Elas no Processo

O caso da execução de alimentos e a virada tecnológica: novos paradigmas sobre processo, procedimento e processamento

Mudanças à vista no mar de processos das varas de família. É que o STJ começou a "desnormalizar" a máquina de gerar processos de execução por uma mesma obrigação: a de pagar alimentos.

16/12/2022

Mudanças à vista no mar de processos das varas de família. É que o STJ começou a "desnormalizar" a máquina de gerar processos de execução por uma mesma obrigação: a de pagar alimentos. A discussão é antiga, mas alguma coisa mudou depois da pandemia e o REsp 1.930.593/ MG sinaliza essa nova direção.

O assunto é da maior relevância. Os processos em varas de família ocupam o 3º e o 4º lugar na Justiça Estadual, conforme o Justiça em Números/ 20221, e as cobranças alimentícias contribuem bastante. Mesmo que a lei determine o cumprimento nos próprios autos, surgem "filhotes processuais" em execuções autônomas, diante do alto potencial de litigiosidade da obrigação mensal.

Vamos lembrar que a dívida alimentícia a justificar a prisão, é apenas aquela devida nos 3 meses anteriores ao ajuizamento da ação e todas que vencerem em seguida. As prestações mais antigas, diante da inércia do exequente, perdem o elemento sobrevivência e deixam de justificar a prisão, conforme a Súmula 309 do STJ, positivada no CPC/2015 pelo §7º do art. 528.

A possibilidade de prisão foi, e ainda é, o elemento utilizado para distinguir uma suposta existência de diferentes ritos, mesmo que a lei alerte que o cumprimento da pena de prisão não exime o executado do pagamento. É uma diferenciação feita, portanto, na largada e não na chegada do procedimento, pois poderá haver penhora para ambas as dívidas. A diferença é que se houver pedido de prisão, este adiará o pedido de penhora2, em uma lógica de sequência.

Em contexto histórico, apesar das reformas sobre execução no CPC/73, a de alimentos sofreu certo abandono legislativo. Isso forjou gerações de advogados que diante da urgência de seus clientes em receberem os créditos, não deixavam de perguntar "como o juiz daqui faz?". Sinceramente, a melhor "técnica processual", sempre foi - e ainda é - conversar com o juiz ou o chefe de serventia, para que se entenda o "CPC da Comarca", antes de formular qualquer pedido.

No CPC/73, em geral, predominou a aplicação do art. 732 para cumprimento de sentença (adequado ao art. 475-J) e o art. 733 como processo autônomo (ou vice-versa). E assim a comunidade jurídica acostumou-se à proliferação de processos para uma mesma obrigação com um monte de discussão sobre processo e/ou procedimento, fundamentado numa suposta celeridade do rito destinado à dívida de "caráter alimentar", com prazo de resposta menor, de 3 (três) dias para a justificativa, diferente do prazo maior, de 15 (quinze) dias, para a impugnação da dívida pretérita.

O CPC/2015, no capítulo sobre cumprimento de sentença de alimentos podia ter ajudado a clarear as coisas, mas o 8º do art. 528 manteve a limitação da utilização do rito do cumprimento de sentença no caso de pedido de prisão. Supostamente uma limitação bem-intencionada, destinada a proteger o menor da opção menos célere, ao mesmo tempo que não diminui o prazo de defesa no caso da penhora. Ocorre que, na prática, em especial para a população de mães solos e pobres que movimentam a Justiça, importa o acompanhamento de tudo em dobro, em 2 (dois) processos, o que é difícil de explicar pra quem quer simplificar uma vida já bem complexa.

Também na prática, após a rapidez na apresentação da justificativa, é necessária nova oitiva do credor seja sobre um pagamento integral, uma proposta de acordo ou sobre uma total inércia a justificar a prisão. No correr comparativo do tempo dos dois processos, um acaba alcançando o outro, e na época em que o juiz vai decidir no rito da penhora, em geral, já é a hora de decidir no de prisão também, sendo incompreensível a dicotomia de processos.

O concatenar desses tempos processuais, porém, pode ser encaixado com a previsão de flexibilização de procedimentos do § 2º do art. 327 e do parágrafo único do art. 1.049, viabilizando técnicas especiais no procedimento comum3, trazido pelo CPC/2015.

E o art. 531, §2º, anterior à pandemia e digitalização, reforça muito essa ideia: “o cumprimento definitivo da obrigação de prestar alimentos será processado nos mesmos autos em que tenha sido proferida a sentença.” A palavra “processado” é importante, e talvez seja a fechadura, pra a qual faltava uma chave, que foi encontrada com a virada tecnológica da digitalização do processo4.

Enquanto predominava o processo físico, as argumentações metajurídicas sobre a junção dos processamentos eram praticamente invencíveis: reunir as duas execuções "dá muita confusão", diria o serventuário processante, o que na decisão do juiz virava “tumulto processual”, e assim esse conceito jurídico indeterminado fundamentou a necessidade de processos apartados.

Maria Berenice Dias, certeira como sempre, já alertava sobre o problema do processamento para defender a dicotomia dos processos: "A diversidade de rito entre as duas formas de cobrança certamente retardaria o adimplemento da obrigação se processadas em conjunto".5

Nessa análise retrospectiva, fica claro que a discussão envolvendo argumentos teóricos bem sofisticados, ao fim e ao cabo, acabava por sucumbir ao argumento prático da dificuldade do processamento simultâneo de técnicas em um mesmo processo. A indisponibilidade do processo (físico) era um argumento forte e simples: tirar cópias para um Habeas Corpus, quando o processo estava no processamento para a penhora on line, tumultuava mesmo. Não raro, horas depois de apensados "por linha" os processos, literalmente cortava-se o barbante que os unia, para permitir o processamento apartado.

Era assim. Mas não é mais. A possibilidade de se processar com rapidez um único processo em fase de execução que envolva mais de uma técnica executiva simultânea, pode finalmente emplacar.

Não estamos falando nem de processo tampouco de procedimento, que com a virada tecnológica e o processo eletrônico, deixam se ser limitados pelo antigo processamento estanque. Processamento são os atos de documentação do processo, de organização das informações, dos dados. Quando o juiz decide que vai prender, é o serventuário processante que irá - pelo menos enquanto não se aprimoram ferramentas de automação - preparar o mandado, remeter e-mail e outros atos que, necessariamente, devem ser documentados dentro do processo.

Enquanto o processo físico possuía uma lógica de sequência de atos estanques, em necessária sequência, o processo eletrônico possui a lógica do concomitante, com os atos acontecendo simultaneamente. Enquanto o processo físico é linear, indisponível para duas pessoas ao mesmo tempo, o processo eletrônico bifurca para dois processantes independentes.

O processo eletrônico ao invés de permitir atos em cascata, permite atos em enxurrada, e isso muda muita coisa nos comportamentos repetitivos, acostumados com esses atos em sequência.

No espírito deste tempo que o Núcleo de Assistência Jurídica da Universidade Federal de Ouro Preto (NAJOP), antes da pandemia, recorreu ao STJ para permitir a concomitância de duas técnicas executivas num mesmo procedimento. No RESP 1.930.593/ MG, a questão é até mais sofisticada: foi pedida a execução concomitante da dívida alimentar recente e pretérita, com o pedido de prisão para a primeira e o pedido de desconto em folha (que não é penhora) para a segunda, no mesmo processo e com o mesmo procedimento (aí a novidade!), nos exatos termos do art. 528, §§ 1º, 3º e 7º, e 529, §3º do CPC.

Foi preciso desmistificar que o art. 528 restringiria, no caput, o procedimento ali previsto somente às 3 prestações anteriores ao ajuizamento da execução e seguintes. Para além do senso comum, defendeu-se que o rito se aplique às prestações mais antigas, com caráter não alimentar, usando a técnica de protesto do título e de desconto em folha.

O TJ/MG cravou o velho: "mostra-se inapropriada a cumulação, nos mesmos autos, de execuções utilizando simultaneamente as duas técnicas". Mas o STJ apontou o novo: "a possibilidade de cobrança de alimentos, com a cumulação das técnicas executivas da prisão civil quanto da expropriação, no mesmo procedimento executivo."

O Min. Luís Felipe Salomão primeiro assentou o que envolve cumular procedimentos em um processo; depois avançou para cumular os próprios procedimentos, com utilização de técnicas executivas, na visão mais avançada de processo civil6. Na ementa, de novo, a palavra "processamento":

"Na hipótese, o credor de alimentos estabeleceu expressamente a sua "escolha" acerca da cumulação de meios executivos, tendo delimitado de forma adequada os seus requerimentos. Por conseguinte, em princípio, é possível o processamento em conjunto dos requerimentos de prisão e de expropriação, devendo os respectivos mandados citatórios/intimatórios se adequar a cada pleito executório".

O acórdão discorre sobre a história, a doutrina moderna e diversos julgados de Tribunais do Brasil, em especial o IRDR do TJ/ AM7. Leitura obrigatória8! Apesar dos argumentos, nos parece que o mais forte (e que não consta do acórdão) é: não faz nenhum sentido, no processo digital, manter o mesmo comportamento do processo de papel. A virada tecnológica serve à superação de paradigmas.

Essa evolução decorre do processo eletrônico e também da percepção de que as execuções de alimentos são processos simples nos quais, em geral, apura-se o que é devido e o que é pago numa planilha para determinar uma ordem (prisão, desconto em folha, penhora, etc.). Agora, aliás, temos a "teimosinha", uma função do SisbaJud que busca autonomamente valores em contas bancárias9, o que é possível diante do avanço das tecnologias aplicadas ao processo.

Questões podem surgir sobre prestação de alimentos in natura e da divisão igualitária de tempo parental, com a fixação de divisão de custos ao invés de alimentos. Mas isso já acontecia antes, e quando se reúnem as execuções, fica até mais fácil compreender os fatos. Também podem surgir questões sobre a possibilidade de prisão civil, mas nos casos extremos a discussão se desloca para a arena do Habeas Corpus.

Em um país onde até 70% por cento dos brasileiros recebem até 2 salários-mínimos10, há dois aspectos importantes: a urgência em receber alimentos e execuções não complexas. No passado, estes processos poderiam até ser qualificados como difíceis, mas hoje em dia, são fáceis. Fazem parte do "inferno conhecido" dos processos que abarrotam as prateleiras (virtuais) do sistema: se for possível um link, ao invés de dois, talvez a confusão diminua.

Alguns poderão dizer que juntar processamentos dificultará o que era fácil. Contudo, parece boa a aposta de que a agregação de processos/procedimento/processamento pode melhorar o que, no mérito, já deixou de ser difícil, e agora precisa ser feito com mais agilidade na forma.

É preciso compreender o fenômeno de simplificação e agregação diante das análises de comportamentos repetitivos e padrões. Muitas repetições permitem fusões e assimilações a serem aprendidas naturalmente. Inclusive, essas são diretrizes - para o bem e para o mal - tanto do aprendizado humano, quanto do "machine learning": aprendizado por repetição e observação de padrões11.

Assim, o que era feito em dois ou três processos, poderá ser feito em um. Imagine o ganho em escala disso nas numerosas varas de família. É um movimento mais simples, por exemplo, que as ainda inovadoras técnicas de coletivização12 em processos complexos, mas fundadas no mesmo espírito de gestão otimizada de recursos judiciais disponíveis. Começar pelo mais simples pode abrir frente para o que parece mais difícil.

"Reduzir litigiosidade" é um discurso corrente no Brasil. No caso, a quantidade de processos vai diminuir e, em princípio, a qualidade permanecerá a mesma, somente com a reunião de duas decisões antes apartadas em uma só. Não se pode descartar, porém, que a redução da quantidade retroalimente a diminuição qualitativa da litigiosidade, com entendimento fático em processo único.

Aliás, perceber que a própria defesa pode ser cumulada em uma peça única dividida por capítulos, foi sugerido pelo Min. Salomão: "A defesa do requerido, por sua vez, poderá ser ofertada em tópicos ou separadamente, com a justificação em relação às prestações atuais e com a impugnação ou os embargos a serem opostos às prestações pretéritas."

A conferir qual nossa maturidade diante de mudanças. Um cenário trágico seria imaginar um tema de IRDR: "a decisão deve ser dada em dois parágrafos na mesma folha, ou em duas folhas com um parágrafo cada?"

Toda alteração de rotina é difícil, e se desvencilhar de regras comportamentais familiares pode aprisionar as vítimas das pilhas processuais e das metas de (im)produtividade. Tomara que eventuais resistências, naturais quando se avizinham mudanças, sejam breves e que rapidamente ocorra a aceitação e a ação em prol de um processo que naturalmente evolui para ser mais efetivo.

__________

1 Disponível aqui. 

2 Com a pandemia, essa lógica de sequência (primeiro a prisão, e residualmente a penhora) em um dos ritos foi balançada com a proibição da prisão pela lei 14.010/20 e as Resoluções 62 e 78 do CNJ. Vide STJ – REsp 1.914.052-DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/06/2021.

3 TARTUCE, Fernanda. Cumulação de requerimentos de prisão e penhora no cumprimento da sentença que fixa alimentos. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 10, n. 1, p. 257-268, abr. 2022. 

4 NUNES, Dierle. Virada tecnológica no direito processual (da automação à transformação): seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART, Erik Navarro. (org.) Inteligência artificial a direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

5 DIAS, Maria Berenice. A execução dos alimentos frente às reformas do CPC. Disponível aqui.

6 DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais: dos procedimentos às técnicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.

7 Tese firmada no IRDR 0004232-43.2018.8.04.0000: "é possível a cumulação, nos mesmos autos, dos ritos da prisão e da expropriação para o cumprimento de sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos, nos termos do art. 531, §2º, do Código de Processo Civil". 

8 Vale a leitura também das ponderações da Min. Maria Isabel Galloti, que refutou qualquer possibilidade de penhora dentro do rito do art. 528, e foi mais conservadora sob uma suposta impossibilidade de reação do executado. A preocupação ocorreu referenciando a penhora de bens imóveis. O curioso é que essa é uma fase até mais gradativa da expropriação do que o desconto em folha, e também menos imediata do que a prisão, nos quais não há menção à impossibilidade de defesa. 

9 Disponível aqui. 

10 Dados do Pnad do IBGE. Informativo disponível aqui. 

11 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. P. 706. 

12 ZANETTI, Giulia; PASCHOAL, Thaís Amoroso. Por um tratamento eficiente da prova: notas sobre o multidistrict litigation enquanto técnica coletiva de gestão de processos. Revista eletrônica de direito processual, v. 22, p. 409-428, 2021.

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Colunistas

Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.