Família e Sucessões

A desconsideração da personalidade jurídica e suas aplicações ao Direito de Família e das sucessões - Parte 3

A desconsideração da personalidade jurídica e suas aplicações ao Direito de Família e das sucessões.

13/12/2017

Para encerrar a série de artigos sobre a desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, tema da minha conferência no XI Congresso Brasileiro do IBDFAM, em outubro de 2017, veremos como a jurisprudência tem aplicado o tratamento constante do novo CPC a respeito do tema. Adiante-se que, respondendo à pergunta que me foi formulada pelos organizadores daquele evento, o CPC/2015, sem dúvidas, consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica.

Partindo para a análise dos julgados sobre o tema, merece destaque acórdão paulista que considerou ser o incidente de desconsideração da personalidade jurídica prevista no novo CPC uma espécie de intervenção de terceiros que recebeu disciplina processual expressa com o fito de harmonizar a desconsideração da personalidade jurídica com o princípio do contraditório, nos termos do art. 5º, inc. LV, da CF/1988 e dos arts. 7º, 9º e 10 do próprio Estatuto Processual. Por isso, nos termos da ementa, seria "imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando não requerida na petição inicial, com a consequente citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestação e requerimento das provas cabíveis no prazo de 15 dias (art. 135, CPC), assegurando àquele contra qual foi deduzido o pedido, sua defesa e ampla produção de provas para proteção de seu patrimônio" (TJ/SP, Agravo de Instrumento 2044457-93.2017.8.26.0000, Acórdão 10510779, São Paulo, Rel. Des. Gilberto Leme, 35ª Câmara de Direito Privado, julgado em 12/6/2017, DJESP 22/6/2017, p. 2.275).

No que diz respeito à aplicação do incidente em desconsideração inversa, concluiu o Tribunal do Distrito Federal que, para o seu processamento, a parte autora necessariamente deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos, tal qual dispõe o § 4º do artigo 134 do Código Instrumental em vigor. Assim, o requerimento de instauração do incidente deve trazer: a) os fatos correlatos; b) o fundamento legal para o seu deferimento; c) a indicação precisa dos requisitos da teoria a ser adotada (se a maior ou menor, como antes desenvolvido no primeiro artigo desta série), e d) a juntada dos documentos necessários à identificação da pessoa jurídica e à comprovação dos fatos narrados, "tudo a fim de possibilitar o exercício do contraditório e da ampla defesa" (TJ/DF, Agravo Interno 2016.00.2.039371-5, Acórdão 999.200, Rel. Des. Flavio Renato Jaquet Rostirola, 3ª Turma Cível, julgado em 22/2/2017, DJDFTE 9/3/2017). Note-se que os julgados insistem na questão relativa aos benefícios que o incidente trouxe para a ampla defesa e para o contraditório.

Em outra ementa de destaque, o Tribunal Gaúcho entendeu que a desconsideração inversa da personalidade jurídica, pelo menos em regra, deve ser procedida mediante instauração de incidente, afastando-se o pedido de desconsideração em ação de prestação de contas. O decisum considerou, ainda, que não há que se falar em decisão extra petita em razão de o julgador monocrático ter determinado o bloqueio de ativos financeiros da pessoa jurídica, diante dos fortes indícios de que o réu – ex-marido – estava transferindo bens para ela a fim de frustrar a partilha de bens em relação à ex-mulher. Foram então mantidas as penhoras determinadas pelo juízo, "pois, na medida em que observam a ordem de preferência prevista no art. 835 do NCPC, mormente considerando que a autora vem tentando receber a sua meação há anos, sem sucesso, diante das manobras engendradas pelo réu" (TJ/RS, Agravo de Instrumento 0249353-59.2016.8.21.7000, Pelotas, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, 7ª Câmara Cível, julgado em 26/10/2016, DJERS 1º/11/2016).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça merece ser destacado acórdão que ordenou a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica em hipótese fática na qual um escritório de advocacia cobra honorários de um famoso ex-jogador de futebol. Alegou o escritório que o requerido seria sócio oculto de empresa e que teria transferido todo o seu patrimônio para a pessoa jurídica, impedindo a satisfação obrigacional.

A Corte determinou ao juiz de primeira instância que instaurasse o procedimento previsto no CPC/2015, com a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Como consta de trecho da ementa do julgado, com honrosa citação deste autor, "a personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe a existir. [...]. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15" (STJ, REsp 1.647.362/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 3/8/2017, DJe 10/8/2017).

A conclusão constante da parte final da ementa é importante pela sua grande repercussão prática, no sentido de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por ser matéria de cunho processual, tem aplicação imediata, diante da máxima segundo a qual o tempo rege o ato, ou seja, os atos jurídicos processuais são regidos pela lei da época em que geram efeitos.

Outro aresto superior que merece ser apontado, exposto em minha palestra sobre o tema no XI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do IBDFAM, é o julgamento do Recurso Especial 1.522.142/PR, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, com relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze, julgado em 13 de junho de 2017. Trata-se de mais um caso envolvendo a desconsideração inversa da personalidade jurídica, em que o marido utilizou-se da sociedade empresária que controlava, por meio de interposta pessoa, com a intenção de retirar da sua esposa direitos que seriam divididos, por força da meação.

O acórdão conclui que a sócia da empresa, cuja personalidade jurídica pretendeu-se desconsiderar, foi beneficiada por suposta transferência fraudulenta de cotas sociais pelo marido. Assim, foi reconhecida a sua legitimidade para integrar a ação de divórcio cumulada com partilha de bens, "no bojo da qual se requereu a declaração de ineficácia do negócio jurídico que teve por propósito transferir a participação do sócio/ex-marido à sócia remanescente (sua cunhada), dias antes da consecução da separação de fato" (Recurso Especial 1.522.142/PR).

Como se pode perceber, aplicando a saudável ideia de instrumentalidade processual, a desconsideração inversa da personalidade jurídica foi reconhecida na própria ação de divórcio, conclusão que deve ser a mesma para os casos de ação de dissolução de união estável, equiparada processualmente à primeira pelo novo CPC (arts. 693 e 732).

Em complemento, penso que é possível que o respectivo incidente de desconsideração corra dentro dessas ações, aplicando-se o instituto do julgamento antecipado parcial de mérito, previsto no art. 356 do novo CPC. Conforme a norma, o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento. A título de concreção, é perfeitamente possível cumular a ação de divórcio ou de dissolução de união estável com o pedido de desconsideração da personalidade jurídica e de outras questões pertinentes. Como primeira medida, o juiz deve conceder o divórcio, seguindo com a discussão dos outros temas da demanda, assim como ocorre com os pedidos de alimentos e de partilha de bens.

Com essas conclusões finais, encerro a série de três artigos sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Agradeço à direção e a todos do Migalhas por mais esta oportunidade. E que, em 2018, possamos renovar os nossos laços, com mais temas sobre o Direito de Família e das Sucessões. Feliz Natal e um próspero Ano Novo a todos.

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Colunista

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.