"Há vários caminhos até a montanha". A expressão, oriunda de um provérbio hindu, lembra-nos que o mesmo objetivo pode ser alcançado de várias formas e por diversos caminhos1. Diz o provérbio que "o único que perde tempo é aquele que corre ao redor da montanha, apontando a todos que o caminho deste ou desta pessoa é errado".
É exatamente o que ocorre com a desjudicialização da execução civil (PL 6204/2019). Por que, em vez de sermos refratários a esta inovação, não a consideramos como um marco que nos convida a pensar em outros caminhos (portas) para a execução?
Nosso sistema convive com modelos executivos extrajudiciais e desjurisdicionalizados desde a década de 60. Assim ocorreu com a recuperação de créditos ou de imóveis vendidos sob a égide do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) por meio da lei 4.380/1964. Como a própria estrutura do SFH planejava a reinserção do capital financiado, gerando novas operações de financiamento e novos empreendimentos imobiliários, em 21 de novembro de 1966, foi publicado o decreto-lei (DL) 70, criando um procedimento extrajudicial de recuperação de créditos2. De acordo com os artigos 31 e 32 dessa norma, não havendo o pagamento da dívida hipotecária, no todo ou em parte, ficaria a critério do credor comunicar os fatos ao agente fiduciário, solicitando a execução da dívida; permanecendo a inadimplência, esse agente privado poderia promover, de forma autônoma e sem qualquer intervenção judicial, o leilão do imóvel hipotecado3.
Três anos depois, o decreto-lei 911/1969 alterou o artigo 66 da lei 4.728/1965, fazendo constar expressamente, no § 4.º desse dispositivo, que, no caso de inadimplência de obrigações contratuais garantidas por alienação fiduciária de bens imóveis, o proprietário fiduciário poderia vender a coisa a terceiros e aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o saldo porventura apurado, se houver.
Há mais de 50 anos, portanto, o ordenamento jurídico brasileiro já previa a possibilidade de venda de imóvel em razão de dívida contratual, sem qualquer intervenção judicial ou extrajudicial, por iniciativa única e exclusiva do credor, como forma de desafogar o Poder Judiciário, dar maior celeridade ao procedimento e segurança jurídica aos contratos firmados mediante alienação fiduciária.
A partir daí, há vários outros exemplos. Quinze anos depois, a lei 6.766/1979, que regula loteamentos e parcelamentos de terrenos urbanos – mais tarde alterada pela lei 13.786/2018 –, veio a permitir que, caso o devedor não pague as prestações, seja constituído em mora e tenha a averbação do loteamento cancelada (art. 32 e parágrafos), procedimento feito todo mediante o cartório de registro de imóveis, sem qualquer intervenção judicial. Em 1997, a Lei n.º 9.514 previu o procedimento extrajudicial de execução, ao dispor acerca da alienação fiduciária de imóvel, permitindo a constituição do devedor em mora e a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, sem a instauração do contraditório entre as partes. Portanto, há a transferência da propriedade do bem, feita diretamente pelo cartório de registro de imóveis, sem qualquer interferência ou análise do Poder Judiciário.
Em movimentos mais recentes sobre a desjudicialização de atos para os cartórios brasileiros, pode-se citar a lei 10.931/2004, que trata da retificação do registro imobiliário. Apontam-se ainda: lei 11.441/2007, que alterou dispositivos da lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa; lei 13.484/2017, que alterou a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, permitindo a retificação de registro civil; CPC/2015, que institui o usucapião extrajudicial no seu artigo 1.071, alterando o Capítulo III do Título V da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos).
Assim, é possível perceber como a proposta de desjudicialização contida no PL 6.204/2019, para além de constituir uma novidade, apresenta-se como um novo e relevante passo nesse movimento de "extrajudicialização" de atos como forma de aprimorar a atividade jurisdicional.
O sistema multiportas iniciou-se com os olhos voltados para a fase cognitiva do processo, na qual o jurisdicionado opta pelo meio mais adequado de resolução do seu problema, conforme as peculiaridades do caso concreto. Na estrutura da Multi-Door Courthouse, há uma forma de solução adequada para cada situação. Deve-se, portanto, dar um passo a mais e levar o sistema multiportas para a fase de satisfação do direito – a fase executiva –, conjugando-se o tradicional meio do processo estatal, com os demais mecanismos predispostos pelo ordenamento jurídico, para adequar-se às diferentes formas e especificidades da pretensão executiva, admitindo-se a coexistência de outras portas além de estatal: a descentralização, a desjudicialização e a desjurisdicionalização.
Por que não se permitir uma abertura para a livre iniciativa4, por meio da participação de agentes de execução privados, como incentivo à livre concorrência? O agente de execução poderia ser tanto público quanto privado, de livre nomeação pelas partes, por convenção processual, ou nomeado pelo juiz, podendo praticar todos os atos executivos que não estivessem atribuídos às serventias judiciárias ou que não fossem de competência exclusiva do juiz.
Enfim, pode-se admitir que os atos executivos sejam realizados por agentes do próprio Estado (oficiais de justiça), por aqueles vinculados ao Poder Público por delegação (tabeliães de notas), ou mesmo por agentes privados sem qualquer ligação com o sistema estatal de justiça.
Mas ainda há outras portas a serem abertas.
Os negócios jurídicos processuais na execução também podem ser explorados no âmbito da extrajudicialização de atos, com a possibilidade das partes definirem quem desempenhará a função de agente de execução. Pode-se conjecturar a realização de convenções ou negócios jurídicos para que seja permitido às partes escolher quem figurará na condição de agente de execução, se um agente privado, público ou misto. Ora, se ao credor é dada a possibilidade de desistir da totalidade do seu crédito e da execução já ajuizada, sem precisar, via de regra, nem sequer da oitiva do devedor, pode-se admitir que as partes optem pelo agente responsável pelos atos executivos que lhes pareça mais adequado, por questões de custo, de eficiência, de proximidade geográfica etc., à semelhança do que já acontece em outros países5.
E nem se trataria de uma novidade.
Além de já termos exemplos em nosso sistema (DL 911/1969, lei 9.514/1997 e DL 70/1966), a ideia não é nova, tem seu embrião na própria Lei de Arbitragem6. Afinal, se o ordenamento jurídico brasileiro já admite a possibilidade de as partes escolherem um terceiro para conduzir totalmente o processo de conhecimento e proferir decisão de mérito, equiparável à decisão judicial, por que não se permitir ao exequente a escolha do agente de execução?
É interessante lembrar que o Grupo de Trabalho, instituído pela Portaria 272/2020, do Conselho Nacional de Justiça, para diagnosticar e apresentar medidas voltadas para a efetividade da execução, no seu relatório final, concluído em 20227, recomendou procedimentos de execução mais eficientes e sistemas com base de dados integrados, que permitam uma melhor busca e localização de bens e recuperação de ativos de devedores.
Por que, então, não se dar mais um passo e admitir, também, a possibilidade da implementação de novas ferramentas tecnológicas que transfiram para os sistemas automatizados ou mesmo de inteligência artificial a responsabilidade pela prática dos atos executivos?
Nesse sentido, destaca-se os avanços já feitos nas relações negociais que utilizam as inovações tecnológicas como forma de efetivação material de direitos e praticam atos de execução e invasão patrimonial, como os smart contracts ou "contratos inteligentes". Tais "protocolos de transação computadorizada" executam os termos de um contrato (possuem autoexecutoriedade), inclusive a cláusula penal, por meio de um código de programação que é inserido em uma plataforma chamada Ethereum. Desse modo, todos os atos necessários para a implementação e a execução das cláusulas contratuais são realizados de forma automatizada via blockchain8.
As inovações decorrentes dos smart contracts podem ser uma outra porta, no sistema multiportas de execução, inclusive com a possibilidade de reformular todo o sistema legal executivo9. A automatização e a transferência da competência dos atos executivos para uma ferramenta tecnológica tornam o inadimplemento contratual muito mais custoso para as partes, na medida em que, em vez de se discutir o descumprimento de uma obrigação, elas serão obrigadas a buscar a reversão de transações que já foram finalizadas10.
Enfim, o PL 6204/2019 deve ser visto não como a única via de extrajudicialização dos atos executivos, mas como um marco para a coexistência de várias outras formas de extrajudicialização dos atos executivos, até mesmo com a possibilidade de o agente de execução ser uma ferramenta tecnológica, segura, transparente e automatizada.
Em suma, devemos abrir outras portas para a execução - um sistema multiportas de execução amplo-, não apenas com a extrajudicialização de atos por agentes físicos (judiciais, extrajudiciais e privados), mas também com o uso de ferramentas tecnológicas. Afinal, "há vários caminhos até a montanha"11.
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1 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.
2 CETRARO, José Antonio. A execução extrajudicial no SFH: do Decreto-Lei 70/66 à Lei 9.514/97. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 41, n. 84, jan./jun. 2018, p. 428.
3 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.
4 ANDRADE, Juliana Melazzi; CABRAL, Antonio do Passo; PARIZIO, André; DUARTE, Larissa Carrasqueira; BOISSON, Eduarda. Anteprojeto de lei. Atribuição da prática de atos executivos para agentes de execução no cumprimento de sentença ou no processo de execução. Proposta de alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Execuções Fiscais. Civil Procedure Review, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 207-234, jan./abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 3 dez. 2022.
5 Sobre as experiências e os modelos da atividade executiva em outros países, consultar: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Execução e desjudicialização: modelos, procedimento extrajudicial pré-executivo e o PL 6204/2019. Revista de Processo, São Paulo, v. 45, n. 306, p. 151-175, 2020.
6 A lei 9.307/1996, que dispõe sobre a arbitragem, prevê a possibilidade de as partes optarem, mediante convenção específica (art. 3.º), por um procedimento totalmente conduzido, instruído e julgado por um agente privado, que tenha a confiança das partes (art. 13.º) para dirimir seus litígios, desde que relativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1.º). A sentença proferida pelo árbitro vincula as partes e seus sucessores, constituindo ainda título executivo judicial (art. 31 da Lei de Arbitragem e art. 515, VII, do CPC/2015).
7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Reunião do GT de Execução Civil: leitura do Relatório Final do GT de Execução Civil. Transmitido ao vivo em 15 de fevereiro de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 4 mar. 2022.
8 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022; PIMENTEL, Letícia de Carvalho. Os smart contracts como ferramenta de efetividade e fomento da execução extrajudicial de multas contratuais. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, São Paulo, n. 10, ano 4, jan./mar. 2021, p. 11-12. Disponível aqui. Acesso em: 25 out. 2021.
9 NUNES, Dierle; VIANA, Antônio Aurélio de Souza; PAOLINELLI, Camilla. Um olhar iconoclasta aos rumos da execução civil e novos e-designs: como os smart contracts e as online dispute enforcements podem revelar inovações para a desjudicialização da execução. In: BELLIZZE, Marco Aurélio; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ALVIM, Teresa Arruda; CABRAL, Trícia Navarro Xavier (coord.). Execução civil – novas tendências: estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 231-232.
10 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.
11 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.
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