Elas no Processo

Audiências telepresenciais e eventuais falhas: justa causa ou litigância de má-fé?

Uma reflexão sobre as possíveis consequências processuais decorrentes do comportamento das partes nas audiências realizadas no ambiente digital.

10/6/2022

A virtualização certamente foi um dos maiores legados da pandemia para o sistema processual judicial. Fatores pandêmicos (como restrições ao deslocamento e diretrizes de distanciamento social) deram o empurrão que faltava para a oferta de diversos serviços judiciários remotos no período em que vigoraram medidas de prevenção e controle determinadas pelo Poder Público.

Em tal cenário merece especial destaque a ocorrência maciça de audiências por videoconferência – que, como não poderia deixar de ser, ensejou diversos questionamentos em relação às garantias processuais relevantes. O foco deste breve artigo é promover reflexão sobre a aplicação, nesse contexto, de duas regras processuais que regulam situações diametralmente opostas: a justa causa e a litigância de má-fé.

Como ambas as hipóteses regulam situações relacionadas à boa-fé processual, por conseguinte estabelecem consequências jurídicas para as partes que praticam ou deixam de praticar atos processuais.

Na justa causa, a comprovação acerca da existência de evento alheio que impeça a prática do ato processual faz incidir a regra do art. 223, §2º, do CPC, que autoriza a magistratura permitir à parte a prática do ato no prazo que assinalar.

Em relação à responsabilidade das partes por dano processual, a verificação da ocorrência de alguma das circunstâncias previstas nos incisos II (alteração da verdade dos fatos), IV (oposição de resistência injustificada ao andamento do processo) e V (atuação temerária em qualquer incidente ou ato do processo) do art. 80 do CPC gera condenação por litigância de má-fé, consistente no pagamento de multa superior a 1% (um porcento) e inferior a 10% (dez porcento) do valor corrigido da causa. Tal montante pode alcançar 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo quando o valor da causa for irrisório ou inestimável. Além disso, pode haver indenização da parte contrária pelos prejuízos sofridos, incluindo honorários advocatícios e despesas efetuadas.

Considere-se hipoteticamente a situação em que a parte, por falhas técnicas, não consegue ingressar em uma audiência realizada por videoconferência: qual deverá ser a consequência?

Em primeiro lugar, para evitar excessivas desconfianças, há que se considerar que a boa-fé sempre se presume1. Por força de tal diretriz, a razão da ausência não poderá ser objeto de especulação nem conclusão açodada.

Embora a pessoa possa ter buscado se preparar com antecedência, justamente na hora da audiência podem ocorrer empecilhos.

Quem já passou por dificuldades de acesso sabe que o momento é pautado por muitas dúvidas: estará o problema no próprio aparato tecnológico ou no sistema do Poder Judiciário? Como aferir a resposta correta quando faltam informações técnicas e a comunicação está prejudicada? Se muitas vezes os Tribunais apenas reportam a falha no dia seguinte à ocorrência, como ter segurança? Será que o empecilho à acessibilidade se dá por falhas da operadora de internet? E se ocorreram súbitas intermitências na energia elétrica? Além de todas essas hipóteses, outros imprevistos insuperáveis podem surgir.

Obviamente diante de ocorrências de tal ordem a parte poderá legitimamente invocar justa causa para que o ato seja repetido em outra oportunidade, em prazo assinalado pelo magistrado. Esta regra parte do dever de tratamento isonômico e da boa-fé processual, de modo que a inacessibilidade ou a indisponibilidade gerada por problemas no meio digital não poderá ensejar efeitos processuais danosos às partes.

Por outro lado, se diante deste mesmo caso o magistrado constatar que a parte simulou alguma falha técnica com o propósito de escapar do ato processual, poderá condená-la por litigância de má-fé. Esta regra, a seu turno, revela-se muito relevante para a prática de atos processuais virtualizados por servir como fator inibidor de falsas alegações da justa causa decorrente da inacessibilidade ou indisponibilidade do meio digital.

Portanto, quando a parte alega que não conseguiu acessar o sistema para participar de uma audiência por videoconferência por embaraços técnicos, ela tem a prerrogativa de invocar a justa causa prevista no art. 223 do CPC – com a ressalva de que possa vir a ser condenada por litigância de má-fé caso o magistrado constate posteriormente, de algum modo, a falsidade de tais alegações.

No ponto, vale ressaltar que a boa-fé apenas será violada se o litigante alegar falsamente a justa causa ou levantar argumentos que de antemão já se sabe serem infundados. Assim, não há violação da boa-fé diante da divergência entre a interpretação dos fatos dada pela parte que alegou justa causa e o entendimento do juiz. O magistrado pode, por exemplo, entender que o fato impeditivo do acesso à audiência não é grave o suficiente para caracterizar justa causa e nesse caso, não há que se falar em má-fé – exceção feita à hipótese em que reste demonstrado o despropósito evidente da alegação2 e/ou o desvio de finalidade.

Como exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) condenou um escritório de advocacia a pagar multa de 5% do valor da causa (correspondente, no caso, a R$ 21.770,00 – vinte um mil, setecentos e setenta reais) por litigância de má-fé porque sua preposta teria simulado uma falha técnica ao longo da audiência realizada por videoconferência com o intuito de se valer da justa causa para que fosse designada uma nova data para sua realização3.

Uma outra questão que merece reflexão no contexto das audiências virtuais relaciona-se ao potencial tecnológico para o cometimento de outras falsidades. Um exemplo emblemático é o Deepfake, que consiste na utilização de programas que substituem a face de uma pessoa pela de outra nas videoconferências.

A tecnologia tem evoluído tanto que chega a ser difícil perceber a adulteração do rosto, já que os programas empregados permitem tal substituição com perfeição e estão sendo rapidamente melhorados para permitir movimentos faciais cada vez mais precisos.

É evidente a necessidade de o Poder Judiciário estar sempre atento às novas tecnologias e seus potenciais – eventualmente danosos –, para que possam solvê-los com rapidez. Mediante a concepção de um processo 100% digital, há que se fazer uma releitura sobre os fundamentos do direito processual, e, neste contexto, todos devem estar preparados para a nova realidade que veio para ficar.

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1 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. São Paulo: Método, 2012, p. 347.

2 Ibidem.

3 Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP). Processo nº 1000023-57.2020.5.02.0062. Notícia disponível aqui. Acesso em: 6 mai. 2022.

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Colunistas

Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.