Na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que a globalização e o desenvolvimento de novas tecnologias despertam o interesse por descortinar novos temas aplicados ao direito processual, como o da inteligência artificial e o do visual law, é preciso também revisitar os institutos clássicos.
Neste momento, trataremos de um instituto clássico do direito processual: o interesse de agir. Para examiná-lo sob a ótica aqui proposta, primeiro precisaremos conceituar o instituto. O interesse de agir é um dos elementos cuja presença se mostra imprescindível para o regular exercício do direito de ação e é analisado a partir do binômio necessidade-utilidade. Significa afirmar a necessidade da realização do processo como meio de buscar, através da resposta do Poder Judiciário, situação mais favorável do que a atual, no compasso de adequação da tutela pleiteada à situação concreta1.
E assim se revela a concepção tradicional do interesse de agir: atrelada ao acesso à atividade jurisdicional, sem qualquer condicionante para seu acesso, privilegiando o foco no Poder Judiciário para a solução de conflitos. Cumpre ressaltar que não estamos apenas no campo teórico, posto que evidente o quanto dessa visão tradicional se opera no contexto prático impulsionando repercussões jurídicas e sociais. Sobre essa mesma concepção erigiu-se e moldou-se o comportamento social que acreditou ser possível deixar para o Judiciário a solução de todos os seus conflitos2, mesmo os mais corriqueiros. Em paralelo, existia um ensino jurídico que durante muitos anos formou bacharéis preparados para atuar apenas assessorando e postulando por litigantes nos tribunais3 de maneira estratégica e buscando resultados de ganhos, sem se ocuparem ou preocuparem com a reverberação social e emocional de tais respostas diretamente no processo judicial.
Como decorrência, o Judiciário acabou assoberbado. Registrou-se, segundo a Pesquisa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça referente ao ano de 20214, 25,8 milhões de casos que ingressaram no Poder Judiciário e somaram-se a 75,4 milhões de casos pendentes que retratava verdadeiro estoque de processos formado no Poder Judiciário ao longo dos anos. Não se pode olvidar o quanto disso é resultado da cultura essencialmente litigante, aquela que considera a sentença, senão a única, pelo menos, a melhor forma de solucionar os conflitos.
Em contrapartida a essa constatação, começam a ganhar espaço as incipientes técnicas processuais autocompositivas, ainda vistas somente como uma válvula de escape da pletora dos processos que retrata a realidade do Poder Judiciário. E a partir da utilização dessas técnicas afere-se que o ideal de ser somente através atingível dos autos processuais a efetivação de direitos começa a gerar descrença, constatando-se que a processualidade nem sempre corresponderá aos ideais almejados para a concretude das questões do mundo da vida5.
Ao se tentar deixar a cultura da sentença e se passar para a cultura de empoderamento dos sujeitos processuais a partir da construção do consenso, os métodos de solução de conflitos são reconhecidos não mais como alternativos à jurisdição – e sim como adequados6 – e desenvolve-se a ideia de justiça multiportas7, através da qual cada conflito teria o método mais adequado para a sua solução, podendo ser através da jurisdição ou não.
Considerando que a própria previsão do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição não tem mais sua leitura atrelada ao acesso ao Judiciário, mas sim a uma ordem jurídica justa, que não se restringe ao Poder Judiciário, abrangendo qualquer forma de solução de conflito, a previsão do interesse de agir, contemplada no art. 17 do Código de Processo Civil, também precisa ser redimensionada.
Os debates sobre esse redimensionamento não estão distantes do cenário contemporâneo, embora ainda estejam esparsos, como passamos a sintetizar.
Por exemplo, no ano de 2014, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 631.240, sobre a necessidade ou não de prévio requerimento administrativo como condição para o interesse de agir para o ajuizamento de demandas em que se pretende a concessão de benefícios previdenciários.
Na ocasião, foi fixada não apenas uma única tese jurídica, mas um conjunto de teses que propiciassem, dentro do contexto de previsibilidade, a solução realmente ampla e condizente com as perplexidades e com as controvérsias pertinentes ao tema à luz do interesse de agir8.
No ano de 2016, já estava consagrado entendimento que ainda hoje se mantém, de que a fase executória da desapropriação pode se dar através de acordo, sem a necessidade de manifestação judicial9.
No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente o pedido formulado nas Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIns) 2.139 e 2.160 para assentar que a Comissão de Conciliação Prévia constitui meio legítimo, mas não obrigatório, de solução de conflitos na Justiça do Trabalho.
Dois projetos de lei merecem ainda destaque: o Projeto de Lei 533, de 201910, a partir da justificativa de que não seria razoável que “o Judiciário, até por um aspecto estrutural e orçamentário, continue sendo o primeiro, único e o mais atrativo – financeiramente – acesso de materialização de direitos”. Pretende, dentre outras alterações, acrescentar parágrafo único no art. 17 do Código de Processo Civil para, tratando-se de direitos patrimoniais disponíveis, o interesse de agir sujeita-se à necessária evidência de resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor.
O outro projeto de lei 3.813, de 202011, dispõe sobre a obrigatoriedade, nos litígios entre particulares que tenham por objeto direitos patrimoniais disponíveis, de realização de sessão extrajudicial de autocomposição prévia à propositura de ação judicial, seja para as ações de competência dos Juizados Especiais ou não.
Porém, qual seria a real dimensão do interesse de agir na contemporaneidade? No momento, o delineamento do tema nos parece estar nem tanto ao céu e nem tanto ao mar. Afigura-se cada vez mais difícil pensar na solução de conflitos apenas através do Poder Judiciário e em um acesso irrestrito ao Poder Judiciário. O Judiciário não pode – e nem deve – ser a primeira porta de todo e qualquer pleito. A interação com o juiz não deve ser construída antes da interação dialógica com a parte contrária. Porém, também não parece o momento de trazer a obrigatoriedade da solução consensual, como nosso vizinho, a Argentina, há anos convive, por exemplo, com a mediação pré-processual obrigatória12 ou como ocorreu no cenário italiano13.
A mudança de paradigmas passa, também, pela mudança de mentalidade, com a paulatina percepção dos reais benefícios da solução consensual14.
Nesse momento, é importante que se façam compreender os caminhos existentes em paralelo antes de se ir ao Judiciário não como opção, mas como decorrência de desconhecimento ou de cultura engessada. É premente difundir conhecimento e informação sobre ser possível construir alguma tentativa de diálogo como, por exemplo, por meio do call center, da comunicação ou da negociação, sem que tenha feitio específico ou qualquer formalidade, e sendo suficiente a demonstração da tentativa de diálogo prévio à busca do Poder Judiciário.
Retornando às lições clássicas, o interesse de agir deve estar, na verdade, na necessidade da realização do processo judicial, simplesmente porque não foi possível localizar a parte contrária para o diálogo ou porque esse diálogo não teve êxito, e na adequação da tutela pleiteada à situação concreta.
Esse delineamento não se trata de um entrave para o acesso ao Judiciário. O acesso à justiça pode ser realizado por qualquer mecanismo de solução adequada do conflito, na medida em que o Poder Judiciário nunca se afasta do controle do Estado sobre a realização da justiça. Todas as “portas” do sistema multiportas estão, de alguma forma, sujeitas ao controle de legalidade quanto à sua existência e validade. Isso porque, embora os termos de transação extrajudiciais não se sujeitem à homologação judicial para terem validade, as câmaras de mediação e de conciliação devem seguir diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e seguem sob autorização de funcionamento e controle feitos pelo Tribunal local. Do mesmo modo, embora a câmara arbitral não se sujeite a controle pelo CNJ, a sentença arbitral não exija homologação judicial para validade e nem suas sentenças sejam recorríveis à jurisdição tradicional, podem ser objetos de submissão ao sistema adjudicatório quando houver reclames de vícios, tal como ocorre quanto aos elementos transacionados em câmaras de mediação e de conciliação.
Outra dimensão de ganho social decorre do empoderamento dos próprios envolvidos no conflito, com a possibilidade de uma solução mais eficaz e mais célere para o caso concretamente vivenciado por tais interessados.
E como demonstrar os reais benefícios dessa proposta? Apenas ilustrando com um exemplo, a vereda assíncrona e não obrigatória de solução de conflitos consumeristas pela plataforma consumidor.gov.br15 alcança 99,52% das reclamações dos consumidores respondidas pelos fornecedores. Isso já demonstra de maneira cabal que, na quase totalidade dos casos, a resposta ao contato para estabelecimento do diálogo é possível. Já a solução consensual dos casos é atingida em quase 40%.
Esse percentual de solução parece ineficaz? Não, se considerarmos que estamos num momento de transição e ainda mudando uma cultura, sendo certo que apenas caminhamos e ainda temos muito a avançar. De outra banda, até os mais pessimistas são instados a reconhecer a significância de serem 40% a menos de demandas consumeristas que deixam de ingressam no Poder Judiciário. Notadamente se for comparado com os números de solução consensual hoje nas ações em curso no Judiciário (endoprocessuais) são muito inferiores: 15,8% na fase de conhecimento; 0,6% em fase recursal e; 4,7% na execução16.
Estamos em um processo dialógico de construção dos rumos do processo na contemporaneidade e precisamos não só enfatizar novos institutos como revisitar a roupagem dos institutos tradicionais. Essa missão está na academia e na prática forense (incluindo profissionais do direito e interdisciplinares), exigindo de todos o compromisso com a propagação e difusão dos caminhos e possibilidades de solução consensual e, na sua impossibilidade, de adjudicação, estando todos no mesmo patamar de segurança jurídica e eficácia dos resultados. E esse é o início da caminhada.
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1 DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32.ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 322.
2 Sobre o tema: MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
3 O cenário começou a se modificar substancialmente a partir da Resolução nº 5/2018 do Ministério da Educação.
4 Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/justica-em-numeros-sumario-executivo.pdf. Acesso em 22 jul. 2022.
5 FÜLLER, Lon L. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review. Harvard: Harvard Law School, vol. 92, no. 2, dez. 1978, p. 398.
6 WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Disponível em https://www.tjsp.jus.br/Download/Conciliacao/Nucleo/ParecerDesKazuoWatanabe.pdf. Acesso em 22 jul. 2022.
7 ZANETI JR., Hermes, CABRAL, Tricia Navarro Xavier. Justiça multiportas. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
8 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Sistematização, análise e interpretação do instituto processual. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2017, p. 179-180.
9 Sobre o tema, a título de exemplo, destacam-se os seguintes julgados: REsp 1.932.476 / PR, REsp 1.801.831/SC e REsp 1.595.668/PR.
10 Tramitação disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191394. Acesso em 23 jul. 2022.
11 Tramitação disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2257795. Acesso em 23 jul. 2022.
12 REMER, Luciana de Andrade Amoro; PUGLIESE, William Soares. Mediação Pré-Judicial Obrigatória: a experiência da Argentina. Disponível em https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/anaisevinci/article/view/5669. Acesso em 23 jul. 2022.
13 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; PAUMGARTTEN, Michele Pedrosa. L`esperienza italo-brasiliana nell'uso della mediazione in risposta alla crisi del monopolio statale di soluzione di conflitti e la garanzia di acceso alla giustizia. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais (Eletrônica), v. 11, 2012, p. 171-201.
14 Importante destacar que uma das autoras, Márcia Michele Garcia Duarte já escreveu sobre os estímulos à solução consensual em DUARTE, Márcia Michele Garcia. A sanção pedagógica e os aspectos éticos e morais da consensualidade: em busca da efetividade do modelo multiportas. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro: UERJ, v. 22, 2021, p. 684-709.
15 Os dados foram obtidos em PORTO, Antônio José Maristello; NOGUEIRA, Rafaela; QUIRINO, Carina de Castro. Resolução de conflitos on-line no Brasil: um mecanismo em construção. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, ano 26, nov.-dez. 2017, p. 310-312.
16 CNJ. Justiça em Números 2021, p. 192. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em 23 jul. 2022.