No último dia 16 de julho de 2020, participei, a convite dos professores Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, de curso sobre Alimentos, promovido em plataforma online pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). O evento procurou trazer uma análise interdisciplinar a respeito do instituto, e a mim coube analisar a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica na ação de execução de alimentos. Procurarei aqui compartilhar alguns dos temas abordados naquele encontro, notadamente julgados estaduais pesquisados sobre a temática.
Como é notório, a desconsideração da personalidade jurídica está tratada, em termos gerais, pelo art. 50 do Código Civil, que foi recentemente alterado pela Lei da Liberdade Econômica, a lei 13.874/2019. O comando recebeu cinco novos parágrafos e uma locução final no seu caput, visando a trazer parâmetros objetivos para um maior controle na aplicação da categoria. O Código Civil, como se sabe, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige o abuso da personalidade jurídica – caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial –, somado a um prejuízo ao credor. Essa vertente contrapõe-se à teoria menor – adotada, por exemplo, pelo art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor –, que exige apenas o prejuízo ao credor para que a desconsideração seja efetivada. Por óbvio que, em matéria de Direito de Família, sobretudo quanto aos alimentos, incide a primeira teoria.
Voltando-se à essência do art. 50 do Código Civil, a norma continua a enunciar que, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte interessada ou até do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica. Trata-se da chamada desconsideração da personalidade jurídica direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica, ampliando-se a responsabilidade patrimonial da última.
Com a Lei da Liberdade Econômica, passou-se a prever, na antes citada locução final, que somente serão responsabilizados os sócios ou administradores "beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Adotou-se, portanto, o entendimento de parte considerável da doutrina, consubstanciado no Enunciado n. 7, aprovado na I Jornada de Direito Civil, segundo o qual "só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido". De fato, pela teoria maior, a desconsideração deve atingir apenas o sócio ou administrador que tenha praticado a irregularidade e que por ela tenha sido beneficiado de alguma forma.
Em todos os casos, não se pode negar que a desconsideração da personalidade jurídica é uma exceção à autonomia existente entre a pessoa jurídica e seus membros, inserida expressamente no art. 49-A, caput, do Código Civil pela mesma Lei da Liberdade Econômica, ao preceituar que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. Alguns julgados a seguir expostos confirmam essa premissa para as execuções dos alimentos.
O novo § 1º do art. 50 procurou trazer parâmetros para a definição do que seja o desvio de finalidade, prevendo que esse representa a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Retirou-se, por bem, a menção expressa ao dolo, que constava na Medida Provisória n. 881, que originou a lei. Na previsão atual, o ilícito pode ser doloso, culposo ou praticado em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, sendo o último gerador de uma responsabilidade sem culpa, conforme o Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil. No âmbito das ações de alimentos – e também em outras ações de família –, a prova do dolo é diabólica, de difícil superação, e caso a lei mencionasse esse requisito subjetivo os alimentados teriam grandes dificuldades para efetivar a desconsideração em suas demandas.
Já quanto à confusão patrimonial, outro elemento que pode gerar a configuração do abuso da personalidade jurídica, o § 2º do art. 50 trouxe um rol meramente exemplificativo de situações, tais como a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; e b) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante. A abertura da norma fica clara pelo inciso III do preceito, que estabelece que outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial também podem gerar a confusão patrimonial, caso da hipótese em que a gestão patrimonial de pessoa jurídica e seus membros é compartilhada.
Sobre a desconsideração inversa ou invertida, foi ela positivada pelo § 3º do art. 50 do Código Civil, ao prever que "o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica". Isso já tinha ocorrido com o CPC/2015, que em seu art. 133, § 2º, havia utilizado a expressão já difundida na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que o capítulo relativo ao incidente de desconsideração é aplicável "à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica". As duas previsões, material e processual, equivalem-se, sem qualquer distinção de conteúdo.
Além da desconsideração direta e da inversa, o § 4º do art. 50 do Código Civil acabou por positivar – pelo menos indiretamente – a chamada desconsideração econômica ou a sucessão de empresas, com a possibilidade de extensão de responsabilidades de uma pessoa jurídica para outra, em especial nos casos de confusão patrimonial entre elas. Pelo comando, contudo, "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica".
Sobre os julgados que tratam da desconsideração inversa no âmbito dos alimentos, nota-se que existem acórdãos que a deferem para a responsabilização até de empresa individual de responsabilidade limitada, tratada pelo art. 980-A do Código Civil, formada por apenas uma pessoa (TJSP, Agravo de instrumento n. 2073431-09.2018.8.26.0000, Acórdão n. 13360188, Ribeirão Preto, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto, julgado em 28/02/2020, DJESP 10/03/2020, p. 2227). Não há qualquer óbice para tanto, como já constava do Enunciado n. 470, da V Jornada de Direito Civil: "o patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica".
Essa deve ser a conclusão sobre o tema, mesmo com a nova redação do art. 980-A, § 7º, do Código Civil, novamente inserido pela Lei da Liberdade Econômica: "somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude". A nova norma não afasta, no meu entender, a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica em relação à EIRELI. Da mesma forma, não há qualquer óbice para a desconsideração da personalidade jurídica, inclusive em execução de alimentos, da sociedade limitada unipessoal, incluída pela lei 13.874/2019 no art. 1.052 do Código Civil.
Como regra geral, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica deve seguir o incidente previsto no Estatuto Processual, a fim de concretizar o contraditório e a ampla defesa. Nessa linha, em ação de execução de alimentos, julgou o Tribunal de Santa Catarina no final de 2019 (TJSC, Agravo de instrumento n. 4020797-22.2019.8.24.0000, Florianópolis, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Ricardo Orofino da Luz Fontes, DJSC 29/11/2019, p. 367). Além dessa importante ressalva, diante da incidência da teoria maior da desconsideração, muitos julgados apontam a necessidade de se comprovar os seus requisitos, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Assim sendo, a mera ausência de bens do devedor alimentante, por exemplo, não pode dar ensejo à desconsideração inversa. Somente a título ilustrativo, transcreve-se, trazendo análise a respeito desses elementos em ações de execução de alimentos:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM EXECUÇÃO DE ALIMENTOS DEVIDOS À FILHA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE REJEIÇÃO. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DA PERSONALIDADE CARACTERIZADO PELO DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COM INTUITO DE LESAR CREDORES, ESPECIFICAMENTE, NO CASO, A ALIMENTANDA. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa jurídica controlada. (TJSC, AI n. 2000.018889-1, Rel. Des. Trindade dos Santos, j. 13-9-2001). (...)" (TJSC, Agravo de instrumento n. 4001454-11.2017.8.24.0000, Palmitos, Sétima Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, DJSC 05/08/2019, p. 206).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. Pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Decisão que indeferiu o pedido. Recurso interposto pela autora. Inconformismo com o indeferimento repisando os argumentos aduzidos no pedido. Alimentos que devem ser buscados do provedor inadimplente. Inexistência de comprovação de insolvência do devedor de alimentos. Ausência de motivos que justifique a instauração do incidente processual requerido. Decisão que não se mostra teratológica. Recurso a que se nega provimento. Manutenção da decisão" (TJRJ, Agravo de instrumento n. 0033765-64.2017.8.19.0000, Niterói, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Brandão de Oliveira, DORJ 10/04/2018, p. 20).
"DIREITO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INOCORRÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. FALTA DE PROVAS DE CONFUSÃO PATRIMONIAL OU OCORRÊNCIA DE FRAUDE. LIMINAR INDEFERIDA. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Cuida-se de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão proferida em execução de alimentos, que indeferiu a desconsideração inversa da personalidade jurídica, sob o fundamento de que simples ausência de bens em nome do executado não acarreta necessariamente na desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa que é sócio. 1.1. No recurso, o agravante pede a reforma da decisão, sustentando, em resumo, que estariam presentes os requisitos exigidos pela legislação para o deferimento da medida, pois o agravado, na condição de sócio de empresa, utiliza-se da pessoa jurídica para deixar de cumprir as suas obrigações, especialmente do pagamento da prestação alimentícia do agravante. 2. Não há que se falar em desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa em que o alimentante é sócio, porquanto constitui medida excepcional, aplicável somente nos casos em que evidenciadas as circunstâncias legalmente definidas, o que não é a hipótese dos autos. 2.1. Para que haja a desconsideração inversa deve haver o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, conforme art. 50 do Código Civil. (...). 4. Na desconsideração inversa, os bens da sociedade devem responder por atos praticados pelo sócio. Ou seja: A proteção patrimonial da sociedade é retirada, permitindo-se que a pessoa jurídica responda com seus bens por atos praticados pela pessoa física do sócio. 5. Tal instituto foi criado para casos em que o devedor esvazia o seu patrimônio pessoal, transferindo os seus bens para a titularidade da pessoa jurídica, em flagrante abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. 6. O Superior Tribunal de Justiça admite a desconsideração da personalidade jurídica inversa quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02: [...] III. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. IV. Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. V. A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. [... ] (RESP 948.117/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 03/08/2010). 7. No caso dos autos, a simples afirmação de que o agravado não possui bens penhoráveis, é insuficiente para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, porquanto não há provas da concretização de fraude à Lei ou a terceiros. 7.1. Ademais, não existem fundamentos para a alegação de confusão patrimonial entre a empresa e o executado, ou mesmo a ocorrência de fraude com o intuito de afastar a responsabilidade pelo pagamento de dívidas. 8. Agravo improvido" (TJDF, Processo n. 0703.88.8.372018-8070000, Acórdão n. 111.1403, Segunda Turma Cível, Rel. Des. João Egmont, julgado em 25/07/2018, DJDFTE 01/08/2018).
Como se pode notar, apesar de contar com uma série de benefícios materiais e processuais, inclusive com a possibilidade de prisão civil do devedor, o credor dos alimentos que executa a sua dívida está submetido à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, com mais requisitos e rigor para que qualquer uma das suas modalidades seja efetivada, especialmente a desconsideração inversa. Não deixa de ser uma contradição, mas é a nossa realidade legislativa, que deve ser considerada para os devidos fins práticos.