Emerson Ademir Borges de Oliveira
Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga
A democracia não tem cor. Não tem cheiro. Não tem face. Não tem sequer um conceito que possa se mostrar válido para todos os lugares e a qualquer momento. Como já advertira Giovanni Sartori, no tempo, a democracia recebeu "diversos significados, relacionados com contextos históricos e ideais diferenciados"1.
Claro que esta vertente cambiável se escora na própria ideologia que direciona os exercentes do poder, assim como a interpretação que o povo faz do próprio exercício de seu poder. Assim, atualmente, para a maioria, o sistema brasileiro é considerado democrático.
Daí porque ser falho qualquer ato que tente produzir um modelo democrático ideal, que se apresente como coringa para qualquer Estado, tenha ele ou não uma Constituição escrita, seja federalista ou seja unitário. Mas de uma coisa não se furta: a presença do povo.
Nesse contexto, é célebre o discurso de Abraham Lincoln em Gettysburg em 1863: "governo do povo, pelo povo e para o povo"2, a retomar, em verdade, uma ideia antes jogada pelos antecedentes gregos da democracia, enfaticamente em Aristóteles e, antes, em Heródoto.
Mas, ainda assim, é muito pobre uma acepção democrática, que na conceituação do termo, tome por conta apenas o "povo", dado o fato de que este, muitas vezes, se mostra alijado de outros predicativos necessários para que um Estado possa razoavelmente ser considerado democrático. Governos totalitários, em geral, se valem do próprio povo como justificativa para suas decisões, sem que este de fato participe livremente de tal processo.
É nessa ordem que Schumpeter afirma que o governo pelo povo é puramente ficcional. O que existe são governos aprovados pelo povo: "o povo como tal nunca pode realmente governar ou dirigir"3. Tampouco, deve o contexto tomar por base a ideia de uma multidão participando ativamente do processo de formação da decisão estatal.
De fato, não é possível compreender a democracia plasmada em uma sociedade sem a presença mínima de elementos satelitários, da mesma forma que a simples afirmação de presença dos mesmos não conduz à conclusão de regime democrático.
Em 23 de outubro de 1952, o Tribunal Constitucional Alemão, em uma decisão, deu o seguinte conceito à democracia: "a ordem democrática corresponde àquela de um Estado de Direito, fundado sobre a autodeterminação do povo, de acordo com a vontade da maioria, sobre a liberdade e a igualdade, excluído todo o poder violento e arbitrário"4.
Vê-se, somente nessa percepção, a presença de pelo menos seis elementos satelitários à democracia, essenciais para a sobrevivência desta: a) Estado de Direito; b) autodeterminação; c) princípio da maioria; d) liberdade; e) igualdade; f) exclusão de violência e arbitrariedade.
Mas mesmo que aceitemos tais perspectivas como suficientes, cairíamos diante de outro problema: qual é a extensão conceitual de tais elementos conexos? Nota-se, pois, nitidamente, que a caracterização da democracia, em dado momento, não aceitará nenhum tipo de fórmula milagrosa que seja capaz de solidificar um momento, fotografando o plano democrático.
Esse feitio altamente abstrato fez nascer grande consideração pela doutrina de Robert Dahl, para o qual o que existe é um encontro dentro de um desenho poliárquico. Todo e qualquer modelo somente poderá ser tomado por base em face do ponto de equilíbrio entre o grau de participação popular e o grau de oposição. O resultado será o grau de poliarquia, o que não significa necessariamente democracia.
Fica fácil perceber, por exemplo, que elevado grau de participação aliado a elevado grau de oposição performa um regime democrático. E o contrário indica um regime não-democrático. Mas, em meio aos extremos, existem centenas de modelos a gerar dúvida razoável5.
O que nos impele a tal discussão, todavia, é a resposta ao seguinte questionamento: como garantir que um rearranjo federalista mantenha-se no caminho e desenvolvimento democrático?
Nenhum arranjo federalista nacional poderá, sob pena de retrocesso, se furtar à necessidade de manutenção, tanto dos elementos satelitários da jurisprudência alemã, quanto dos elementos poliárquicos de Dahl. O federalismo, enquanto forma de governo que se pretenda democrática, necessita manter o arranjo em equilíbrio, sob pena de surrupiar a participação. Vale dizer, não há arranjo federalista democrático que possa ser considerado válido sem ser antagônico quando existe desequilíbrio federativo e a participação das partes autônomas se faça meramente alegórica.
Cito aqui um exemplo de nossa praxe constitucional: a nomeação de Ministros do Supremo Tribunal Federal, após indicação do Presidente da República (União) e aprovação por maioria absoluta pelo Senado Federal (representantes dos Estados). Pode-se dizer, todavia, que, na prática, o Senado brasileiro jamais se deu a este trabalho, optando por realizar meras chancelas acerca da indicação presidencial, num inequívoco jogo de cartas marcadas.
Apenas Floriano Peixoto, em 1894, sob a ainda recente Constituição de 1891 e malquisto pelo Senado Federal, após assumir forçadamente com a renúncia de Deodoro da Fonseca, experimentou o sabor da rejeição senatorial. Dos onze Ministros que indicara, cinco foram rejeitados. Três deles sequer tinham formação jurídica. Desde 1894, no entanto, não houve uma única reprovação às indicações realizadas pelo Presidente da República.
Nos Estados Unidos, onde os juízes possuem laços partidários inequívocos, cada indicação constitui-se um momento de enorme tensão, com publicização máxima de todos os atos da vida do candidato, bem como a formação de lobbies em sentido favorável ou em sentido contrário à aprovação. O Senado atenta-se, ainda, à opinião pública em torno do indicado. Disso resulta, em momentos espaçados da história política americana, a reprovação de doze candidatos.
Além disso, como temos repetido enfaticamente, o Brasil precisa enfrentar uma democracia realista, possível, não-ideal. Nosso arranjo não pode se furtar às obviedades que contaminam nosso sistema para buscar soluções importadas incapazes de satisfazer as nossas necessidades, como essa que acima mencionamos.
Vamos além: o estímulo ao financiamento privado de campanhas pode se mostrar muito hábil em certos países, deixando de ser as mesmas abastecidas pelo dinheiro público. No Brasil transformou-se em moeda de troca corruptiva: quem fornece o faz com o intuito de, adiante, receber alguma vantagem do ente público administrado pelo seu patrocinado. De outra parte, o financiamento público soa impensável em países socialmente tão deficitários como o Brasil.
É preciso ser realista na consecução de um equilíbrio, limitando-se individualmente as doações, independentemente de origem, de maneira que não possam gerar a necessidade de devolutiva por parte do administrador, ao mesmo tempo em que a cultura da politização poderá gerar mais pessoas dispostas a contribuir, mas sempre de maneira pouco significativa.
Ainda, sobram críticas fecundas ao sistema proporcional para a maioria das funções legislativas. A utilização do meio, além de encarecer enormemente o sistema, afasta aquilo que deveria ser sua maior preocupação: a representatividade. Um candidato que colha votos em centenas de cidades de um Estado como São Paulo a ninguém representa. Com nenhum eleitor estabelece compromissos sérios. Diferentemente, o sistema distrital, além de trazer campanhas muito mais simples, envolve o candidato com sua base, a qual deverá sempre prestar contas, estabelecendo laços fidedignos de representatividade.
Nosso projeto democrático realista precisa ser pensado para o nosso país: absolutamente desigual e de grandes dimensões territoriais. De nada adianta, nestes termos, a construção de institutos que sejam reconhecidos e compreendidos por mínima parcela da população brasileira. Quantas vezes fomos às urnas em plebiscitos e referendos? Quantos projetos de lei são efetivamente populares?
Nosso principal talvez seja tratar o todo como comum. Há locais em que o orçamento participativo se opera. Noutros, 99% da população jamais ouviu o termo.
O federalismo precisa permitir a experiência democrática às partes, ou, como diria Mangabeira Unger, o "experimentalismo democrático"6. Nosso vício unitário ainda reina. Existe a necessidade urgente de atribuir parcela significativa do formato e do processo à competência de seus entes, para cuidar dos seus, sem a reminiscência histórica da velha simetria, como se nossas partes fossem todas iguais. E, ao todo, independentemente das partes, o conselho útil da realidade e a sobriedade da diferença, que nos faz tão ricos culturalmente.
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1 SARTORI, Giovanni. Teoria de la democracia. Madrid: Alianza Universidad, 1987. p. 34.
2 HOFSTADTER, Richard. Great Issues in American History. New York: Vintage Books, 1958. p. 414.
3 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p. 308-309.
4 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Democracia x constitucionalismo: um navio à deriva? Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de trabalho, v.1, p-5-23, 2011.
5 DAHL, Robert. Poliarquia e oposição. São Paulo: Editora USP, 2005. p. 50.
6 UNGER, Roberto Mangabeira. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72. 2011.