Família e Sucessões

A Reforma do Código Civil e as mudanças quanto ao regime de bens - Mudanças na separação convencional de bens - Parte IV

A coluna aborda as propostas de alteração no Código Civil Brasileiro de 2002 relacionadas ao regime de bens, especialmente a separação convencional de bens, feitas pela Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal.

24/7/2024

Nos meus três artigos publicados neste canal, analisei propostas para o tema do regime de bens, pela Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal, para a Reforma e a Atualização do Código Civil de 2002.

No primeiro artigo foram abordadas as proposições relativas ao art. 1.639 – com o novo tratamento da alteração extrajudicial do regime de bens, perante o Tabelionato de Notas – e ao art. 1.653 do Código Civil – na regulação da chamada "sunset clause". No segundo texto, investiguei a possibilidade de criação do regime misto, com algumas de suas consequências, como a necessidade de respeito a normas cogentes. No terceiro, expus sobre as principais modificações relativas ao regime de comunhão parcial de bens. Neste quarto texto, abordarei as proposições em relação à separação convencional de bens.

Como antes destacado, servirão os trabalhos como preparação para a análise das mudanças projetadas para a sucessão legítima e a ordem de vocação hereditária (art. 1.829 do CC), que pretendo abordar na sequência, em um novo artigo, tendo em vista uma conexão entre todos esses assuntos.

Pois bem, o regime da separação convencional de bens está tratado em dois artigos da atual codificação privada: os arts. 1.687 e 1.688, sendo possível a sua instituição por pacto antenupcial ou por contrato de convivência celebrado entre os cônjuges ou conviventes, ou seja, por exercício da autonomia privada dos consortes.

Consoante o atual art. 1.687 do Código Civil, “estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real”. A norma traz a regra básica e fundamental quanto ao regime, ou seja, a de que não haverá a comunicação de qualquer bem, seja posterior ou anterior à celebração do casamento, cabendo a administração desses bens de forma exclusiva a cada um dos cônjuges.

Justamente por isso, cada um dos cônjuges poderá alienar ou gravar com ônus real os seus bens mesmo sendo imóveis, nas hipóteses em que foi convencionada a separação de bens. Esse preceito confirma que somente na separação convencional há uma separação absoluta, sendo livre a disposição de bens, sem a necessidade de outorga conjugal (art. 1.647, caput, do CC). Atualmente não se aplica à separação convencional de bens a Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, que prevê a comunicação dos bens havidos pelos consortes durante a união, incidente apenas na separação legal ou obrigatória de bens, prevista atualmente no art. 1.641 do Código Civil.

Exatamente na linha da última observação, decidiu o Superior Tribunal de Justiça a respeito de união estável e contrato de convivência que “o pacto realizado entre as partes, adotando o regime da separação de bens, possui efeito imediato aos negócios jurídicos a ele posteriores, havidos na relação patrimonial entre os conviventes, tal qual a aquisição do imóvel objeto do litígio, razão pela qual este não deve integrar a partilha. Inaplicabilidade, in casu, da Súmula n. 377 do STF, pois esta se refere à comunicabilidade dos bens no regime de separação legal de bens (prevista no art. 1.641 do CC), que não é caso dos autos. O aludido verbete sumular não tem aplicação quando as partes livremente convencionam a separação absoluta dos bens, por meio de contrato antenupcial. Precedente” (STJ, REsp 1.481.888/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 10.04.2018, DJe 17.04.2018). Como não poderia ser diferente, a afirmação vale para o casamento, sem qualquer ressalva.

Em relação a esse art. 1.687 do Código Civil, destaco que não há qualquer proposta de modificação do texto sugerida pela Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal, mantendo-o integralmente.

No que diz respeito ao art. 1.688 da Norma Geral Privada, em sua atual dicção, “ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulação em contrário no pacto antenupcial”. Mesmo sendo clara a norma, no sentido de que cabe regra em contrário a respeito da contribuição patrimonial para a união no pacto antenupcial, conclui-se que a convenção não pode trazer situação de enorme desproporção, no sentido de que o cônjuge em pior condição financeira terá que arcar com todas as despesas da união. Este último caso, de patente onerosidade excessiva, gera a nulidade absoluta da cláusula constante da convenção antenupcial, pelo que prescreve o art. 1.655 da própria codificação privada. Como visto nos textos anteriores, a Reforma do Código Civil pretende fortalecer essa última afirmação.

Existe debate interessante, travado principalmente no âmbito da jurisprudência, no sentido de se admitir ou não a existência de uma sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. Em outras palavras, mesmo tendo os cônjuges ou conviventes optado pelo regime da separação convencional de bens, por força de pacto antenupcial ou de contrato de convivência, seria viável, juridicamente, que alguns bens fossem partilhados, pela prova efetiva de uma sociedade de fato? Entendo que sim, e há tempos defendo essa posição, sendo certo que é intensa a discussão sobre essa possibilidade no âmbito da jurisprudência superior. De início, concluindo pela não comunicação de bens, com um voto vencido, destaco o seguinte e antigo aresto, de data remota:

“A cláusula do pacto antenupcial que exclui a comunicação dos aquestos impede o reconhecimento de uma sociedade de fato entre marido e mulher para o efeito de dividir os bens adquiridos depois do casamento. Precedentes” (STJ, REsp 404.088/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, Rel. p/ Acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, j. 17.04.2007, DJ 28.05.2007, p. 320).

No entanto, em sentido contrário, colaciona-se outro acórdão, contando com o meu total apoio doutrinário:

“O regime jurídico da separação de bens voluntariamente estabelecido é imutável e deve ser observado, admitindo-se, todavia, excepcionalmente, a participação patrimonial de um cônjuge sobre bem do outro, se efetivamente demonstrada, de modo concreto, a aquisição patrimonial pelo esforço comum, caso dos autos, em que uma das fazendas foi comprada mediante permuta com cabeças de gado que pertenciam ao casal” (STJ, REsp 286.514/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 02.08.2007, DJ 22.10.2007, p. 276).

Como se constata, os julgamentos que admitem a divisão de alguns bens entendem que esta é possível desde que seja provado o efetivo esforço patrimonial comum, exatamente na mesma linha do que restou pacificado no âmbito da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça a respeito da separação legal ou obrigatória de bens (EREsp 1.623.858/MG, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5.ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018).

Prevalecendo a última solução, os bens e rendimentos que devem compor a sociedade de fato são aqueles que foram adquiridos pelo esforço de ambos os cônjuges, cabendo a prova por quem alega o direito no caso concreto. Não há uma simples meação, pois a solução se dá no campo do Direito das Obrigações, especialmente com a regra que veda o enriquecimento sem causa prevista no art. 884 do Código Civil.

A par dessa constatação, cabe ao cônjuge que pretende a divisão o ônus de provar quais bens e rendimentos foram adquiridos com a sua ajuda efetiva. Os bens que compõem essa sociedade de fato devem ser divididos de acordo com os esforços e contribuições patrimoniais de cada um dos cônjuges. A título de ilustração, se um imóvel foi adquirido com 70% de contribuição de uma parte e 30% de contribuição da outra, assim deve ser exatamente partilhado entre os consortes.

Frise-se que não se trata propriamente de uma meação, regida pelo Direito de Família, mas de divisão de acordo com o que cada uma das partes efetivamente auxiliou na aquisição onerosa. Outras regras e princípios servem como amparo para a conclusão seguida.

Além da vedação do enriquecimento sem causa, podem ser mencionadas as disposições relacionadas à sociedade em comum. Conforme o art. 986 do Código Civil, “enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples”. Em complemento, estabelece o art. 988 da mesma Lei Geral Privada que “os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum”.

Em complemento, a existência de uma sociedade de fato no regime da separação convencional de bens também decorre do princípio da boa-fé, retirado do art. 113 do Código Civil. Penso que um cônjuge que nega a divisão de bens adquiridos pela outra parte viola a cláusula geral de boa-fé objetiva, especialmente a confiança depositada pelo outro consorte (Treu und Glauben).

Como outro argumento relevante a ser considerado, destaque-se a proteção do direito de propriedade do cônjuge, sendo esse direito reconhecido pela Constituição Federal Brasileira como um direito e garantia fundamental, conforme previsão constante do seu art. 5º, inc. XXII. Nesse contexto de proteção do direito de propriedade, deve ser considerada a existência de um condomínio de fato entre os cônjuges, nos termos do que estabelecem os arts. 1.314 a 1.322 do Código Civil brasileiro. Negar a partilha dos bens adquiridos pelo esforço patrimonial de um dos cônjuges, mesmo no regime da separação convencional de bens, viola o mandamento superior, que protege o direito subjetivo em questão.

Concluindo, mesmo no sistema atual, existem muitos argumentos jurídicos para sustentar a possibilidade de existência de uma sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. Exatamente nessa linha, outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, mais próximo e do ano de 2019, que reconheceu a viabilidade de uma sociedade de fato dentro da separação convencional, desde que seja construída prova escrita nesse sentido. Como se retira de parte da ementa do acórdão: “o regime jurídico da separação convencional de bens voluntariamente estabelecido pelo ex-casal é imutável, ressalvada manifestação expressa de ambos os cônjuges em sentido contrário ao pacto antenupcial. A prova escrita constitui requisito indispensável para a configuração da sociedade de fato perante os sócios entre si. Inexistência de affectio societatis entre as partes e da prática de atos de gestão ou de assunção dos riscos do negócio pela recorrida” (STJ, REsp 1.706.812/DF, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 03.09.2019, DJe 06.09.2019). O aresto afastou a possibilidade de divisão de bens justamente por não existir prova concreta da sociedade de fato.

No Anteprojeto de Reforma do Código Civil, a Comissão de Juristas sugere necessárias alterações do tratamento legal da separação convencional de bens, com a ampliação da participação patrimonial do cônjuge e do convivente nesse regime.

Um dos objetivos, na minha visão como Relator-Geral do Anteprojeto, é o de compensar a retirada da sua concorrência sucessória com os descendentes do falecido, diante da proposta de alteração do art. 1.829 do CC, que passará a prever o seguinte: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente; IV – aos colaterais até o quarto grau".

Como é notório, hoje se reconhece a concorrência sucessória do cônjuge ou do convivente, com os descendentes do falecido, no regime da separação convencional de bens, conforme já estava previsto no Enunciado n. 270 da III Jornada de Direito Civil. Essa foi a posição consolidada no âmbito da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, no acórdão a seguir: "no regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil" (STJ, REsp 1.382.170/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. João Otávio de Noronha, 2.ª Seção, j. 22.04.2015, DJe 26.05.2015).

A solução causa dúvidas e perplexidade perante a sociedade, uma vez que, pelo senso comum e geral, a separação convencional também deveria afastar a herança e a sucessão, o que não é a nossa realidade jurídica, pois meação e herança não se confundem. Por essa e outras razões é que a Comissão de Juristas sugeriu a retirada da concorrência sucessória do sistema, especialmente em havendo casamento ou união estável pelo regime de separação convencional de bens. Além disso, como tenho afirmado, a concorrência sucessória tornou os inventários litigiosos infindáveis e de difícil solução na prática, estando distanciada da pacífica solução das controvérsias.

Nesse contexto de proposições de mudanças do atual sistema, familiar e sucessório, de início, o Anteprojeto almeja incluir menção expressa à união estável no caput do art. 1.688, como está em praticamente todas as propostas relativas ao regime de bens: "ambos os cônjuges ou conviventes são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulado em contrário no pacto antenupcial, ou em escritura pública de união estável".

O novo § 1º do art. 1.688 do Código Civil trará a inclusão da divisão dos bens havidos pelo esforço comum dos cônjuges e conviventes na separação convencional, admitindo justamente a presença de uma sociedade de fato no regime, e afastando o indesejado enriquecimento sem causa, sanando a polêmica aqui antes exposta: "no regime da separação, admite-se a divisão de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade". Corrige-se, portanto, a lacuna hoje existente sobre o tema, resolvendo-se o dilema exposto, e resolvendo-se a aludida divergência jurisprudencial.

Além disso, há a inclusão de um novo §2º no art. 1.688, in verbis: "o trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar”. Segundo as justificativas da Subcomissão de Direito de Família, trata-se da compensação por economia de cuidado no regime da separação convencional, o que protege o direito das mulheres, de acordo com o protocolo de gênero. Como bem ponderaram, "no sistema normativo ora proposto, fora mantido o regime da separação de bens, criando-se, no parágrafo único do artigo 1.688, o direito a uma compensação econômica ao cônjuge que se dedicou aos cuidados do domicílio comum e aos cuidados da prole (tal dispositivo harmoniza-se com a proposta dos alimentos compensatórios humanitários)".

Após profundas discussões na Comissão de Juristas, nos debates da primeira semana de abril de 2024, as proposições foram aprovadas, por maioria de votos, cabendo agora a sua análise pelo Congresso Nacional Brasileiro, sendo mais do que necessárias, pelos seus próprios fundamentos, na minha opinião doutrinária. Aguardemos, portanto, a sua análise e aprovação pelo Parlamento Brasileiro.

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Colunista

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.