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A mediação e a reestruturação de empresas de construção civil: O caso da OR

A mediação e a reestruturação de empresas de construção civil: o caso da OR, de autoria da Fernanda Bragança, Bárbara Bueno Brandão e Manuela Tavares Barbosa Branco.

6/5/2022

O mercado da construção civil no Brasil passou por alguns momentos de crise que acarretaram o ajuizamento de muitos pedidos de recuperação judicial. Em 2015, 253 construtorasi recorreram ao Judiciário para tentar viabilizar uma reestruturação. As dificuldades econômicas das empresas de grande porte deste segmento, sobretudo, ocasionaram um efeito dominó sobre as menores.

A pandemia gerou necessidades de adaptação ou acomodação dos canteiros de obra, mas ao contrário do que se esperava inicialmente, o setor teve uma rápida recuperação e, em junho de 2020ii, já registrava um saldo positivo de contratações. Ainda assim, o mercado sinalizava a necessidade de maiores investimentos em obras de infraestrutura para uma retomada mais efetiva.

A importância da construção civil para a economia brasileira é bastante significativa. Em 2021, o setor gerou mais de 284 mil postos de trabalho formais, o que representou 9% do total de empregos com registro neste ano no paísiii, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados divulgados pelo Ministério da Economia.

Os dados do PIB divulgados pelo IBGEiv permitem, de certa forma, correlacionar o desempenho econômico do país e o setor da construção civil. No 3º trimestre de 2021, o PIB deste segmento[v] cresceu 3,9% em relação ao 2º trimestre deste ano. No acumulado de 2021, o PIB da construção subiu 8,8% e puxou o PIB Nacional para 5,7%.

Diante desse cenário, em 13 de junho de 2020, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) expediu o Ato Normativo n. 17vi, o qual dispõe sobre a implantação de Regime Especial de Tratamento de Conflitos relativos à renegociação prévia, à recuperação empresarial, judicial e extrajudicial, e à falência (“RER”) das empresas atingidas pelo impacto da pandemia. Essa normativa seguiu a mesma linha da Recomendação n. 58 de 2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)vii, que orientou o uso da mediação nos processos de recuperação empresarial e falências, tal qual alguns especialistas da área já defendiamviii.

Assim, no contexto da crise econômica provocada pela pandemia, o TJ/RJ buscou impulsionar as chances de reestruturação das empresas com a melhoria das tratativas entre a devedora e seus credores por meio da mediação, em especial.

No início de 2021, o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e Cidadania (NUPEMEC) do TJ/RJ, em parceria com a FGV Mediaçãoix, iniciou um projeto-piloto de mediação de conflitos relativos à Recuperação Empresarial e Falência da empresa OR. A construtora requereu ao Tribunal a instauração do RER que, de forma pioneira, foi aplicado ao mercado imobiliário.

A FGV Mediação atuou na gestão e na mediação dos conflitos, com uma equipe multidisciplinar composta por profissionais de tecnologia da informação, mediadores e gestores de casos.

Inicialmente, a OR definiu os processos de rescisão contratual a serem encaminhados ao RER e selecionou 4 SPEs (Sociedades de Propósito Específico) para serem abarcadas pelo Regime. A partir desta pauta de casos, a equipe da FGV organizou as sessões que ocorreram por meio da plataforma de videoconferência Microsoft Teams, fez as confirmações de comparecimento das partes e dos advogados na mediação on-line e auxiliou as pessoas que manifestaram alguma dificuldade no acesso à sessão virtual.

Os facilitadores de conflitos utilizaram técnicas, notadamente de mediação, para estimular o diálogo e a criação de opções pelas partes, visando o desfecho do processo por uma autocomposição. A equipe de facilitadores que participou do RER da OR foi formada por mediadores judiciais cadastrados no TJ/RJ.

Esses mediadores, alguns com vínculo com a FGV e outros indicados pelo próprio TJ/RJ, são profissionais imparciais, independentes, que atuam com o objetivo de melhorar o ambiente e fomentar uma comunicação produtiva entre as partes, com a perspectiva de incentivar a negociação e a construção de soluções que contemplem os interesses dos envolvidos, sem qualquer relação com a OR ou com os seus credoresx.

Durante as sessões de mediação, a OR contou com uma equipe interna de advogados e integrantes capacitados para expor a situação da empresa e sanar dúvidas e questionamentos dos credores sobre as propostas de acordo apresentadas.

Para apoio à sessão de mediação, os mediadores utilizaram a plataforma eNupemec, que foi desenvolvida no âmbito de um acordo de cooperação técnica entre o TJ/RJ e a FGV. A plataforma eNupemec, ilustrada na figura 1 abaixo, permite o controle de agendas pelos mediadores e gera atas de sessão padronizadas que agilizam o trabalho destes profissionais. É importante destacar a significativa contribuição da tecnologiaxi neste projeto, pois possibilitou a realização do RER mesmo durante o período crítico de isolamento social provocado pela pandemia no paísxii.

Figura 1. Captura de tela do aplicativo da Plataforma eNupemec

(Imagem: App Store)
           

O RER da OR abrangeu 82 processos que resultaram em 160 sessões de mediação on-line, realizadas no período de fevereiro a maio de 2021. A adesão das partes ao projeto foi bastante significativa, com registro de 86% de participação dos advogados dos credores nas sessões e formalização de 31 acordos.

O TJRJ realizou uma pesquisaxiii para avaliar a satisfação dos participantes (partes e advogados) nas sessões de mediação. O Tribunal identificou que 100% dos entrevistados consideraram o atendimento cordial e atencioso; e 98,2% dos entrevistados afirmaram que se sentiram respeitados e ouvidos pelo mediador.

Esses resultados apontam como a mediação e outras formas de resolução adequada de conflitos podem contribuir significativamente com este mercado e permitir a continuidade da atividade de outras incorporadoras/construtoras a partir da estruturação de um ambiente de diálogo profícuo entre a empresa e seus credores. A participação de mediadores ou terceiros facilitadores tem, justamente, o escopo de auxiliar nessa interação, muitas vezes já bastante desgastada pelo decorrer do tempo – quando as tratativas diretas entre as partes não conseguem mais produzir avanços.

A atualização da legislação de recuperação e falênciaxiv, efetuada pela lei 14.112 de 2020, estimula de forma ainda mais contundente projetos como esse RER, tendo em vista assegurar a manutenção de empresas viáveis e proporcionar maior celeridade, redução dos custos com o litígio, confidencialidade e diminuição de incertezas quanto ao resultado.

A referida lei adicionou os artigos 20-A a 20-D na lei 11.101 de 2005, com o escopo de regular as sessões de mediação e conciliação antecedentesxv ou incidentais aos processos de recuperação e falência, bem como estimular a autocomposição coletiva entre devedor e credores no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs). O artigo 20-D reforça a possibilidade das sessões de conciliação e mediação serem realizadas em ambiente digitalxvi, com o objetivo de conferir ainda maior agilidade e praticidade às tratativas entre a empresa devedora e seus credores.

A II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitosxvii promovida pelo Conselho da Justiça Federalxviii aprovou alguns enunciados que tratam especificamente sobre este tema. O enunciado 222 determina que o juiz incentivará, com o auxílio do administrador judicial, a desjudicialização da crise empresarial, seja nos processos de recuperação judicial ou extrajudicial, como forma de encontrar a solução mais adequada ao caso e, com isso, concretizar o princípio da preservação da atividade viável.

Na mesma linha, o enunciado 202 estabelece que na mediação antecedente à recuperação judicial, a empresa devedora e seus credores são livres para estabelecer a melhor composição para adimplemento das obrigações. O enunciado 201 acresce que não cabe ao mediador julgar a existência, exigibilidade e legalidade do crédito.

Assim, diante deste quadro de novidades normativas e com os resultados positivos gerados pela solução consensual dos conflitos, tanto para a empresa em dificuldade econômico-financeira quanto para os seus credores, a expectativa é que iniciativas como o projeto do RER da OR possam ser replicadas em outros Tribunais com outras incorporadoras/construtoras que estejam em contexto de reestruturação, considerado o impacto significativo do ramo da construção civil na economia e na geração de empregos no país.

___________

i Crise leva 253 empreiteiras à recuperação judicial. Época Negócios, 27 set. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022.

ii Na crise, construção sofreu menos do que esperava. Mas “ressaca” da economia preocupa o setor. Gazeta do Povo, Economia, 21 ago. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2022.

iii ABRAINC. Construção civil cria 17,2 mil empregos com carteira assinada em outubro. No acumulado do ano, setor abriu 284.544 postos de trabalho formais, o que representa 9% do total gerado no Brasil em 2021, 30 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 abr. 2022.

iv Cf. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2022.

v ABRAINC. PIB da Construção cresce 3,9% no 3º trimestre e acumula alta de 8,8% no ano, 2 dez. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 dez. 2021.

vi TJRJ. Ato Normativo n. 17 de 23 de junho de 2020. Dispõe sobre a implantação de projeto de Regime Especial de Tratamento de Conflitos relativos à renegociação prévia, à recuperação empresarial, judicial e extrajudicial, e à falência das empresas atingidas pelo impacto da pandemia COVID-19. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022.

vii CNJ. Recomendação Nº 58 de 22/10/2019. Recomenda aos magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, o uso da mediação. Disponível aqui. Acesso em: 7 mar. 2022.

viii Cf. LONGO, Samantha Mendes. TJ-RJ incentiva acordos com mediação online. Estadão, Política, 27 mar. 2019. Disponível em . Acesso em: 5 mar. 2022.

ix FGV e TJRJ inauguram projeto de mediação voltado à recuperação de empresas. Portal FGV, 23 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022.

x Cf. SCHMIDT, Gustavo da Rocha; BUMACHAR, Juliana. Como a mediação pode ajudar a recuperação de empresas em dificuldade. Migalhas, Migalhas de Peso, 20 mai. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 mar. 2022.

xi Cf. BRAGANÇA, Fernanda. Justiça digital: Implicações sobre a proteção de dados pessoais, solução on-line de conflitos e desjudicialização. Londrina: Editora Thoth, 2021. 

xii Cf. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A mediação on line e as novas tendências em tempos de virtualização por força da pandemia de Covid-19. Disponível aqui. Acesso em: 7 mar. 2022.

xiii Cf. TJRJ. Mediações do eNupemec têm aprovação dos usuários, 14 abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022.

xix Cf. SALOMÃO, Luis Felipe; COSTA, Daniel Carnio. Revolução na insolvência empresarial. Estado de São Paulo, Opinião, 4 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso: 7 mar. 2022.

xv COSTA, Daniel Carnio. Conciliações e mediações antecedentes: O sistema brasileiro de pré-insolvência empresarial. Migalhas, Insolvência em Foco, 28 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 1 abr. 2022.

xvi Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2021. 

xvii Cf. ANDRADE, Juliana Loss; BRAGANÇA, Fernanda. DYMA, Maria Fernanda. Mediação online: evolução, tecnologia e desafios de acessibilidade. In: VIEIRA, Amanda de Lima et al (Coords.). Coletânea Estudos sobre Mediação no Brasil e no exterior, v. 3. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2020, pp. 163 -174.

xviii CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Brasília: CJF, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 3 abr. 2022.

xiv Cabe destacar que a I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitos do Conselho da Justiça federal, ocorrida em 2016, já tinha aprovado o enunciado n. 45, o qual reforçou a compatibilidade da mediação e da conciliação com a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

xx Cf. CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Brasília: CJF, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 3 abr. 2022.

 

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Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.