não tutelada, nem hierarquizada, de direitos e deveres"3 por outro, o fato de não ter deixado claro o limite de sua autonomia faz com que a federação seja sempre colocada em risco, pois "delimitar as atribuições dos três níveis de poder de modo a preservar a essência do pacto federativo tornou-se tarefa complexa para os teóricos, juristas e especialmente para os poderes públicos"4.
É certo que, em relação às competências, a Constituição de 1988 é mais detalhada do que as suas antecessoras, estabelecendo que a União detém o maior número de competências exclusivas, que os municípios podem legislar sobre as matérias de interesse local e que os Estados possuem competência residual5, porém, quanto à responsabilidade pela prestação de serviços públicos, a Constituição não foi tão clara quanto deveria.
Na verdade, a Constituição acabou por adotar o princípio da solidariedade, a partir do qual a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos essenciais, em especial os sociais, como saúde, educação, segurança pública etc., é dos três níveis, ou seja, dos municípios, dos estados e da União.
A ideia, ao que parece, era estabelecer um federalismo cooperativo a partir do qual os três níveis pudessem colaborar reciprocamente para garantir a prestação de serviços públicos de qualidade e a escassez de recursos fosse superada pela sua eficiente aplicação, permitindo a realização de mais com menor investimento.
A realidade, contudo, acabou por ficar muito distante do projetado pelo constituinte. Primeiro porque a inicial divisão de receitas entre os entes federados foi sendo gradativamente alterada por Emendas Constitucionais e mudanças legislativas que acabaram por concentrar a arrecadação de recursos para os cofres da União, em detrimento dos Tesouros estaduais e municipais.
Segundo porque a esperada cooperação não se concretizou e cada um dos entes federados tenta, de forma intensa, eximir a sua responsabilidade pela prestação dos serviços públicos.
Isso ocorre, dentre outros motivos, por duas razões principais: "A primeira está nas diferentes capacidades dos governos subnacionais de implementarem políticas públicas, dadas as enormes desigualdades financeiras, técnicas e de gestão existentes. A segunda está na ausência de mecanismos constitucionais ou institucionais que estimulem a cooperação, tornando o sistema altamente competitivo"6.
Uma das áreas nas quais essa competição é mais evidente é a que diz respeito ao exercício ao direito à saúde, em especial ao acesso a medicamentos, uma vez que "não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal – União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento"7.
Assim, apesar da Constituição de 1988 ter, ao que parece, buscado estabelecer as bases para um federalismo cooperativo, no qual os municípios teriam papel de extrema relevância, por seus governantes estarem, em tese, mais próximos do cidadão, o certo é que a ausência de preceitos específicos tem dificultado a concretização dessa cooperação entre os entes federados.
A solução, na opinião do prof. Peter Häberle, é a aprovação de uma emenda constitucional que estabeleça regras e princípios expressos para que seja trazido à tona um federalismo cooperativo e superadas as atuais manifestações de forte unitarização8.
Enquanto tais mudanças constitucionais não ocorrem, resta conviver com os conflitos federativos e esperar que eles sejam solucionados pelo Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, da melhor forma possível, pois, caso eles não sejam superados de forma adequada, podem tornar totalmente inútil o texto constitucional e condenar os municípios a manterem uma posição de total submissão aos Governos Federal e Estadual, ou seja, viverem eternamente com o "pires na mão".
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1 BARBOSA, Rubens. André Franco Montoro. O Globo, 08/08/2006, Opinião, p. 7. Acesso em 12/6/2018.
2 LUFT, Rosangela Marina. Os municípios na Constituição de 1988: (nem) todos autônomos nos termos desta Constituição. In Direito constitucional brasileiro: organização do estado e dos poderes. CLÈVE, Clèmerson Merlin (coord.) São Paulo : Revista dos Tribunais, 2014, p. 47.
3 LUFT, Rosangela Marina. Os municípios na Constituição de 1988: (nem) todos autônomos nos termos desta Constituição. In Direito constitucional brasileiro: organização do estado e dos poderes. CLÈVE, Clèmerson Merlin (coord.) São Paulo : Revista dos Tribunais, 2014, p. 45.
4 LUFT, Rosangela Marina. Os municípios na Constituição de 1988: (nem) todos autônomos nos termos desta Constituição. In Direito constitucional brasileiro: organização do estado e dos poderes. CLÈVE, Clèmerson Merlin (coord.) São Paulo : Revista dos Tribunais, 2014, p. 45.
5 SOUZA, Celina. Federalismo, desenho constitucional e instituições federativas no Brasil pós-1988. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 105-121, jun. 2005. Acesso em 12/6/2018.
6 SOUZA, Celina. Federalismo, desenho constitucional e instituições federativas no Brasil pós-1988. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 105-121, jun. 2005. Acesso em 12/6/2018, p. 112.
7 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 60, nº 188, p. 29-60, jan./mar. 2009, p. 35.
8 SANTIAGO, Mariana (org.). Entrevista com o Prof. Dr. Dr. H.C. Mult. Peter Häberle. Data: janeiro de 2018. Rev. Argumentum, RA, Marília/SP, v. 19, nº 1, pp. 263-287, Jan.-Abr. 2018. Acesso em 12/6/2018.