Elas no Processo

O agravo de instrumento e a “taxatividade mitigada” após cinco anos da fixação da tese 988

A doutrina passou a discutir a possibilidade de se interpretar as hipóteses ensejadoras do agravo de instrumento de modo extensivo, sobretudo para os casos de urgência, não expressos no rol.

17/6/2022

Desde que o Código de Processo Civil de 2015 foi sancionado, um dos temas mais debatidos tem o sido o rol do artigo 1.015, a respeito das hipóteses de decisões interlocutórias recorríveis por intermédio do agravo de instrumento ou em preliminar/contrarrazões de apelação (CPC, artigo 1.009).

Em decorrência de situações problemáticas na lida advocatícia, a doutrina passou a discutir a possibilidade de se interpretar as hipóteses ensejadoras do agravo de instrumento de modo extensivo, sobretudo para os casos de urgência não expressos no rol.

Defendendo a leitura extensiva do rol em função do risco de inutilidade de se aguardar o processamento e julgamento do recurso de apelação, William Santos Ferreira se manifestou favorável a seguinte hipótese de recorribilidade:

Recorribilidade imediata necessária por inutilidade prospectiva – ausência de interesse recursal na apelação [que é taxativa, pois é o que se pode dizer de “outros casos expressamente referidos em lei”, já que basta correlacionar a “recorribilidade geral das interlocutórias” (§1º do art. 1.009) com o disposto que exige e garante (!) interesse recursal (art. 996), o que assegura que a lei não pode afastar do Poder Judiciário, lesão ou ameaça ao direito (inc. XXXV do art. 5º da CF) e o art. 1.015, XIII].1

Nas decisões dos Tribunais pátrios a questão também suscitava divergência, o que o levou o Superior Tribunal de Justiça a afetar o tema pela sistemática de recursos repetitivos. Ao julgar o tema 988 a referida Corte firmou tese responsável por considerar que “[o] rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”2.

Ainda no ensejo daquele julgamento, o Superior Tribunal de Justiça efetuou a modulação da tese para preservar a segurança jurídica dos litigantes:

Embora não haja risco de as partes que confiaram na absoluta taxatividade serem surpreendidas pela tese jurídica firmada neste recurso especial repetitivo, pois somente haverá preclusão quando o recurso eventualmente interposto pela parte venha a ser admitido pelo Tribunal, modulam-se os efeitos da presente decisão, a fim de que a tese jurídica apenas seja aplicável às decisões interlocutórias proferidas após a publicação do presente acórdão.

Mesmo com essa oportuna providência, os questionamentos sobre a taxatividade do artigo 1.015 do CPC tendem a subsistir, conforme bem apontou Viviane Ramone:

Ao que parece, nem mesmo a fixação da tese jurídica ou mesmo sua modulação prestaram-se como alívio a todos os males. Os debates permanecem intensos, principalmente quando se verifica na prática “pós transição” divergências na interpretação dos Tribunais Estaduais e do próprio Superior Tribunal de Justiça”.3

O cerne do debate sobre a ampliação das situações recorríveis por agravo de instrumento é desvendar qual o conceito de urgência que autoriza a mitigação da taxatividade do rol do artigo 1.015 do CPC. Como não poderia deixar de ser, a aferição da urgência é casuística. Dentre as hipóteses admitidas pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, separamos dois exemplos: (i) decisão que inverte o ônus da prova com base no CDC e (ii) pronunciamento que (in)admite a intervenção de terceiro e, por consequência, (não) modifica a competência.

No primeiro caso, o acórdão proferido no REsp n. 1.729.110/CE distinguiu a inversão do ônus probatório com base no CDC e a dinamização do referido encargo, prevista no CPC, mas considerou a decisão agravável porque ambas excepcionam a regra geral do ônus estático (CPC, artigo 373, I e II). No segundo caso, o acórdão proferido no REsp n. 1.797.991/PR estabeleceu critérios para saber se a decisão que versa sobre intervenção de terceiro e influi diretamente na competência – interlocutória com duplo conteúdo – admite o agravo com base no inciso IX do artigo 1.015 do CPC.4

Infelizmente, o Superior Tribunal de Justiça não admitiu a mitigação do rol do artigo 1.015 do CPC para a decisão que versa a respeito do deferimento ou indeferimento da produção de prova pericial5. Naturalmente, a semântica do mencionado dispositivo legal não admitiria o agravo nessa situação. Porém, é inegável que há situações nas quais a recorribilidade da decisão que indefere a produção de prova pericial se enquadrará em situação de urgência e, portanto, estará em conformidade com o entendimento firmado no tema 988 do Superior Tribunal de Justiça.

Um exemplo do que se afirma é a decisão que indefere prova pericial em objeto ou área suscetível de degradação pelo decurso do tempo. Aguardar eventual julgamento de recurso de apelação para se decidir acerca da necessidade ou não da produção da mencionada prova certamente ocasionará prejuízo ao resultado útil da perícia ou até mesmo a impossibilidade de realização dela.

Assim, o indeferimento da perícia tendo como único fundamento a ausência de previsão no rol do artigo 1.015 do CPC contraria a tese firmada no tema 988 do Superior Tribunal de Justiça, seja pela urgência na realização da prova, seja por eventual inutilidade prospectiva, decorrente de perda ou deterioração do objeto da perícia. Nessa situação, o agravante terá o ônus argumentativo de demonstrar a imperiosidade de a prova pericial ser realizada de imediato, a fim de permitir a imediata recorribilidade do provimento causador de prejuízo.

Observa-se que, apesar de decorridos mais de 06 anos da vigência do Código de Processo Civil e quase 04 anos desde a fixação da tese da “taxatividade mitigada” no tema 988, a questão atinente à recorribilidade das interlocutórias por intermédio de Agravo de Instrumento ainda carece de uniformidade entre os Tribunais. Isto porque, para além da imputação ao interessado do ônus argumentativo de demonstrar o enquadramento do caso concreto ao que se espera de conceito de urgência, o respectivo reconhecimento de urgência aparentemente tem ficado ao crivo do julgador.

__________

1 FERREIRA, William Santos. Do Agravo de Instrumento. In BUENO, Cassio Scarpinella (Coord.) Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. Saraiva. 2017. p. 458.

2 Superior Tribunal de Justiça. Tema repetitivo 988. REsp 1.696.396 / MT e REsp 1704520/MT, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Julgados em 05/12/2018, Acórdãos publicados em 19/12/2018.

3 TAVARES, Viviane Ramone. Agravo de Instrumento: “E agora, José?” O que é urgência para que se possa mitigar sua taxatividade?. In CALAZA, Tales; TAVARES, Viviane Ramone (Coords.) Processo civil 4.0: novas teses envolvendo processo e tecnologia. Uberlândia. LAECC, 2020, pp. 203-238.

4 Referidos critérios são: o exame do elemento que prepondera na decisão; o emprego da lógica do antecedente-consequente e da ideia de questões prejudiciais e de questões prejudicadas; e o exame do conteúdo das razões recursais apresentadas pela parte recorrente.

5 Veja o AgInt no ARESp n. 1.991.335/RS. O TJSP também caminha na mesma esteira do STJ. A esse respeito, confira-se, por exemplo: Agravo de Instrumento n. 2083669-48.2022.8.26.0000, 2ª Câmara de Direito Privado, Relatora: HERTHA HELENA DE OLIVEIRA, Julgado em 29/04/2022; Agravo de Instrumento n. 2171524-36.2020.8.26.0000; Relator: Cesar Luiz de Almeida, 28ª Câmara de Direito Privado; Julgado em 27/07/2020.

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Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.