Elas no Processo

Linguagem simples no Poder Judiciário e acesso à Justiça

Linguagem simples no Poder Judiciário e acesso à Justiça.

25/3/2022

Não é de hoje a preocupação acadêmica e governamental com a adoção, nos textos de interesse público, de uma linguagem acessível ao cidadão. Segundo a organização PLAIN - “Plain Language Action and Information Network”, a linguagem simples é a comunicação que a audiência consegue entender da primeira vez em que lê ou ouve. É uma linguagem clara, concisa, bem-organizada, e segue outras práticas apropriadas ao seu conteúdo, área e audiência.

O foco do presente trabalho é a utilização da linguagem simples no âmbito do Poder Judiciário, os documentos e iniciativas que preconizam essa prática e sugestões para seu fortalecimento no futuro. Utilizar linguagem simples e acessível nas decisões judiciais e atos processuais em geral permite ao cidadão uma melhor compreensão de seu conteúdo e, por consequência, uma participação mais informada, consciente e apta a influenciar o resultado do processo.

É certo que, na maior parte das demandas, o jurisdicionado poderá contar com o auxílio de seu advogado. Porém, essa realidade não escusa o Estado-Juiz de elaborar seus pronunciamentos de forma acessível ao cidadão, estabelecendo, muito além de um diálogo com o advogado, também um diálogo com a parte e com a sociedade, e assim viabilizando o exercício do jus postulandi, quando cabível.

O estabelecimento de uma comunicação mais eficiente tem sido um dos principais objetivos perquiridos na seara jurídica nos últimos anos, seja em razão da velocidade da informação que se potencializou com a inserção das novas tecnologias, seja em função da necessidade de se preservar a garantia do amplo acesso à Justiça em meio a estas transformações1. Vale destacar que a técnica do Visual Law incorpora a utilização da linguagem simples como uma de suas ferramentas mais poderosas2, tendo-se ainda como obstáculos questões de ordem cultural que dividem opiniões entre os operadores do direito3.

Não são poucos os documentos, leis e iniciativas públicas, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, que visam a fortalecer a adoção da linguagem simples, a exemplo do art. 11 da LC 95/98, dos arts. 5º e 8º, §3º, inciso I, da Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação – LAI), do art. 5º, inciso XIV e art. 6º, inciso VI, da lei 13.460/17 (Lei de Proteção e Defesa do Usuário dos Serviços Públicos), do art. 6º, incisos IV e V, da lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD), e do art. 3º, inciso VII, da lei 14.129/21 (Lei do Governo Digital).

Nesse contexto, o PL 6.256/19 conceitua linguagem simples como “o conjunto de práticas, instrumentos e sinais usados para transmitir informações de maneira simples e objetiva, a fim de facilitar a compreensão de textos” e coloca como princípios dessa política nacional (i) o foco no cidadão; (ii) a linguagem como meio para redução das desigualdades e para promoção do acesso aos serviços públicos, transparência, participação e controle social; e (iii) a simplificação dos atos da administração pública federal. Além disso, o projeto enumera formas específicas de operacionalização da linguagem simples. Apesar de ainda estar em tramitação, o PL 6.256/19 serviu de modelo para a política municipal de linguagem Simples instituída na cidade de São Paulo, por força da lei municipal 17.316/20.

No âmbito da Administração Pública, a linguagem simples tem sido cada vez mais incentivada e propagada, tendo-se registro de algumas interessantes iniciativas neste sentido, como: a) Apostila do curso Linguagem simples no Setor Público da Prefeitura de São Paulo4; b) Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização – GESPÚBLICA5; c) Orientações para adoção de linguagem clara, do Estado de São Paulo6; d) Cartilha Linguagem Cidadã, do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná7; e) Cartilha Como usar a linguagem simples, do Laboratório de Inovação e Dados – ÍRIS, da Controladoria e Ouvidoria-Geral do Estado do Ceará8; f) Campanha para incentivar a simplificação da linguagem jurídica, pela AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros9.

Recentemente, veio à tona debate acerca do PL 3.326/21, que traz uma proposta para a inclusão de três parágrafos ao art. 489 do CPC, segundo os quais passaria a constar determinação no sentido de que a reprodução do dispositivo da sentença, nos processos com participação de pessoa física diretamente interessada na decisão, seja feita em “linguagem coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da linguagem técnico-jurídica e acrescida das considerações que a autoridade Judicial entender necessárias”, de modo que haja plena compreensão dos seus termos “por qualquer pessoa do povo”, traduzindo-se eventuais expressões ou textos em língua estrangeira.

Fixa-se aqui uma primeira observação: a redação do projeto traz a expressão “linguagem coloquial”, que por sua vez, não pode ser confundida com a linguagem simples (plain language) já definida no início deste ensaio. A linguagem coloquial, também conhecida como linguagem informal, é a variante linguística utilizada com maior frequência no cotidiano, sendo mais despojada, portanto, não adstrita às regras gramaticais10.

Deste modo, nota-se de antemão a impropriedade da expressão empregada no PL 3.326/21, revelando-se mais adequado interpretá-la e corrigi-la como linguagem simples, esta sim, empregada no sentido da técnica adotada para que se confira maior acessibilidade às informações por um público que não tenha formação jurídica.

Não se pode confundir a busca por objetividade e clareza com a exclusão da formalidade e da técnica que for necessária11.

De outro lado, a determinação para que se redija o dispositivo da sentença em linguagem “coloquial” – ou melhor, simples – das sentenças judiciais, não seria suficiente para resolver os problemas de acesso à Justiça.

Mais interessante seria dar continuidade à implementação e desenvolvimento do Visual Law no âmbito do Poder Judiciário, prática observada em diversos tribunais, corporificada a partir da elaboração de resumos12 e de “tópicos-síntese” em sentença e acórdãos13. São maneiras mais efetivas de facilitar a comunicação, utilizando linguagem simples não apenas no dispositivo, mas também na descrição dos pedidos e dos fundamentos, destacando-se os pontos mais relevantes em uma linguagem apropriada para o destinatário da informação.

Destaque-se que a adoção de mecanismos voltados para a simplificação da linguagem não afasta a elaboração de documentos mais técnicos e repletos de liturgias jurídicas em seu inteiro teor, que permanecem nos autos para consulta, quando necessário.

Diante da redação do projeto em análise, abre-se uma possível discussão entre o emprego do “juridiquês” e da linguagem informal no cenário jurídico.

Por “juridiquês” compreende-se a linguagem técnica própria do Direito em seu grau mais complexo, com largo emprego de termos considerados como rebuscados e estrangeirismos, em grande parte advindos do latim. O que parece impressionar do ponto de vista da erudição, em grande parte dificulta uma leitura atenta em um pequeno espaço de tempo, podendo restringir a compreensão de seu teor ou até causar ruídos de comunicação14.

Fato é que o juridiquês e a comunicação informal se situam hipoteticamente em posições extremas e antagônicas que jamais se demonstram apropriadas – ainda mais considerando-se a realidade enfrentada pelo Poder Judiciário.

O número de demandas a serem apreciadas diariamente por magistrados não lhes permite uma leitura densa e demorada. Do ponto de vista da eficiência e da funcionalidade, uma petição simples, concisa, clara e objetiva é muito mais bem recepcionada, tendo maiores chances de gerar os resultados almejados.

Por outro lado, a apresentação de uma petição com o emprego de nenhuma técnica, expressões informais, gírias e uma argumentação não apropriada, não geraria uma boa impressão, podendo igualmente ocasionar uma dificuldade de compreensão pelo magistrado acerca dos fatos narrados. Trata-se, inclusive, de um dos casos mais comuns de inépcia da inicial.

Justamente por esta razão, os cartórios dos juizados especiais costumam disponibilizar modelos de petição para que as partes desassistidas de advogado possam deduzir sua pretensão de forma compreensível, atendo-se aos campos para preenchimento, e contanto com o auxílio dos serventuários em casos de dúvida.

Todavia, como se pretende demonstrar neste trabalho, não se trata de defender o “juridiquês” tradicional ou condená-lo, em nome de uma linguagem simples, mas sim tratar-se de uma questão de equilíbrio e adequação da linguagem diante de diversos contextos fáticos-jurídicos.

A linguagem possui finalidades diversas, sendo imprescindível que o interlocutor faça uma contextualização da mensagem. Assim, não existe uma única resposta correta para o tipo de linguagem que deva ser utilizada ou a modulação a ser empregada. Basta enfocar no interlocutor ou destinatário da mensagem, ou seja, voltar o foco para o usuário do serviço judiciário15.

O que deve existir, de fato, é a compreensão de que nem sempre a linguagem técnica e erudita será efetiva para determinadas situações, do mesmo modo que uma linguagem simples poderá demonstrar-se insuficiente ou inadequada em certas outras ocasiões.

Portanto, a previsão do projeto em comento parece inoportuna da forma como redigida, pois o emprego da linguagem simples pode e deve ser fomentado, mas sem que se estabeleçam determinações e obrigações de forma estanque. A previsão da linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão como uma diretriz para os órgãos do Poder Público, tal como prevê o art. 3°, inciso VII, da Lei de Governo Digital, demonstra-se suficiente no plano normativo.

Evidentemente, a implementação de uma cultura no sentido de se prezar pela linguagem simples quando necessária não é uma questão de fácil solução. Se hoje há uma cultura dominante de redação de atos jurisdicionais de forma complexa e inacessível, que todos aprendem como correta desde os tempos da faculdade de Direito, ela só será rompida pelo surgimento de toda uma contracultura de utilização da linguagem simples, prezando-se pelo acesso à justiça, pelo processo participativo e por uma publicidade substancial das decisões judiciais.

Demonstra-se salutar toda iniciativa no sentido de incentivar a disseminação da linguagem simples no Poder Judiciário, na administração pública, nas entidades civis e nas instituições de ensino. Somente a partir deste conjunto de ações e de esforços será possível consolidar uma comunicação mais efetiva, acessível e contextualizada.

Destarte, conclui-se que linguagem simples, tendo em vista a propagação do acesso à Justiça, não é uma questão meramente normativa. É uma cultura que deve ser trazida desde a formação inicial do operador do direito, nas faculdades, e que precisa ser diariamente fomentada, por meio de capacitações e iniciativas da comunidade jurídica. A comunicação é um meio, e não um fim em si mesmo.

______

HILDEBRAND, Cecília Rodrigues Frutuoso; IWAKURA, Cristiane Rodrigues Iwakura. Exclusão digital e acesso à justiça em tempos de pandemia: uma análise sob a ótica dos juizados especiais. Empório do Direito. Disponível aqui

IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Visual Law é modismo? Migalhas – Coluna Elas no Processo. Disponível aqui

3 ALVES, Lucélia de Sena. A efetividade da utilização do Visual Law como técnica facilitadora da comunicação jurídica. Migalhas – Coluna Elas no Processo. Disponível aqui

4 Disponível aqui

5 Disponível aqui

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui

8 Disponível aqui

9 Vide aqui.

10 BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 1ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

11 Uma interessante análise do Projeto de Lei pelo professor Dierle Nunes pode ser lida aqui

12 Alguns exemplos: aqui e aqui.

13 ALENCAR, Hermes Arrais. Sustentação oral TRF2 – Tema: Tópico Síntese – Ano 2006. Disponível aqui

14 CAMPOS, Hélide Maria dos Santos. Linguagem jurídica com expressões rebuscadas precisa ser repensada. Consultor Jurídico. Disponível aqui

15 IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Legal design e acesso à justiça: criação de sistemas processuais eletrônicos acessíveis e ferramentas intuitivas no ambiente jurídico digital. In: Direito Processual e tecnologia: os impactos da virada tecnológica no âmbito mundial. NUNES, Dierle et. al (org.). Salvador: Editora Juspodivm, 2021, pp. 147-159.

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Colunistas

Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.