Elas no Processo

Citação eletrônica e a Resolução 455 do Conselho Nacional de Justiça

É indubitável que a Resolução 455 do CNJ expressa os vários avanços tecnológicos ocorridos na sociedade brasileira e no seu sistema jurisdicional, mas não afasta a cautela que se deve ter diante de fragilidades e dificuldades que possam impedir as citações eletrônicas e o acesso à justiça dos cidadãos.

7/10/2022

A comunicação processual pelas vias eletrônicas não é mais uma exceção à regra no Brasil.

O regramento da citação no ordenamento brasileiro demonstra bem esta evolução. No Código de Processo Civil de 1973 não havia sequer previsão acerca da citação eletrônica, até porque, o movimento de informatização no Brasil só teve início a partir da década dos anos oitenta.

Assim, o CPC de 1973 limitava-se a trazer no texto do art. 221 a citação por três formas: correio, oficial de justiça e edital.

A lei 11.419/06, por sua vez, avançou ao estabelecer a possibilidade de se realizar a comunicação eletrônica dos atos processuais, de onde se destaca a norma prevista no art. 9º, caput, enunciando que “no processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta lei”. Posteriormente, o CPC de 2015 veio a consagrar a prática eletrônica, e vem até o presente momento passando por modificações, dentre as quais se destacam aquelas promovidas pela recente lei 14.195/21 (com objeto bastante amplo, relacionado tanto com o direito empresarial e como com o direito processual civil), que está pendente de julgamento acerca de sua constitucionalidade por questões formais1.

Com relação à intimação eletrônica, ato que pressupõe a preexistência de uma relação processual já consolidada, não se vislumbra qualquer obstáculo de ordem técnica ou principiológica para a sua realização, pois todas as partes estão devidamente identificadas e em plenas condições para atuarem no processo.

Diferente é a citação eletrônica. Trata-se de ato que tem por objetivo integrar a relação processual, dando cientificação ao réu, ao executado ou ao terceiro acerca da existência da demanda, e convocando-lhe para se defender em juízo. Não houve, até este ato, um contato inicial com as partes do processo, imprescindível para que sejam definidos as regras e os contornos da lide.

A eficiência de um meio depende da averiguação das circunstâncias em que ele se insere. E pelas circunstâncias naturais, a realidade no mundo digital ainda não é uma regra, estamos em um processo de transformação. Justamente por este motivo, a citação eletrônica precisa ser pensada de forma muito mais cautelosa que as demais, pois, ali, há ainda um cenário de incertezas em relação às posições das partes que integrarão aquela relação processual.

A intensificação do processo de digitalização no âmbito do Judiciário restou delineada em uma série de atos normativos emanados do Conselho Nacional de Justiça, no exercício de suas atribuições previstas no art. 196 do CPC de 2015.

Todavia, algumas questões importantes precisam ser debatidas em meio a este processo “apressado de modernização do Poder Judiciário”.

A primeira delas diz respeito à previsão da citação como realizável, preferencialmente, pelo meio eletrônico, no prazo de dois dias úteis, contado da decisão que determinar seu encaminhamento ao endereço eletrônico indicado pelo citando, que se fará constar no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do CNJ. Três problemas podem ser apontados: 1) como se fará a confirmação segura acerca do recebimento da citação eletrônica recebida por e-mail? 2) existe esse banco de dados do Poder Judiciário, com capacidade de armazenamento e segurança cibernética, em consonância com os ditames da Lei Geral de Proteção de Dados? 3) Não houve ainda a referida regulamentação pelo CNJ.

A Resolução n. 455, do CNJ instituiu o Portal de Serviços do Poder Judiciário (PSPJ), na Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br), para usuários externos.  Segundo o art. 3° da Resolução, entre outras funcionalidades, o Portal permitirá a efetivação de citações, intimações e comunicações processuais em todos os sistemas de tramitação processual eletrônica conectados à PDPJ-Br.

A definição do que seja endereço eletrônico encontra-se no art. 2° da Resolução, que considera toda forma de identificação individualizada para recebimento e envio de comunicação/mensagem digital, tal como o correio eletrônico (e-mail), aplicativos de mensagens, perfis em redes sociais, e o Domicílio Judicial Eletrônico.

Já o Domicílio Judicial Eletrônico constitui o ambiente digital para a comunicação processual entre os órgãos do Poder Judiciário e os destinatários que sejam ou não partes na relação processual. É por ele que as intimações e citações ocorrerão.

O cadastro do Domicílio Judicial Eletrônico será obrigatório para a União, para os Estados, para o Distrito Federal, para os Municípios, para as entidades da administração indireta e para as empresas públicas e privadas (art. 16), excluindo-se desta obrigatoriedade as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, mesmo que estas últimas possuam endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).

Quanto às pessoas físicas, a Resolução faculta ao cadastramento do domicílio judicial eletrônico por meio do Sistema de Login Único da PDPJ-Br, via autenticação no serviço “gov.br” do Poder Executivo Federal, com nível de conta prata ou ouro; ou por meio de autenticação com uso de certificado digital. Também prevê o compartilhamento de banco de dados cadastrais de órgãos governamentais com o órgão do Poder Judiciário, nos termos da legislação aplicável ao tratamento de dados pessoais.

A questão a ser pensada a esse respeito é se o banco de dados utilizado para o compartilhamento de dados pessoais está atualizado. Muito embora o art. 77, tenha sofrido alteração pela lei 14.195/21, no sentido de acrescentar como dever da parte informar e manter atualizados seus dados cadastrais perante os órgãos do Poder Judiciário e, no caso do § 6º do art. 246 deste Código, da Administração Tributária, para recebimento de citações e intimações, entendemos que, para aplicação de multa por ato atentatório à dignidade da justiça, em caso de ausência de confirmação de recebimento pelo citando ou intimando, deve ocorrer em caso de má-fé apenas. É muito comum que as empresas deleguem aos seus contadores o ônus do recebimento de correspondência tributária. Assim, a excludente de ilicitude por ato de terceiro deve ser aplicada.

No que tange especificamente à criação de uma base de dados pelo CNJ, Dierle Nunes e Catharina Almeida destacaram ser este um pressuposto básico para a eficácia prática da medida, ao lado da cooperação das partes para que este novo mecanismo de comunicação processual seja implementado com sucesso2.

Outra questão que deve ser discutida é a vulnerabilidade digital. Segundo pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC Domicílios 2021, 18% dos domicílios brasileiros não possuem acesso à internet. Destes 18%, 39% estão inseridos nas classes D e E e 29% estão localizados na área rural.

O parágrafo 2° do art. 6° da Resolução 455 do CNJ atribui à parte a responsabilidade ao usuário acerca: a) do acesso ao seu provedor da internet e a configuração do computador utilizado nas transmissões eletrônicas; e b) do acompanhamento do regular recebimento das petições e documentos transmitidos eletronicamente. Assim, a norma desconsidera as regiões que não possuem acesso à internet, os custos para se manter um sistema eficiente, bem como a estabilidade da rede da empresa que fornece os serviços de internet, o que pode prejudicar a eficiência da citação e, consequentemente, o acesso à justiça do cidadão.

Neste quesito, não há igualdade de tratamento pela Resolução, pois prevê situações de instabilidade nos serviços prestados pelo Portal (art. 6°, caput), mas não trata de forma tão compreensiva os usuários externos. Pelo contrário, prevê consequências jurídicas negativas para eles.

É indubitável que a Resolução 455 do CNJ expressa os vários avanços tecnológicos ocorridos na sociedade brasileira e no seu sistema jurisdicional, mas não afasta a cautela que se deve ter diante de fragilidades e dificuldades que possam impedir as citações eletrônicas e o acesso à justiça dos cidadãos.

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1 Tendo em vista se tratar de matéria de cunho processual não constante no texto original da Medida Provisória que lhe deu origem, incorporada ao texto da Lei por uma emenda, em consonância com decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 5.127.

2 NUNES, Dierle; ALMEIDA, Catharina. Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do Legal Design. Disponível em: Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso em: 20 jul 2022.

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Colunistas

Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.