A legislação processual faz previsões abstratas e cabe aos operadores do direito a aplicação dessa norma ao caso concreto. O CPC de 2015 reforça a noção de justiça multiportas, especificando que o Poder Judiciário não é a única forma de resolução de um conflito, determinando que juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, estimulem a conciliação, mediação e outras formas de solução de conflito, inclusive no curso do processo judicial.
A experiência de sucesso de algumas situações concretas pode auxiliar outros profissionais na aplicação da norma abstrata. Busca-se analisar se essas boas práticas têm sido utilizadas no sistema multiportas.
As Boas Práticas surgem a partir da indeterminação, lacuna ou vagueza das disposições normativas processuais, viabilizando que os operadores do direito, sejam eles, juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores públicos, etc., encontrem soluções práticas e eficientes para a resolução de demandas sociais repetitivas, a fim de propiciar o correto desempenho do sistema de justiça e, de certa forma, promover a celeridade processual e estimular o aperfeiçoamento do uso das mais diversas portas de acesso à uma ordem jurídica justa.
A análise das boas práticas revela que algumas têm se tornado verdadeiros costumes processuais e tendências dos Tribunais na resolução de uma determinada demanda social que se repete, enquadrando-se como soft law, ressaltando a sua importância para o processo civil1.
Exemplos de boas práticas seriam as práticas em processos estruturais (audiências preliminares para conhecimento do caso); em julgamentos colegiados como o pré-anúncio do voto do relator, de modo a tornar a sustentação oral algo prescindível; na arbitragem internacional, como o dever de revelar circunstâncias que possam ensejar fundada dúvida sobre a imparcialidade do árbitro, como previsto nas diretrizes da IBA, e também o art. 14 da Lei nacional de Arbitragem (lei 9.307 de 23 de Setembro de 1996)2.
As boas práticas passam a ser estudadas pela doutrina e por vários operadores do direito. O CNJ criou um portal de boas práticas processuais3 e já editou normas4 prestigiando-as. O Conselho Nacional do Ministério Público dedica um setor de sua página na web à disseminação e divulgação de boas práticas5. O STJ já promoveu evento para promover o intercâmbio de boas práticas6. Alguns tribunais já prestigiam as boas práticas, como o Tribunal de Contas do Paraná, que lançou curso de boas práticas em execução fiscal; o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo7, que possui um manual de boas práticas cartorárias8; o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que promove mostras de boas práticas há alguns anos9.
As boas práticas, portanto, têm como característica basilar a inovação no âmbito da administração da justiça. Inovação como sinônimo de propor ideias que surgem através de demandas sociais identificadas através de uma visão ampla do sistema de justiça. Fredie Didier e Leandro Fernandez lecionam que para que a administração da justiça tenha uma verdadeira cultura de inovação, além dos estímulos da prática, há necessidade de permanente reflexão sobre a organização e funcionamento do sistema de justiça; de recursos para identificar problemas institucionais. Destacam os autores, ainda, a importância da “participação de integrantes da academia, e com meios para a realização de testes das soluções concebidas (prototipagem)”10.
São requisitos fundamentais para considerar uma boa prática: (i) a adequação de um caso, ou de um perfil de casos a uma determinada demanda social; (ii) conformidade com o ordenamento jurídico; (iii) caráter inovador da prática; e, (iv) promoção de determinado bem jurídico em extensão superior àquela assegurada pelos modelos básicos tradicionalmente adotados.
A portaria 140/19 do CNJ define a boa prática no art. 4º, inciso I: “experiência, atividade, ação, caso de sucesso, projeto ou programa, cujos resultados sejam notórios pela eficiência, eficácia e/ou efetividade e que contribuam para o aprimoramento e/ou desenvolvimento de determinada tarefa, atividade ou procedimento do Poder Judiciário”11.
As boas práticas podem ser enquadradas em duas modalidades: práticas com pretensão de institucionalização e práticas desenvolvidas para o atendimento das peculiaridades de um caso concreto.
As primeiras são concebidas pelo CNJ, pelos tribunais ou por outras entidades como estratégias institucionais para a solução de problemas identificados no sistema de justiça ou para aperfeiçoar o seu funcionamento. Já as boas práticas para o atendimento de um caso concreto são pensadas de acordo com as peculiaridades de um determinado caso jurídico, tem como fito a resolução de um problema específico ou de um conjunto de problemas. Frisa-se que, por óbvio, uma boa prática elaborada para solucionar um caso concreto pode ser elevada ao status da institucionalização. Cabe ao Conselho Nacional de Justiça a função de observatório nacional das boas práticas judiciárias, compilando-as, divulgando-as e promovendo-as, e se for o caso levá-las à institucionalização por parte de tribunais, pelo próprio CNJ ou por outras entidades12.
São características das boas práticas, trazidas por Fredie Didier e Leandro Fernandez13:
a) A característica da inovação, isso porque as boas práticas não estão previstas como padrão de funcionamento ou de organização do Poder Judiciário. Elas são práticas lícitas construídas a partir dos espaços de criatividade permitidos dentro do ordenamento jurídico. Caso se constate seu sucesso, é bom que sejam incorporadas ao sistema jurídico e consagradas como políticas públicas vinculantes do Judiciário.
b) A adequação, que também é um princípio que norteia a escolha da melhor “porta” a ser escolhida no sistema de justiça multiportas. Por meio desta característica deve se analisar a adaptação do processo ou a organização ou o funcionamento do judiciário às peculiaridades de certo perfil de casos ou de determinadas demandas sociais. Como exemplo, temos a autorização do juízo 100% digital em razão da demanda social que adveio da pandemia de Covid-19, através da Resolução 345/20 do CNJ.
c) A conformidade com o ordenamento jurídico. Isto porque as boas práticas na administração da justiça devem respeitar as normas previstas no ordenamento jurídico. Sua adoção não pode, de maneira alguma, implicar em uma ameaça às garantias constitucionais e processuais das partes, ou às prerrogativas da advocacia e da magistratura.
d) Promoção de determinado bem jurídico em extensão superior àquela assegurada pelos modelos básicos tradicionalmente adotados, como outro traço relativo às boas práticas, isto porque, elevar ao “status de boa prática” um conjunto de atos institucionais envolve que eles perpassem pelo crivo da eficiência. A eficiência de uma boa prática é analisada por alguns primas, quais sejam, o quantitativo, o qualitativo e o probabilístico. O órgão jurisdicional deve escolher como boa prática, uma prática que promova resultados significantes, este é o prisma quantitativo. Já o prisma qualitativo se depreende da análise de que não se pode escolher um meio que promova resultados negativos. O prisma probabilístico compreende o fato de que não se pode escolher como boa prática aquela que promove um resultado duvidoso, deve se escolher um meio que produza resultados certos e eficientes capazes de solucionar demandas sociais.
d) Outra característica inerente a uma boa prática é a não definitividade. Tal característica é fundamental quando se pretende institucionalizar a boa prática. Esse atributo refere-se ao fato de que as boas práticas são concebidas em um modelo flexível de gestão dos processos e do judiciário, é entender que as boas práticas possuem uma natureza experimental, podendo compreender uma etapa de prototipagem em seu desenvolvimento. A escolha pela revisão, pelo abandono ou até mesmo pela institucionalização daquela prática compreende a verificação da sua aptidão ou eficiência no que tange ao alcance dos objetivos pretendidos.
e) Caráter tendencialmente replicável: uma característica inerente a uma boa prática é que elas podem ser repetidas, utilizadas como parâmetro em outros tribunais ou juízos com as adaptações necessárias às suas especificidades o que culminará em novas experiências institucionais. Uma prática bem-sucedida raramente é utilizada em apenas em uma ocasião, ressalvados os casos de boas práticas criadas para o atendimento e resolução de um caso concreto, haja vista suas particularidades. O CNJ através da portaria 140/19 prevê como critério de identificação de uma boa prática, a exportabilidade, ou seja, a viabilidade de replicação desta prática em outras organizações.
O Código de Processo Civil reforçou o modelo de sistema de justiça multiportas, incentivando e estimulando a resolução de disputas de forma não somente jurisdicional, mas considerando as diversas “portas” de acesso à justiça ou de acesso à uma ordem jurídica justa, como a mediação, a arbitragem, a conciliação, as ODR’s14, os Dispute Boards, a negociação, dentre outros. Dessa forma, a demanda deve ser submetida à técnica ou ao método mais apropriado de solução daquele problema, ou seja, no momento da escolha do método de resolução da disputa, deve ser levado em consideração pelas partes o princípio da adequação a fim de propiciar uma tutela jurisdicional mais efetiva, célere e apropriada ao problema juridicamente proposto.
O modelo de sistema de justiça multiportas veio para ressignificar o acesso à justiça, permitindo que tanto as partes quanto o operador do direito observem que não é somente o processo judicial, ou seja, o processo adjudicatório, o único meio hábil a solucionar aquele conflito que é trazido e que demanda uma solução, outros meios não jurisdicionais podem ser, inclusive, muito mais eficientes, para que se alcance a solução mais efetiva ao litígio.
A justiça multiportas é uma metáfora em que se imagina um labirinto onde existem diversas porta de solução de um problema jurídico, tais como a porta da mediação, a da arbitragem, a da conciliação, a dos Dispute Boards, a das ODR`s, a negociação, etc.
O Estatuto da OAB diz que o advogado deve estimular que as partes cheguem a um acordo, fomentando assim a negociação, e a tarefa do operador do direito é justamente a de diagnosticar o problema e através do princípio da adequação, encaminhá-lo à porta mais eficiente a resolvê-lo. Entender e compreender o modelo de sistema de justiça multiportas é compreender que nem sempre o caminho do judiciário é o mais adequado, embora seja ele uma das diversas portas existentes no sistema.
O art. 3º do CPC eleva a solução adequada de conflitos ao status de norma fundamental do processo e as boas práticas podem auxiliar na efetivação de meios de solução de conflitos mais adequados.
As boas práticas podem servir como meio de aperfeiçoamento do sistema de justiça multiportas pois elas cumprem o papel de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.
Em 2014, foi promovido Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil, fruto de uma parceria entre a Secretaria de Reforma do Judiciário e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, teve coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Maria Tereza Sadek, Kazuo Watanabe, Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha15. O estudo analisou 5 casos concretos nas 5 regiões do Brasil e trouxe ao final diretrizes para boas práticas de mediação de conflitos.
Nessa pesquisa, algumas boas práticas de mediação foram coincidentes em vários projetos como: (i) legitimação pelos atores do sistema de Justiça (Ministério Público, Cejuscs e Defensoria Pública foram os legitimadores em alguns casos de sucesso); (ii) importância da pré-mediação, acolhimento e adesão; (iii) supervisão; (iv) estabelecimento de parcerias com entes públicos e privados e sociedade.
No Fórum Permanente de Processualistas Civis, (FPPC-XI) de 2022, em Brasília, foi aprovada como boa prática e como prática não jurisdicional de solução de conflito, a atuação concertada entre câmaras de autocomposição dos Estados e as respectivas Defensorias Públicas, que envolve os órgãos do Rio de Janeiro: Procuradoria de Métodos Adequados de Solução de Controvérsias e Direitos Humanos da PGE-RJ, a Secretaria de Estado de Saúde do RJ, e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; e órgãos no Pará quais sejam: a Procuradoria Geral do Estado (Câmara de Negociação, Conciliação, Mediação e Arbitragem) e a Defensoria Pública do Estado do Pará16.
Esta boa prática aprovada pela plenária no XI FPPC em 2022, consiste na prevenção de litígios por meio das câmaras de autocomposição dos Estados, onde eventuais pleitos contra o Estado são levados pela Defensoria Pública à Câmara para eventual tratamento do litígio, sem a necessidade de submissão ao Judiciário. No Rio de Janeiro cerca de 18.000 demandas foram atendidas pela Câmara evitando sua judicialização. No estado do Pará é utilizado o processo administrativo eletrônico a fim de facilitar a comunicação e solução das demandas.
Tal prática foi apresentada pelo grupo de práticas não jurisdicionais de solução de conflitos. São responsáveis pela prática: Procuradorias dos Estados do Rio de Janeiro e do Pará. Defensorias Públicas dos Estados do Rio de Janeiro e do Pará, defensores e servidores das secretarias envolvidas.
No portal de boas práticas no portal do CNJ há diversos exemplos de práticas aplicadas a sistema multiportas. Podem-se citar como exemplos: Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), serviço oferecido pela comarca de Belo Horizonte; Conciliação em Domicílio, na Comarca de Governador Valadares; Sistema de Negociação Virtual implementado no sistema PROJUD na Bahia; Robô de atendimento por WhatsApp "Jefinho" em conciliações; PAPRE Posto de Atendimento Pré-Processual no TJMG; Adoção do processo negocial eletrônico (PNe) como método permanente e paralelo ao PJe17.
Pensar em boas práticas e replicá-las em outros órgãos é algo muito recente, mas que tem um potencial imenso de propiciar meios de solução de conflitos ainda mais adequados. Várias práticas já foram colocadas à prova com sucesso, resta a institucionalização de algumas que são passíveis de serem reproduzidas nacionalmente.
Aos operadores do direito que ainda são relutantes ao sistema multiportas é necessário deixar de lado a visão de que a única forma de resolver um conflito é o Poder Judiciário e dar uma chance a outras portas no caso concreto. Com o avanço da tecnologia, novas práticas devem surgir nos próximos meses e anos, transformando a prestação jurisdicional e possivelmente ampliando o acesso à justiça. Resta investir também em acessibilidade digital para que todos os jurisdicionados possam usufruir dessas inovações.
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1 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao estudo das boas práticas na administração da justiça: a relevância dogmática da inovação. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro 84, abr./jun. 2022, p. 2.
2 Idem ibidem.
3 Disponível em: https://boaspraticas.cnj.jus.br/portal
4 Pode-se citar como exemplo a Portaria 140/19 (Boas práticas do Poder Judiciário); Resolução 345/22 (juízo 100% digital); Resoluções 385/21 e 398/21 (Núcleo de Justiça 4.0); Resolução 395/21 (Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário), etc.
5 Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/servicos/101-enasp/216-boas-praticas
6 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-10-09_17-45_Evento-promove-intercambio-de-boas-praticas-sobre-sistema-de-precedentes.aspx
7 Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/conteudo/online-boas-praticas-execucoes-fiscais-medidas-judiciais-para-pesquisa-de-bens-curso-online/339886/area/59
8 Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/Manuais/CartilhaBoasPraticas.pdf
9 Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/gestao-estrategica/mostra-das-boas-praticas.
10 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao estudo das boas práticas na administração da justiça: a relevância dogmática da inovação. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 84, abr./jun. 2022, 13.
11 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3021.
12 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, ob. cit.
13 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, ob. cit.
14 Plataformas de resolução de conflitos on-line (chamadas em inglês de ODR - Online Dispute Resolution).
15 Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil. coordenação : Ada Pellegrini Grinover, Maria Tereza Sadek e Kazuo Watanabe (CEBEPEJ) , Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha (FGV Direito SP) ; colaboradores : Adolfo Braga Neto ... [et al.]. – Brasília : Ministério da Justiça,
Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/6850/1/BOAS_PRATICAS_EM_MEDIACAO_NO_BRASIL.pdf
16 Disponível em: https://diarioprocessualonline.files.wordpress.com/2022/03/enunciados-fpcc-2022-1.pdf
17 Disponível em: https://boaspraticas.cnj.jus.br/por-eixo/9.