O presente artigo tem como escopo analisar a possibilidade jurídica de ser realizada a aplicação das medidas executivas atípicas, sub-rogatórias e coercitivas, em caráter principal, nos processos sob a égide da Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao prever a possibilidade de haver meios executivos atípicos, isto é, não previstos em lei. Através da cláusula geral de atipicidade o magistrado pode-se valer de medidas sub-rogatórias e coercitivas como forma de favorecer o cumprimento do princípio da efetividade da execução. Nesses termos, dispõe a legislação:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.
Embora o limite da atipicidade trate-se de matéria controversa, já que não existe consenso na doutrina, tampouco na jurisprudência, é pacífico o entendimento acerca da subsidiariedade da medida, ou seja, as medidas atípicas são sempre secundárias e sua utilização só é permitida se ficar demonstrado o exaurimento dos meios típicos executivos.
Nesse raciocínio manifestou-se o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Resp 1.782.418/RJ:
De se observar, igualmente, a necessidade de esgotamento prévio dos meios típicos de satisfação do crédito exequendo, tendentes ao desapossamento do devedor, sob pena de se burlar a sistemática processual longamente disciplinada na lei adjetiva” (DJe 26/04/19).1
O FPPC também já se posicionou através do enunciado de número 12:
A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II (grifo nosso).
O raciocínio dominante é muito simples: não existe motivo para o magistrado utilizar mecanismos não previstos em lei, correndo o risco de violar a segurança jurídica do jurisdicionado, se a legislação prevê um rol exaustivo de formas para se fazer cumprir a execução.
O art. 4º do CPC traz como norma fundamental do processo civil brasileiro o direito à atividade satisfativa, ou seja, o direito à execução ao estabelecer que: “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
Marcelo Lima Guerra defende que a tutela executiva exige um sistema jurisdicional como “deveres”:
a) a interpretação das normas que regulamentam a tutela executiva tem que ser feita no sentido de extrair a maior efetividade possível; b) o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar uma norma que imponha uma restrição a um meio executivo, sempre que essa restrição não se justificar como forma de proteção a outro direito fundamental; c) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos que se revelem necessários à prestação integral de tutela executiva2.
No entanto, apesar de louvável o entendimento, não se pode ignorar que não são raras às vezes que o direito buscado através da execução típica não se materializa. De acordo com dados do CNJ, a fase de conhecimento do processo dura em média cinco anos e quatro meses, enquanto a fase executiva dura seis anos e nove meses3, de modo que se verifica de forma muito clara que a fase de certificação do direito no qual, em regra, demanda a necessidade dilação probatória, é mais curta do que a efetivação no plano material desse mesmo direito já reconhecido.
Nas relações de consumo, esse problema assume um contorno ainda maior em virtude da natureza dos direitos discutidos, além da vulnerabilidade técnica e econômica do consumidor (art. 4º CDC) evidenciadas, principalmente, em razão da discrepância entre os litigantes e da clara hipossuficiência do consumidor.
Na prática forense, alguns tribunais chegam a exigir a demonstração da utilização prévia das vias administrativas para a propositura da ação judicial, como prova do “interesse de agir”. Existem decisões que chegam a impor ao consumidor que procure a plataforma consumidor.gov.br, aguarde o prazo para manifestação da empresa e só depois inicie a ação judicial, como já ocorreu, por exemplo, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais4 e no Tribunal de Justiça do Maranhão5.
Após a referida diligência, deve-se aguardar um moroso processo judicial e havendo a negativa de cumprimento voluntário da obrigação, se iniciar mais uma longa fase executiva, por vezes, inexitosa. Só após o exaurimento das vias típicas (que pode durar anos) que o consumidor pode se valer das medidas atípicas para ver satisfeito o seu direito, mesmo quando se trata de serviços ou bens essenciais.
Isso tudo ganha destaque se analisada a posição ocupada pelos fornecedores. Na maioria esmagadora dos casos, trata-se de grandes empresas que possuem sofisticada blindagem patrimonial, além do fato de serem amparadas por corpo jurídico especializado – o que só demonstra a disparidade de forças dos sujeitos de direito envolvidos na relação de consumo.
Por exemplo, as construtoras, a cada lançamento de uma obra, criam uma SPE diferente: ao se ingressar com processo judicial contra tal SPE não se localiza bens passiveis de penhora, fazendo com que o consumidor ingresse em uma investigação patrimonial longa e cansativa, jogando com a sorte para conseguir demonstrar sucessão empresarial, grupo econômico, confusão patrimonial e outras.
Diante da premissa de que existe um direito fundamental à tutela executiva, sendo indispensável que o Judiciário, diante de um cumprimento de sentença ou execução em que o credor é um consumidor em busca incessante de patrimônio do fornecedor/prestador/devedor – que sempre resulta infrutífera –, sejam tomadas medidas capazes de satisfazer o crédito.
É direito básico do consumidor a facilitação da defesa dos seus direitos, isto é, o tratamento processual diferenciado para que seja efetivada a isonomia, conforme prevê o art. 6º, inciso VIII do CDC. Essa garantia fica clara, por exemplo, na possibilidade de inversão do ônus da prova, que possibilita ao magistrado transferir ao fornecedor o dever de levar aos autos a comprovação necessária para elidir a pretensão estabelecida em favor do consumidor, havendo em favor do último (caso concedida a inversão) uma presunção de veracidade.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro é uma lei claramente protetiva, tanto que em seu primeiro artigo consta: “O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor…”6. No ordenamento brasileiro não existe margem para discutir se é um “direito ao consumo” ou de um “direito do consumidor”, não se discutindo a relação jurídica em detrimento do sujeito de direitos7.
Ressalta-se que na CF/88 o direito do consumidor foi elevado à condição de direito humano fundamental (art. 5º, XXXII). Como direito fundamental, requer ações positivas para sua plena realização. A opção pela tutela subjetiva foi, por fim, consagrada no texto do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborasse código de defesa do consumidor.
A determinação para a elaboração do Código de Defesa do Consumidor advinha de uma preocupação da manutenção de uma ideologia jurídico-econômico mista, a qual privilegia a liberdade de iniciativa privada e liberdade econômica, mas que ao mesmo tempo preza pela proteção por meio de mecanismos de viés social para evitar eventuais desvirtuamentos indesejados do comportamento dos agentes econômicos, capazes de gerar a autodestruição da própria economia de mercado8.
Portanto, a finalidade foi a de manter um equilíbrio entre o consumidor e o mercado, compensando desequilíbrios naturais não apenas para o consumidor, mas também para o próprio desenvolvimento nacional global e que, ao fim e ao cabo, atingirá, novamente, as pessoas humanas9.
Em sendo assim, a lei federal assegurou aos consumidores direitos e proteção, em quatro dispositivos: artigos 2º, PU, 4º, 17º e 29º. O artigo 4º, inciso I, prevê a vulnerabilidade como seu princípio informador, reconhecendo a “vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”. É de se destacar que a vulnerabilidade do consumidor não é mera desigualdade entre ele e a outra parte, mas é exatamente a circunstância de desigualdade presente na relação jurídica e que justifica a norma de proteção10.
Nessa toada, conclui-se que o consumidor deve sempre ser considerado vulnerável na relação, como presunção legal de vulnerabilidade. Portanto, deve ser aplicado o critério de justiça, da lei e afastados eventuais excessos que podem existir. Logo, os conceitos de “consumidor” e de “vulnerabilidade” se “retroalimentam” no estatuto consumerista, tornando a lei uma norma protetiva.
A hipossuficiência está ligada ao direito processual, à posição desfavorável do consumidor dentro da relação processual advinda de uma ação consumerista (dificuldade de produzir provas, demonstrar ocultação de patrimônio etc.). Ressalta-se que diferente da vulnerabilidade, a hipossuficiência não se presume, mas decorre da situação fática.
Considerando-se a hipossuficiência do consumidor, a necessidade que se defende não é apenas quanto à inversão do ônus da prova, mas a aplicação incisiva do princípio da efetividade com foco no princípio da igualdade entre as partes, afastando-se o princípio da menor onerosidade da execução como forma de forçar o executado/devedor a cumprir a obrigação.
Assim, percebe-se que o legislador deixa em aberto a possibilidade de o magistrado adotar as medidas que entender adequadas, desde que não sejam contrarias à lei, para facilitar ao consumidor a certificação e a materialização do bem da vida que foi violado. Portanto, não existe vedação para a aplicação, em caráter principal, das medidas executivas atípicas.
Partindo do entendimento de Marcos Minami sobre a noção da proibição de non liquet para justificar as medidas executivas atípicas, o magistrado não poderá se eximir de decidir diante de um título executivo existente, devendo mesmo – em verdade – haver uma proibição de o processo jurisdicional terminar em uma situação de inefetividade, o que chamou de vedação ao non factibile11.
Assim, defende-se que, após a devida demonstração de que as medidas ordinárias, como a exemplo, o INFOJUD, RENANJUD, SISBAJUD, SNIPER, restarão infrutíferas, poderá o juiz utilizar de medidas atípicas como forma de coerção para a satisfação do crédito, aplicando a lei de tal forma que afaste eventuais excessos contra o consumidor.
Por outro lado, não é possível que tal medida seja aplicada sem nenhum parâmetro, de forma irrestrita e indiscriminada se ficar demonstrada que a medida executiva típica e menos gravosa será suficiente para garantir a efetividade do direito.
Nessa toada, parece ser razoável que seja exigida a demonstração de quatro requisitos:
a) Prévio requerimento do autor;
b) Indícios de ocultação patrimonial;
c) Demonstração da prática processual reiterada;
d) Fundamentação do magistrado.
Em síntese, não basta apenas o requerimento do consumidor, mas que esse requerimento seja fundado na demonstração de indícios de ocultação patrimonial, de que o exaurimento das vias ordinárias se mostre como diligência inútil para a finalidade desejada. Além disso, caso o executado seja um litigante habitual, é importante demonstrar a adoção consecutiva da prática processual que visa obstar o cumprimento da decisão, ou seja, quem age de má-fé em reiterados processos tem grandes chances de replicar a mesma conduta. Por fim, como trata-se de medida excepcional deve haver a fundamentação do magistrado, oportunidade em que deve especificar a pertinência e adequação da determinação no caso concreto.
A proposta é a proibição de se deixar de entregar a tutela jurisdicional ao credor/consumidor quando os meios executivos disponíveis demonstrarem-se infrutíferos em um cenário de um devedor/fornecedor ativo no mercado e com notória saúde financeira.
Portanto, diante da análise da legislação processual civil, conclui-se que não existe vedação legal para a utilização das medidas executivas atípicas, em caráter principal. Apesar da construção doutrinaria e jurisprudencial pela subsidiariedade, devem ser consideradas as peculiaridades das relações de consumo, como a exemplo, a vulnerabilidade do consumidor e a hipossuficiência que possibilitam o tratamento jurídico diferenciado. Além disso, restou evidenciada a finalidade protecionista do legislador, que através de vários mecanismos buscou a equiparação de forças entre partes naturalmente desiguais. Assim, possibilitar a utilização direta das medidas atípicas não só irá observar os ditames da Lei 8.078/90, mas viabilizará o cumprimento do princípio da efetividade da execução, corolário do devido processo legal.
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1 STJ, REsp 1.782.418/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3º T., j 23/04/2019, DJE 26/04/2019
2 GUERRA, Marcela Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2002, p. 103-104.
3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números 2021. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf- Acesso em 24 de agosto de 2022.
4 BRASIL, Juizado Especial Cível. Processo nº 9050444.08.2019.813.0024, Juíza Maria Dolores Giovine Cordovil, 11º Vara de Belo Horinzonte/MG, j. 05/092019.
5 BRASIL, Juizado Especial Cível. Processo nº 0800285-61.2021.8.10.0036, Rel. Juiz Carlos Eduardo Coelho de Sousa, 2º Vara de Estreito/MA, j. 05/03/2021, DJE 31/03/2021.
6 A ementa da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, estabelece: “Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”.
7 Na França, na Itália, em Portugal, por exemplo, a discussão acerca de se dever proteger o “o ato de consumo” ou o “consumidor” já foi ou ainda é cabível. Não é o caso do Brasil. Para saber mais sobre o ponto: BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009 e também ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Direito do Consumo. Coimbra: Almedina, 2005.
8 Sobre a característica mista ou plural da Constituição Econômica de 1988, recomenda-se: SOUZA,Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
9 Diz-se assentar o fundamento dos direitos humanos na qualidade de vida (Nesse sentido, FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. 7a ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 26). O mesmo deve-se esperar da busca constante pelo desenvolvimento econômico e da escolha de modelo econômico feita pelo Constituinte.
10 Nesse sentido, Lorenzetti afirma ser a vulnerabilidade o impacto mesmo que a circunstância de desigualdade tem sobre a relação jurídica. LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. PG 36 (s.d.).
11 MINAMI, Marcos Youji, Da Vedação ao non factibilie, uma introdução às medidas executivas atípicas. Salvador. Juspodivm, 2019, p. 125-139.